sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Chuva - XLVI

Como calculas não foi surpresa nenhuma. O dia decorria normalmente quando o telefone tocou. Atendi.

“Sim?”

“Eu desejava falar com o Sr. Gabriel Guerra, por favor.”

“É o próprio.”

“Sr. Gabriel, fala Manuel Pereira.”

“Bom dia, Sr. Primeiro-Ministro.”

“Sr. Gabriel, estou a ligar-lhe porque estou interessado em ter uma conversa consigo. Creio termos algumas coisas que podemos discutir em conjunto. Aparentemente o meu assessor não foi muito bem sucedido em transmitir-lhe o convite…”

“Não, não foi. Sabe Sr. Primeiro-Ministro, à partida não vejo o que teríamos para falar e ele não foi muito bem sucedido em dizer-me porque deveríamos ter essa mesma conversa.”

“Sr. Gabriel, sabe, no meio desta crise que enfrentamos vozes como a sua podem causar algum alarmismo, podem desacreditar as instituições e gerar situações que tem o potencial de ser desestabilizadoras. Creio que devíamos falar para tentar chegar a terrenos comuns. Que me diz?”

“Digo-lhe o mesmo que lhe disse a ele. As minhas horas de almoço são bastante limitadas. Como tal, se quer insistir teria de ser noutros moldes ou num fim-de-semana.”

“O próximo sábado, depois de amanhã, seria conveniente?”

“Sim, não vejo qualquer inconveniente.”

“Então podíamos encontrar-nos em…”

“Desculpe-me interrompe-lo, mas eu não tenho transporte próprio. Não poderia disponibilizar-me um transporte?”

“Mas claro. Nesse caso mandarei alguém buscá-lo no Sábado, por volta do meio-dia.”

“Muito bem então. Ficarei a aguardar.”

“Bom dia Sr. Gabriel.”

“Bom dia, Sr. Primeiro-ministro.”

Desliguei o telefone. Eu tinha razão. Ele queria mesmo falar comigo. Desde o debate eu tinha deixado de ser apenas um tipo que fazia umas previsões de coisas que iam acontecer e passei a ser alguém com uma posição política marcada. Tendo em linha de conta a maneira como as pessoas olhavam para mim, eu era, neste momento, um trunfo. Só que era um trunfo fora do baralho e isso era perigoso.

Ao fim da tarde, assim que entrei para dentro do carro, virei-me para o Fernandes e perguntei “Adivinha lá quem é que me telefonou hoje.”

Ele olhou para mim, levantou o sobrolho e respondeu “Só podes estar a brincar…”

“Não, não estou.”

“O nosso Primeiro ligou-te?”

“É verdade. Vou almoçar com ele no Sábado.”

“Bem, estás a ficar importante. Isto a continuar assim ainda acabas como ministro ou, quem sabe até, presidente da republica.”

“Não me parece. Não tenho perfil para isso.”

“Mas tens apoio. Tu não achas que se neste momento te candidatasses a alguma coisa, fosse o que fosse, não estava ganho logo à partida?”

“Acho que não seria assim tão linear…”

“Mas era, acredita.”

Realmente era bem capaz de ser verdade. Era um trunfo fora do baralho, mas se entrasse no baralho continuava a ser um trunfo.

Por outro lado, as opiniões que tinha demonstrado tornavam difícil encaixar-me num qualquer quadrante, a não ser como independente, claro. Mas ainda assim, ser independente por alguém faria com que fosse uma bandeira de campanha.

O sábado acabou por chegar e com ele, ao meio dia, um carro para me vir buscar. Fui conduzido até um restaurante na avenida de Roma. Entrei e pude ver o espanto das pessoas à medida que passava. Fui levado a uma sala reservada. Quando entrei o Primeiro-ministro levantou-se de imediato para me cumprimentar com um sorriso largo estampado no rosto. Fiquei a pensar até que ponto é que aquele sorriso era honesto, ou se não seria apenas um gesto estudado.

Cheguei rapidamente à conclusão de que o era. Este homem não era assim. Esta era a sua mascara de primeiro-ministro, milimetricamente estudada por assessores de imprensa, cuidadosamente montada para agradar ao primeiro impacto…

…mas não a mim. Era fácil vê-lo à transparência. Eu assustava-o. Intimidava-o.

Escolhemos o que queríamos e em seguida ficamos sozinhos na sala. Uma janela que aparentava ser espelhada deixava entrar a claridade da rua sem que fossemos vistos. Havia privacidade. Esperei que ele dissesse algo que fosse para além das trivialidades de circunstância.

“Deve estar a perguntar-se do porquê deste convite, não, Sr. Gabriel?”

“Para lhe ser completamente franco, não muito.”

“O Sr. é um homem curioso…”

“Sou?”

“Sim. Logo à partida não estou a ver muita gente que recusasse um convite do Primeiro-Ministro.”

“Bem, nesse aspecto sim, sou um homem curioso. Sabe, embora dê alguma relevância ao cargo não a dou a quem o ocupa.”

“Mas porquê? Afinal quem o ocupa é uma escolha dos seus concidadãos, não é?”

“É. Mas é uma escolha que, se formos a ver bem, para muita gente não seria a primeira opção. Sabe, não acho que, de há muitos anos a esta parte, andemos a escolher o melhor dos melhores. Antes pelo contrário, somos forçados a escolher o mais razoável dos disponíveis.”

“Tem uma fraca opinião dos políticos.”

“Tenho alguma razão objectiva para ter melhor opinião? Mas creio que não foi para discutir as minhas opiniões que quis falar comigo… Ou foi?”

