segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Chuva - XXIX

 

Acordei.

Tinha fome. Era quase de noite e não tinha comido nada o dia todo. Tirei uma sandes e uma garrafa de água da minha mochila e fui comendo.

Depois de comer fiquei ali sozinho dentro do carro. Se por um lado me apetecia ir ver do Fernandes, por outro isso implicava entrar novamente naquela sala e enfrentar um monte de gente e isso não queria fazer.

Comecei a pensar na situação e quanto mais pensava mais me apercebia que não estava minimamente preparado para lidar com ela. A minha mascara tinha-me servido bem enquanto eu era invisível, mas agora mostrava-se ineficaz. Tinha de criar algo de novo. Não podia apenas tentar adaptar-me.

Situações como a de há umas horas atrás, ou como a minha conversa com o Rafael, tinham-me demonstrado que o meu verdadeiro eu tinha tendências para aflorar quando havia situações com as quais eu não contava ter de lidar.

Mas também sabia que não o conseguiria fazer de um dia para o outro, precisava de algum tempo e de algum espaço. Tinha de ver com clareza o que me esperava para saber como agir quando lá chegasse.

Foi este o momento em que a mascara que usei durante tanto tempo começou a ser descartada. Já não havia utilidade para ela, e se eu me queria preservar havia que ser algo diferente. Tinha de ser alguém capaz de lidar com as pessoas, porque as pessoas viriam ter comigo, quer eu quisesse, quer não.

Aliás, o mundo ia querer saber de mim. Hoje em dia havia muito poucos fenómenos locais e algo desta dimensão era transmitido em directo para o mundo inteiro. Mas quem é que eu seria?

Comecei a construir meticulosamente tudo o que vieste a conhecer depois. Cada pormenor. Cada situação e reacção à mesma. Como se me estivesse a programar a mim próprio. Mas para ser sincero, aquilo que mais me custava era ter a noção de que as pessoas quereriam tocar-me. Isto fazia-me tremer. Enojava-me.

Mas este meu reflexo tinha de ser contido, percebes? Se eu não o fizesse o meu gesto seria sempre interpretado de alguma maneira, certa ou errada. Ainda assim, antes o fosse da maneira errada, como a leitura que o Rafael tinha feito. Creio que se ele tivesse a mínima suspeita do porquê de eu não lhe ter estendido a mão, as consequências seriam muito más.

Foi ali, no parque de estacionamento do Hospital, sentado num carro, que o novo Gabriel nasceu. Ainda demoraria algum tempo a saber tudo acerca de si próprio e tinha de ter cuidado com as falhas, mas nasceu e começou a existir.

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