terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Chuva - L

Saí da Sé com um sentimento de inquietude. Se era verdade que a conversa com o Cardeal não tinha adiantado muito no que diz respeito aos propósitos da mensagem, conseguia agora ver com um pouco mais de clareza algumas das implicações de a revelar.

O fanatismo religioso é algo a levar em conta e as profecias do livro do apocalipse fariam todos apontarem baterias para mim.

Teria de haver um contexto concreto na altura da revelação que me permitisse explicar que não se tratavam de profecias.

De facto, disse ao Cardeal que a mensagem vinha na chuva precisamente por causa disso. Não me era revelada ao espírito, não ouvia vozes, não me aparecia em sonhos. Era a leitura de algo que se encontrava naturalmente na natureza.

Depois de muito meditar cheguei a conclusão de que eu não era um escolhido, apenas era quem ouviu naquela altura. Estava atento. Eu não era especial. Podia ter sido outro qualquer. Mas a verdade é que não foi.

Mas ao realizar isto, percebi que em parte as minhas perguntas eram vãs. O “porquê eu” não se aplicava. Era eu porque sim. Era eu porque o tal determinismo dizia desde a criação que seria eu, porque naquele ponto do tempo todos os factores se tinham conjugado para que fosse eu, e nesse aspecto não poderia ter sido outro qualquer.

Claro que isto, por mais lógico que fosse encerrava uma contradição dentro da própria lógica. Eu era produto de um paradoxo. Isso afligia-me porque havia factores que eu não conhecia e que contribuiriam para que o paradoxo deixasse de o ser. Os paradoxos, por mais lógicos que sejam, são ilógicos, a não ser que se conheça a chave que faz com que deixem de o ser. Eu jamais poderia conhecer a chave. Para a conhecer eu próprio teria de ser a totalidade de Deus.

Isto, claro, reduzia-me a quem eu realmente sou, uma entidade com um entendimento limitado do universo, com as minhas certezas e as minhas dúvidas. Mas de uma coisa tive a certeza. Adiar a revelação da mensagem não traria benefício nenhum.

Como podes calcular, comecei de imediato a pensar como passar a mensagem. Sabia que se a mensagem fosse passada sem mais nem menos as religiões focadas tratariam de me tornar “a besta da terra”, ou um equivalente. Claro que eu não queria levar ninguém a adorar fosse o que fosse nem tinha como objectivo entronizar alguém, antes pelo contrário. Mas o perigo de ser confundido era despertar os fanatismos religiosos e de a mensagem ter consequências catastróficas.

Agarrei no telemóvel e liguei ao Rafael.

“Estou?”

“Rafael, fala o Gabriel.”

“Olá, Gabriel. Ia para lhe perguntar se está tudo bem, mas para me estar a ligar suspeito que se passe algo.”

“E passa. Rafael, tenho uma nova mensagem.”

“É algo de grave?” a preocupação na voz era evidente. Percebi que podia não ser um profeta mas tinha-me transformado num profeta da desgraça.

“Pode vir a ser. Podemos falar pessoalmente?”

“Claro. Está onde?”

“Estou aqui em Lisboa, na baixa, perto da sé.”

“Gabriel, posso ir buscá-lo, mas aí é complicado por causa do transito.”

“Eu sei. Mas podemos encontrar-nos na Alameda, junto à fonte luminosa dentro de uns vinte cinco minutos, meia hora…”

“Ai está óptimo. Espera-me do lado que o trânsito sobe, junto à avenida?”

“Pode ser.”

“Então, nesse caso, até já.”

Apressei o passo e tentei passar o mais incógnito possível, evitando as avenidas, mais movimentadas, e avançando pelas ruas paralelas. Consegui chegar com relativa rapidez ao meu destino. Aguardei um pouco. O Rafael não demorou muito.

Entrei para dentro do carro e dava para ver na expressão dele a curiosidade. Mas ele conteve-se. Cumprimentámo-nos e ele arrancou logo em seguida.

“Rafael, se não for grande o incomodo, gostava que me levasse a casa do Fernandes, em Sassoeiros. Podemos ir falando pelo caminho.”

“Não é um incomodo. Vamos então.”

Aguardei um pouco até sairmos da cidade, para não o distrair do trânsito. Só depois comecei a falar com ele.

