Ao entrarmos em Lisboa as coisas estavam diferentes. O exército controlava
as ruas em conjunto com as forças de segurança. Começavam a ver-se equipas que
tratavam da limpeza das ruas e começavam a remover escombros. A cidade começava
a tentar reagir.
Consegui o tal duche no hospital, mas não roupas novas.
À tarde fomos ter com o Rafael. Lá houve alguém que me emprestou um casaco
para eu aparecer mais apresentável e quando dei por mim tinha o Rafael à minha
frente com uma mesa entre nós e só aguardávamos a instrução de que estávamos a
ir para o ar.
“Gabriel, esqueça que isto vai dar na televisão. Isto vai ser só uma
conversa entre nós. Basta que seja você próprio…”
Ora ai estava um conselho que eu não podia de forma alguma seguir. Podia
ser tudo, menos eu próprio. Mas, claro, anui.
Tivemos a indicação do assistente de produção. O Rafael aguardou a contagem
e logo em seguida voltou-se para mim.
“Gabriel Guerra, muito boa noite, obrigado por ter acedido a esta
entrevista.”
“Boa noite.”
“Gabriel, em primeiro lugar, um bocadinho sobre si. Quem é o Gabriel
Guerra?
“Sou um arquivista de quarenta e dois anos”
“Casado? Comprometido?”
“Não.”
Acho que ele esperava que eu elaborasse mais um bocadinho, mas não havia
acerca de quê.
“Muito bem. Gabriel, o país ouviu falar de si pela primeira vez à poucos
dias aquando do salvamento do Rui, o rapaz que estava perdido na Lousã. Foi o
Gabriel, acompanhado por Álvaro Fernandes, quem descobriu o rapaz…”
“Fui, fui eu.”
“E diga-me, o que é que o levou a procurar numa zona que estava descartada
pelas autoridades à partida?”
“Tive pistas para lá chegar.”
“Houve uma frase que disse, aliás, a única que disse, foi que o local lhe
tinha sido revelado.”
“Sim, foi”
“Posso perguntar como?”
“Lamento, mas não lhe vou responder a isso.”
“Sim, mas como calcula, é algo que deve ser a interrogação de muita gente…”
“Claro. Posso dizer-lhe que não me aparece em sonhos, não ouço vozes e não
me chegam por SMS.”
“Bem, mas ainda assim ficam muitas hipóteses em aberto…”
“Pois ficam.”
“Porquê essa relutância em revelar?”
“Porque é algo que acho que só a mim diz respeito.”
“Muito bem. Veio ter comigo na antevéspera do terramoto com a informação do
dia e da hora. Viu que a informação foi passada e ainda assim ninguém fez nada.
Isso deixou-o incomodado de alguma forma?”
“Para ser franco, não. Eu teria feito exactamente a mesma coisa, não me
teria levado a sério. Claro que tive alguma pena de como a mensagem foi passada
por alguns meios de informação. Se calhar se a tivessem tratado de uma forma
mais séria o resultado podia ser diferente. Mas ainda assim achei perfeitamente
lógico.”
“Mas não ficou com pena das vidas que se perderam, dos feridos…”
“Claro que fiquei, …” menti “…mas sei que fiz o que pude. Creio que não
poderia fazer mais.”
“Tem alguma coisa que queira dizer a quem nos ouve?”
“Não. De momento não tenho absolutamente mais nada a dizer. Só que acho que
neste momento temos de fazer os possíveis para ultrapassar esta tragédia e que
isso só se fará com um esforço conjunto. Que acho que está na hora de tentar
esbater diferenças para conseguirmos reconstruir Lisboa e a margem sul. Pode
ser que no fundo, por pior que tenha sido a tragédia, alguma coisa boa possa
advir daqui.”
“Gabriel, obrigado.” E voltou-se para a câmara “Foi a entrevista com
Gabriel Guerra, o homem que previu o terramoto de Lisboa.”
O assistente de produção fez sinal a dizer que já não estávamos no ar.
“Espero não o ter desiludido.” Disse ao Rafael.
“Não, não me desiludiu. Nada mesmo. Mas sinto que esteve muito à
defensiva…”
“Não estou habituado a que as luzes se voltem para mim, sabe.”
“Compreendo, mas aviso-o já que vai ter de se habituar.”
“Eu sei, mas acho que tenho de dar um passo de cada vez.”
“Gabriel, tenho de ir, mas vamos manter contacto, pode ser?”
“Claro que sim.” Disse eu com um sorriso.
Ele esticou-me a mão. Desta vez cumprimentei-o. Ele saiu disparado e eu saí
do estúdio acompanhado por um assistente de realização que me levou de volta
até ao Fernandes. Também o olhar dele para mim era diferente.
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