“Também. Sabe, o debate e tudo aquilo que disse fez com que ficasse no ar um mau estar nos vários sectores políticos. O senhor desrespeitou o governo e a assembleia da república. Como calcula isso não é muito bom para a democracia…”

“Pois, mas a vantagem de estarmos em democracia é que tenho a liberdade para desrespeitar o governo, a assembleia da república, os tribunais e até a presidência… Afinal não foi essa uma das conquistas da revolução?”

“Claro. Mas sabe, pessoas que estão em posições em que podem influenciar a opinião pública da maneira que o Sr. está agora deviam ter algum cuidado.”

“Porquê? Disse alguma coisa que não fosse verdade?”

Ele ficou a olhar para mim. Esperava talvez que me sentisse algo mais intimidado estando frente a frente com ele, mas já tinha visto que não era assim.

“Sabe, a questão às vezes não é onde está a verdade mas a maneira como é dita…”

“Ou como não o é, pura e simplesmente.”

Ele sorriu, sabes. Um sorriso de reconhecimento. Lá fora as nuvens tornavam o céu cinzento, escondendo o sol.

“Gabriel, o Sr. é um homem de carácter. Um homem com ideias bem definidas. Sabe com um homem como o senhor podia fazer muito pelo país.”

“Por outro lado também começo a ser incomodo, não é? Diga-me fala-me neste momento como primeiro-ministro ou como líder partidário?”

“Há alguma diferença?”

“Claro que há.”

“Por exemplo?”

“O primeiro-ministro deve pôr os interesses do país acima de tudo.”

“Também o líder partidário.”

“Não, o líder partidário deve defender os interesses do partido que representa.”

“Mas as duas coisas não diferem.”

“Claro que diferem. Os interesses do partido são os interesses de uma parte da população do país. Não reflectem a totalidade.”

“No entanto, para o primeiro-ministro ter o cargo, por princípio, esses interesses reflectem os interesses da maior fatia da população.”

“Não, para o líder partidário aceder ao cargo isso é verdade, mas não acha que uma vez que acede deve levar em conta os interesses da totalidade da população e não só da franja que lhe deu acesso ao cargo? Mais ainda, deve levar em conta os seus interesses futuros, ainda que no imediato as atitudes que toma não sejam amplamente reconhecidas?”

“Quer com isso dizer…?”

“Que o dever do primeiro-ministro é antecipar as necessidades futuras e não tentar remediar as presentes.”

“Não ceder a populismos e sondagens?”

“Exacto. É que acho que existe sempre uma noção algo errada de tentar levar avante apenas os interesses do eleitorado que o primeiro-ministro, e mais, não os interesses futuros mas sim os mais imediatos, nunca conseguindo resolver eficazmente os problemas do estado.”

“Não pode ver as coisas só assim. Há imponderáveis, factores externos que por vezes são impossíveis de antecipar, e que são até negados para não causar males piores…”

“O problema é que, mais cedo ou mais tarde não há volta a dar as situações. O acumular de remendos leva inevitavelmente a uma rotura, e quando isso acontece…”

Ele parou a olhar para mim, e vi o medo no olhar dele. Medo de que eu dissesse a palavra revolução. Medo que de alguma maneira eu lhe desse essa previsão, lhe dissesse que o pais ia mudar. Claro que não o fiz. Mas ele percebeu que estava num jogo em que não podia ou devia continuar.

Lá fora a chuva começou a cair, copiosamente.

“Pondo as coisas por esse prisma, falo consigo enquanto líder partidário.”

“É bom saber. Nesse caso digo-lhe que não tenho qualquer simpatia ou respeito pela pessoa que representa, o líder partidário, nem qualquer afinidade com os seus ideais ou opções.”

“Bem, o que acabou de me dizer deita por terra o propósito da conversa que queria ter consigo.”

O meu telemóvel tocou. O som de uma mensagem a chegar. Não sabia o que esperar. Abri a mensagem.

 

Fé mal direccionada fará negras as águas límpidas. Amanhã. Ele fará o que é certo.

 

Li num relance, fingi que não tinha importância.

Por um lado tinha algum receio de que a informação não estivesse correcta, mas a mensagem tinha chegado e a frase fazia sentido. Tinha a tentação de confirmar a mensagem, mas a lógica dizia-me que seria difícil uma sequência de palavras que fizesse sentido aparecer se o sistema não tivesse funcionado sem falhas.

“E qual era o propósito?”

“Queria convidá-lo para se juntar ao meu “staff”. Creio que seria uma mais valia…”

Aproveitava as pequenas pausas na nossa conversa para pensar no significado da mensagem. Fé mal direccionada?

“E no entanto estava a fazê-lo sem me conhecer de lado nenhum. Não o estaria a fazer por saber que eu lhe daria vantagens numa sondagem?”

Ele limitou-se a sorrir.

“Então agora deixe-me dizer-lhe uma coisa. Sabe qual é o verdadeiro propósito deste encontro, Sr. Primeiro-ministro?”

Ele deixou de sorrir e eu continuei.

“O verdadeiro propósito é transmitir aos seus congéneres rapidamente que amanhã vai haver um ataque terrorista.”

Ele ficou parado a olhar para mim, sem palavras.

“E mais, creio que será um atentado contra uma plataforma petrolífera pertencente a empresas americanas no golfo do México.”

Ele estava branco.

“Mas isso dá um numero de plataformas extremamente elevado…”

“O pior é que o atentado criará uma maré negra. Devem ser tomadas medidas que possam minimizar uma catástrofe ambiental.”

Ele olhou bem para mim.

“Tem a certeza do que me está a dizer?”

“Não só tenho como estou aqui para lhe o dizer.”

Ele pegou de imediato no telemóvel e entrou em contacto com alguém que presumo que era o ministro dos negócios estrangeiros. Minutos depois falava com o embaixador dos Estados Unidos da América.


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