“Rafael, vou dar-lhe a mensagem, mas quero, sob compromisso de honra, que não a divulgue já. Vou-lha dar porque por esta altura Roma já a conhece, e se sei que o Cardeal é um homem que não tomaria nenhuma acção, não posso afirmar o mesmo em relação ao resto da Igreja.”

“De acordo. Tem a minha palavra.”

Dei-lhe a folha que tinha dado antes ao Cardeal. Ele, como ia a conduzir, limitou-se a guardar a folha no bolso do casaco.

“Quero que tenha a mensagem para o caso de algo acontecer.”

“Pelos vistos tem algum receio…”

“Sabe, a igreja, por maiores que sejam os seus motivos religiosos, é um estado. Mais, é o ultimo fôlego do império romano. O império não caiu, ganhou uma forma diferente.”

“Acha?”

“Claro. Ao longo da história reis e imperadores prestaram vassalagem ao Papa. Era o Papa que definia quem tinha o direito divino de reinar. O clero era um estado dentro dos estados. Constantino foi um homem pragmático e a criação da igreja de Roma fez sobreviver o império até aos dias de hoje.”

“Mas a igreja já não tem hoje o peso que já teve…”

“Sim. O facto de os estados se afirmarem laicos foi um golpe para a igreja, mas a sua influência ainda se faz sentir.”

“É capaz de ter alguma razão. Mas o que é que isso tem a ver com a mensagem?”

“A mensagem tem o potencial de incomodar os poderes religiosos, não só da igreja católica, mas do islão e do judaísmo também. Mas neste momento ainda só é conhecida por Roma.”

“Mas porque?”

“Sabe, a mensagem é muito dúbia e vaga nos seus propósitos. Ao contrário das outras que se me tornavam obvias, esta não. E creio que não é para ser óbvia. Quer isto dizer que o teor da mensagem depende das múltiplas interpretações que se possa fazer. Pode ser um apelo ao entendimento entre as várias correntes que derivam da lei de Moisés, pode falar da unificação das religiões numa só ou até anunciar o fim da religião.”

“Tudo isso?”

“Sim. Mas também me pode pôr numa posição ingrata. Conhece o livro do Apocalipse?”

“Quase nada.”

“Nesse livro é anunciado um falso profeta que unificará as religiões em adoração a um falso Deus. Ora, quem interprete a mensagem como uma unificação das religiões ver-me-á como esse falso profeta, um emissário de Lúcifer, e verá o final dos dias na mensagem. E nesse caso, para qualquer fanático eu seria um alvo a abater. Dai as minhas reservas.”

“Compreendo.” Disse ele com uma expressão grave.

“Sabe, fui falar com o Cardeal Patriarca de Lisboa por dois motivos. Porque ele já tinha manifestado a vontade de falar comigo e porque procurava uma iluminação em relação a esta mensagem.”

“E conseguiu a iluminação?”

“Não. Mas só depois da conversa, depois de sair, me apareceu esta inquietação.”

“E o que se propõe fazer?”

“Bem, gostaria, se achar possível, revelar esta mensagem numa entrevista televisiva. Assim poderei explicar que não sou profeta nenhum, nem sou um iluminado. Que sou um simples mensageiro. Tentar retirar a possibilidade apocalíptica da equação. Que me diz?”

“A única coisa que digo é: Quando é que quer dar a entrevista?”

“Quando é que acha possível?”

Ele parou o carro à porta da casa do Fernandes.

“Por mim, creio que quanto mais cedo melhor.”

Tirou finalmente o papel do bolso e leu-o. Teve de o reler umas quantas vezes. Depois olhou para mim.

“Percebo o que quer dizer. Isto pode querer dizer tudo.”

“Sim. E pode não querer dizer nada também.”

Pegou no telemóvel e fez uma chamada. Anunciou a minha vontade de dar uma entrevista que teria uma revelação em directo.

“Como eu pensei.” Disse quando desligou “É quando quiser. Só tem de nos dizer o dia e a hora.”

“E que tal amanhã, a seguir ao noticiário?”

Nova chamada. Detalhes combinados.

“Quer que o venhamos buscar?”

“Ainda não sei. Vou falar com o Fernandes. Pode ser que ele queira ir também. Se ele for não vou precisar de transporte. Mas amanhã ligo-lhe e acertamos esses pormenores.”

“Fico à espera do telefonema.”

Despedimo-nos, sai do carro e entrei em casa.


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