quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Chuva - XXXIV

 

A minha casa parecia uma repartição de finanças em obras. Papeis por todo o lado.

As estantes tinham cedido e despejado os livros todos no chão. Tivemos de fazer algum esforço para entrar, uma vez que havia livros a bloquear a porta. Mas lá conseguimos.

A minha primeira preocupação foi ver o estado do sensor. Parecia inteiro. Desmontei-o e a seguir desliguei o computador.

“Achas que podemos levar isto para tua casa?”

“Acho que devemos.”

Fui à cozinha buscar uns sacos que enchi com as minhas roupas, procurei alguns livros no meio da confusão que pus de lado para levar também e levamos tudo para junto da porta do prédio. O Fernandes foi buscar o carro e carregamos tudo rapidamente.

“O que é que vais fazer em relação ao resto dos livros?”

“Bem, hei-de voltar. Nessa altura logo arrumo tudo. Para já acho que levamos o que preciso.”

Assim que chegamos a Sassoeiros montei o computador e procurei um sítio onde pudesse instalar o sensor. Só depois de ter a certeza de que tudo estava a funcionar fui tomar um banho e vesti as minhas roupas.

O Fernandes tinha saído. Fiquei sozinho. Só nessa altura é que me dei ao luxo de pensar naquilo que tinha falado com ele.

Sabes, uma coisa é saberes que o teu livre arbítrio é ilusório, mas ainda assim teres a hipótese de escolheres entre opções limitadas. Outra completamente diferente é saberes qual o resultado final de algo, independentemente do que escolhes.

As minhas escolhas tinham acabado.

Mas sabes que foi um alívio aperceber-me disto?

É curioso, mas apercebi-me que há uma estranha liberdade no facto de te aperceberes que não tens liberdade. Parece um contra-senso, não é? Mas do meu ponto de vista até não é. Sabes, quando te pensas livre acabas por ter que lidar com a responsabilidade dos teus actos. Consequentemente com a culpa dos teus erros e com a alegria das tuas vitórias. Mas se não és livre não tens responsabilidade de nada, logo não há alegria na vitória, mas também não há culpa. As vitórias são de outrem, mas as culpas também. Apenas te limitas a cumprir uma função. E apercebi-me de que há nisto um desprendimento tão grande que liberta mais do que a liberdade de escolha.

Eu sei que isto que acabei de te dizer te causa confusão. Achas que a liberdade, ou por outra, a liberdade de escolha é algo de fundamental…

…mas não é, acredita. Apenas te trás a pressão da responsabilidade das tuas escolhas.

Sei que nunca conseguirás ver isto assim, e ainda bem. Uma conclusão destas não pode ser imposta. Muitos regimes de esquerda e direita tentaram fazer impor as escolhas do estado não deixando margem aos cidadãos e aquilo que aconteceu e sempre acontecerá é que, mais tarde ou mais cedo, esses regimes caem.

Mas o meu caso era diferente. Além de não sentir que alguém me impunha esta conclusão, não havia ninguém, pelo menos identificável, que estivesse a tomar estas decisões por mim, e o que havia era tão…

…superior? Diferente? Acima? Nem sei que adjectivo usar, mas fosse o que fosse, era algo tão além da minha compreensão que soube que apenas tinha de me sentar e desfrutar o passeio.

E estava eu perdido nestes pensamentos quando o som de um trovão fez anunciar a chuva que ai vinha.

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