Sai do helicóptero e dirigi-me ao Rafael que me esperava um pouco afastado. Assim que me afastei o helicóptero levantou de novo e seguiu viagem.
O Rafael fez um sorriso aberto e esticou a mão para me cumprimentar quando
cheguei ao pé dele. Eu não retribui o gesto, o que creio de o deve ter deixado
um bocado sem saber como lidar comigo. Tenho a certeza que ele pensou que o meu
gesto se devia à posição que ele tinha tido na conversa do restaurante, mas
não. Tolerar o toque do Fernandes já era o que era…
Talvez devido a este meu gesto, assim que o helicóptero se afastou ele
voltou-se para mim e disparou “Gabriel, pá, vou direito ao assunto. Quero
entrevistá-lo.”
“Isso está completamente fora de questão.”
“Fora de questão? Mas fui buscá-lo, e tudo…”
“Sim, mas disse-me que queria falar comigo. Estou aqui e estamos a falar.
Uma entrevista está fora de questão.”
“Gabriel, neste momento toda a gente quer saber quem você é, depois do que
se passou. Acho que deve isso às pessoas.”
“Devo? Como é que devo alguma coisa a alguém? Que raio de lógica é essa?
Então eu chego e digo o que vai acontecer, podiam ter-se salvo vidas, que não o
foram porque os próprios serviços noticiosos encararam a noticia como se fosse
uma partida de primeiro de Abril, e ainda assim eu estou em divida? Eu não devo
nada a ninguém.”
“Se calhar não escolhi as palavras certas. Compreendo como se deve estar a
sentir…”
Claro que não compreendia. Como é que podia compreender? Em nada do que lhe
disse havia amargura ou ressentimento. Somente uma constatação de factos.
Estava completamente indiferente ao que tinha acontecido. De um certo ponto de
vista acho até que fui um espectador privilegiado do que aconteceu. Não é todos
os dias que se assiste num camarote à destruição de uma cidade, e tinha sido
algo magnifico de ver.
As vidas que se perderam?
Que se lixem. Há gente a mais no mundo, assim como assim. Se calhar isto é
só uma maneira do planeta se tentar reequilibrar.
Ele continuou.
“Mas não acha que se deve dizer algo às pessoas?”
“Eu disse e ninguém ouviu.”
“Mas as pessoas agora vão ouvir.
“É provável. Eu é que não tenho mais nada para dizer.”
“Como assim?”
“Eu limito-me a ser um mensageiro. Passo as mensagens que me chegam. Não
sou um iluminado, não tenho revelações a fazer. Disse o que tinha de dizer,
quando tinha de o fazer. Agora não tenho mais nada. Não há profecias nem
revelações.”
“Mas as pessoas vão querer saber quem você é…”
“Sim, mas isso é com elas, não comigo. Eu não tenho o mínimo interesse
nisso.”
“Pá, caramba. Toda a gente gosta de reconhecimento.”
“Eu não sou toda a gente. Era isto que queria falar comigo?”
“Era…”
“Então estamos conversados.”
Virei-lhe as costas e arranquei. Acho que o deixei parado, especado a olhar
para mim.
Resolvi ir ter com o Fernandes. Afinal já estava aqui e não era assim tão
longe. Passei ao lado do estádio de Alvalade que não me pareceu muito afectado,
excepto pelo facto de que muitos dos azulejos com que estava decorado se terem
descolado e caído, deixando o edifício mais nu. Curiosamente estava bem melhor
assim do que antes.
Atravessei a Cidade Universitária em direcção ao Hospital. No gigantesco relvado
em frente às faculdades o exército começava a montar tendas de campanha.
A situação no Hospital era verdadeiramente caótica. Carros e ambulâncias
chegavam e partiam, atrapalhavam-se uns aos outros. As pessoas insultavam-se e
passei mesmo por uma situação em que os insultos verbais deram lugar à agressão
física. Nada como uma catástrofe para revelar o que temos em nós de melhor, não
é?
Todos têm prioridade. Todos querem ser o primeiro. Todos tem a certeza que
o seu problema é muito mais grave que o do parceiro do lado.
