quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Chuva - XLII

Dois dias depois entra-me pela minha sala, no trabalho, um senhor com um aspecto absolutamente engomado, fato de corte impecável e aproxima-se de mim.

“Sr. Gabriel Guerra?”

“Sim.”

“Sr. Gabriel, estou aqui em representação de um canal de televisão. O meu nome é David Serra. Estamos a organizar um debate acerca do terramoto com representantes do governo e da sociedade civil, e gostaríamos de contar com a sua presença.”

“Um debate?”

“Sim, queremos falar acerca do que se passou antes, do que se podia ter evitado, do que se está a passar depois, com o esforço de reconstrução…”

“Percebo.”

“Estamos a tentar dar informações ao público em geral. Queremos que as pessoas tenham uma opinião baseada numa visão mais abrangente.”

“É uma iniciativa louvável, mas porquê a minha presença? Além do facto da previsão não tive qualquer intervenção no que quer que tenha acontecido antes, durante ou depois.”

“Sim, mas nem o Sr., com certeza, ignora o facto de que as suas palavras, por mais parcas que sejam, causarem hoje em dia um impacto vasto na opinião pública.”

“Não são as minhas palavras.”

“Mas é o Sr. Gabriel quem dá a cara, é o rosto dessas palavras. E basta ver o impacto que a sua última mensagem teve, a nível global. Sabe, acho que o público tem direito a ouvir a sua opinião.”

“E quem é que deu ao publico esse direito? Quem é que o definiu? Quer que lhe seja franco? Acho que o convite foi feito não por uma questão de opiniões, mas sim porque os seu chefes sabem que se eu aparecer as audiências disparam. Estou certo?”

O homem fez um trejeito de indignação. Mas acho que não o fez por eu ter dito algo que não é verdade, mas antes porque há verdades que por cortesia não deviam ser ditas.

Já te disse que não sou muito a favor de cortesias?

“Lamento que pense assim, Sr. Gabriel. Estamos mesmo interessados na sua presença.”

“E diga-me, quem mais fará parte do painel?”

“Representantes dos partidos políticos com assento na Assembleia da Republica, o presidente da câmara de Lisboa e alguns vereadores, e pessoas de vários quadrantes da sociedade civil, em geral. Ainda não lhe consigo dizer ao certo os nomes porque ainda não tivemos a confirmação. Ainda estamos fazer os convites.”

Pensei durante algum tempo enquanto ele olhava para mim, expectante.

A verdade é que não queria este tipo de exposição. Por aquilo que já te disse, podes calcular o quanto me revolvia as entranhas pensar em estar numa sala cheia de gente a falar acerca do sexo dos anjos sabe Deus por quanto tempo e cujo objectivo final não era nenhum. A verdade era esta. Podia estar toda a gente a falar, podiam até aparecer ideias nobres e validas, mas a verdade é que o resultado final seria o mesmo. O debate não passaria de uma cortina de fumo. Aliás, nenhum debate televisionado é mais do que isso mesmo, uma cortina de fumo.

Mal comparado, é darem uma dose de uma qualquer droga psicotrópica às pessoas, mas que não era bebida, fumada, cheirada ou injectada. Entra pelos olhos, ilude, mascara dores e sensações, mas no fim, quando o efeito passa, ou se toma nova dose ou volta-se a sentir os efeitos do que estava lá. Não resolvendo o problema na raiz, mascarando-o apenas, o problema apenas tem tendência a tornar-se maior, e o facto de a droga o mascarar apenas deixa que o tempo passe sem que os sintomas sejam evidentes.

Isto tudo levava-me a crer que a minha presença teria esse efeito nas pessoas.

Por outro lado eu sabia que cada vez mais haveria pressões para eu aparecer e que mais cedo ou mais tarde seriam inescapáveis. E, ao fim ao cabo, eu ainda não sabia ao certo qual o meu papel no meio de tudo.

E foi depois de tecer todas estas considerações que dei a resposta.

“Podem contar comigo no debate. Eu vou.”

“Muito obrigado, Sr. Gabriel. Posso ficar com um contacto seu para o avisar posteriormente quando tudo estiver organizado?”

Dei-lhe o numero dali, do trabalho. E em seguida ele saiu, satisfeito com ele próprio.

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