Dois dias depois entra-me pela minha sala, no trabalho, um senhor com um aspecto absolutamente engomado, fato de corte impecável e aproxima-se de mim.
“Sr. Gabriel Guerra?”
“Sim.”
“Sr. Gabriel, estou aqui em representação de um canal de televisão. O meu
nome é David Serra. Estamos a organizar um debate acerca do terramoto com
representantes do governo e da sociedade civil, e gostaríamos de contar com a
sua presença.”
“Um debate?”
“Sim, queremos falar acerca do que se passou antes, do que se podia ter
evitado, do que se está a passar depois, com o esforço de reconstrução…”
“Percebo.”
“Estamos a tentar dar informações ao público em geral. Queremos que as
pessoas tenham uma opinião baseada numa visão mais abrangente.”
“É uma iniciativa louvável, mas porquê a minha presença? Além do facto da
previsão não tive qualquer intervenção no que quer que tenha acontecido antes,
durante ou depois.”
“Sim, mas nem o Sr., com certeza, ignora o facto de que as suas palavras,
por mais parcas que sejam, causarem hoje em dia um impacto vasto na opinião
pública.”
“Não são as minhas palavras.”
“Mas é o Sr. Gabriel quem dá a cara, é o rosto dessas palavras. E basta ver
o impacto que a sua última mensagem teve, a nível global. Sabe, acho que o
público tem direito a ouvir a sua opinião.”
“E quem é que deu ao publico esse direito? Quem é que o definiu? Quer que
lhe seja franco? Acho que o convite foi feito não por uma questão de opiniões,
mas sim porque os seu chefes sabem que se eu aparecer as audiências disparam.
Estou certo?”
O homem fez um trejeito de indignação. Mas acho que não o fez por eu ter
dito algo que não é verdade, mas antes porque há verdades que por cortesia não
deviam ser ditas.
Já te disse que não sou muito a favor de cortesias?
“Lamento que pense assim, Sr. Gabriel. Estamos mesmo interessados na sua
presença.”
“E diga-me, quem mais fará parte do painel?”
“Representantes dos partidos políticos com assento na Assembleia da Republica,
o presidente da câmara de Lisboa e alguns vereadores, e pessoas de vários
quadrantes da sociedade civil, em geral. Ainda não lhe consigo dizer ao certo
os nomes porque ainda não tivemos a confirmação. Ainda estamos fazer os
convites.”
Pensei durante algum tempo enquanto ele olhava para mim, expectante.
A verdade é que não queria este tipo de exposição. Por aquilo que já te
disse, podes calcular o quanto me revolvia as entranhas pensar em estar numa
sala cheia de gente a falar acerca do sexo dos anjos sabe Deus por quanto tempo
e cujo objectivo final não era nenhum. A verdade era esta. Podia estar toda a
gente a falar, podiam até aparecer ideias nobres e validas, mas a verdade é que
o resultado final seria o mesmo. O debate não passaria de uma cortina de fumo.
Aliás, nenhum debate televisionado é mais do que isso mesmo, uma cortina de
fumo.
Mal comparado, é darem uma dose de uma qualquer droga psicotrópica às
pessoas, mas que não era bebida, fumada, cheirada ou injectada. Entra pelos
olhos, ilude, mascara dores e sensações, mas no fim, quando o efeito passa, ou
se toma nova dose ou volta-se a sentir os efeitos do que estava lá. Não
resolvendo o problema na raiz, mascarando-o apenas, o problema apenas tem
tendência a tornar-se maior, e o facto de a droga o mascarar apenas deixa que o
tempo passe sem que os sintomas sejam evidentes.
Isto tudo levava-me a crer que a minha presença teria esse efeito nas
pessoas.
Por outro lado eu sabia que cada vez mais haveria pressões para eu aparecer
e que mais cedo ou mais tarde seriam inescapáveis. E, ao fim ao cabo, eu ainda
não sabia ao certo qual o meu papel no meio de tudo.
E foi depois de tecer todas estas considerações que dei a resposta.
“Podem contar comigo no debate. Eu vou.”
“Muito obrigado, Sr. Gabriel. Posso ficar com um contacto seu para o avisar
posteriormente quando tudo estiver organizado?”
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