Sabes, no fundo acho que ninguém é assim tão diferente de mim. A única
coisa que me distingue das outras pessoas é que elas próprias se acham
diferentes de mim. Mas eu sou um espelho daquilo que elas são, e sei que não
conseguiriam olhar para mim porque quando o fizessem iriam rever-se e não iam
gostar do que veriam. É tão mais fácil olhar para o lado do que encarar a
realidade e fazer um esforço de mudança…
…não achas?
Entrei pelas urgências. A sala estava completamente apinhada de gente por
todo o lado. Não era possível distinguir algum tipo de ordem ali. Além das
cadeiras estarem todas ocupadas, havia gente de pé por todo o lado, todos
falavam ao mesmo tempo, bem alto. Estava uma montanha de gente encostada ao
balcão de atendimento, havia gritos, insultos. O barulho era ensurdecedor. Vi
que seria quase impossível aproximar-me do balcão. Sai da sala e tentei ligar
para o Fernandes para o avisar que estava ali. Não consegui. O telemóvel
limitava-se a dizer “rede ocupada”.
Abordei uma moça que passava com a farda do hospital. “Desculpe, eu
queria…”
“O Senhor vai ter que tirar uma senha e esperar para ser atendido.”
Interrompeu ela.
“Eu não quero ser atendido, só queria…”
“Tire a senha.” E voltou-me as costas.
Encolhi os ombros. Também, ao fim ao cabo não tinha mais nada que fazer…
Voltei a entrar na sala, tirei a senha e resolvi ir tentando ligar.
Encostei-me num canto a uma parede e deixei-me ficar quieto.
Ao fim de uma hora, ou coisa assim, lá vagou uma cadeira e sentei-me. A
televisão estava ligada e as pessoas iam assistindo às reportagens sucessivas
que se limitavam a repetir as mesmas informações de dez em dez minutos. Era o
espectáculo da informação.
Foi então que uma miúda que estava sentada ao colo da mãe ao meu lado se
virou para ela e disse, apontando para mim “Mãe, é o senhor…”
“Está quieta, filha.”
“Mas mãe, é o senhor que está na televisão…”
A mulher virou-se para mim. “O senhor desculpe…”
Eu nem respondi.
“Mãe, …” insistiu a miúda “…mas não vês que é ele?”
A mãe olhou para a televisão. Ninguém conseguia ouvir o que era dito lá,
por causa do barulho, mas lá estava a minha foto, uma imagem parada do pouco
que filmaram de mim na Lousã, com a legenda “o homem que previu o terramoto”.
A mulher olhou bem para mim. Ao mesmo tempo as pessoas que estavam à volta
começaram a prestar atenção e a segredar umas às outras.
De repente fez-se um silêncio estranho na sala e eu senti o mundo encolher
à medida que todos os olhos eram postos em mim. O que vi nos olhos das pessoas
foi estranho. Como uma espécie de adoração. Acho que toda a gente ficou à
espera que eu dissesse algo elevado, algo que as reconfortasse.
Não podia ficar ali, de maneira nenhuma. Não podia encarar aquelas pessoas
desta maneira. Não estava preparado para lidar com algo assim.
Levantei-me e atravessei a sala. Todos os olhos me seguiram. As pessoas
afastavam-se para me dar passagem. Encostei-me ao balcão de atendimento. O
olhar da empregada não era diferente do das restantes pessoas.
“Posso pedir-lhe uma coisa?”
Ela acenou afirmativamente com a cabeça.
“Está cá um médico a ajudar, mas nem sei bem onde está. Não faz parte do
corpo clínico do hospital, mas estava nas imediações e veio para cá dar uma
ajuda. Chama-se Álvaro Fernandes. Gostava que se fosse possível lhe dissesse
que eu aqui estou. O meu nome é Gabriel Guerra.”
“Com certeza, senhor Gabriel.” Respondeu ela de uma forma…
…subserviente. Sim, acho que é a palavra que melhor define a atitude dela.
“Muito obrigado.” Disse eu com uma cortesia forçada.
Depois afastei-me do balcão e voltei para o lugar de onde tinha saído
enquanto a funcionária agarrava no telefone e ia procurando o Fernandes pelos
serviços. Sentei-me e o clima na sala continuou o mesmo, ocasionalmente
interrompido por alguém que a atravessava com pressa e nem se dava conta do que
se passava, ou por outra, até dava, mas não percebia. Só o meu desconforto
aumentava.
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