quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Chuva - XXXII

 

Espero que estar a contar-te estes pormenores todos não seja fastidioso para ti. Eu sei que se calhar estou a esmiuçar demais, mas sabes, tudo isto foram peças que se foram encaixando uma a uma.

Quando olho para trás é como se um pedreiro estivesse andado a construir uma parede, a assentar tijolo a tijolo, com calma e sempre a rever o alinhamento, para ter a certeza de que a parede estava direita e nivelada.

Por isso se achares que estou a ser muito pormenorizado ou até chato, diz…

Mas adiante.

“Então? Que é que achaste da entrevista?” perguntei ao Fernandes assim que nos encontramos novamente.

“Gostei. Fizeste bem em esquivar-te a algumas coisas, mas o que gostei mesmo foi o facto de deixares aquela mensagem de esperança no fim. Mas olha lá, achas mesmo aquilo?”

“Sabes, é bem capaz. Talvez esta seja a oportunidade de lavar a cara a Lisboa, corrigir os erros que foram sendo feitos ao longo dos anos. Não achas?”

“Era bom que fosse… Mas tens noção que Lisboa vai ser a presa dos senhores do betão e que o que vai interessar é a reconstrução rápida. Acho que isso vai levar a que se comece mal outra vez.”

“Sim, mas sabes, acho que está na hora das pessoas exigirem.”

“E achas que as pessoas vão exigir alguma coisa?”

Estava a tentar meter-me num novo papel, é certo e ao fazê-lo procurava dar-me uma aparência mais…

…humana, mas claro que eu sabia que ele tinha toda a razão. Parte da destruição tinha sido causada porque sai mais caro cumprir regras do que subornar alguém. É que as regras tem de se cumprir sempre. Já o suborno, depois de feito uma vez torna-se algo que dura quase indeterminadamente. O medo de parte a parte acaba por conseguir mais do que o dinheiro tinha conseguido originalmente. O problema é mesmo quando acontece qualquer coisa, mas há sempre o pensamento de que “não se há-de passar nada, e mesmo que passe não há-de haver problema…”.

Claro que isto leva a que o próprio suborno seja um factor de concorrência. Quem joga segundo as regras sai prejudicado. E é assim que o suborno se institucionaliza e se torna pratica corrente. E é claro que quando vês que o parceiro do lado se dá bem, tu também queres…

Não achas? Mesmo? Então diz-me lá se não falaste já com um amigo para conseguires qualquer coisa com mais facilidade? É que nem estou a falar de dinheiro que passe de mãos, mas por exemplo, teres uma consulta a qualquer coisa marcada num hospital para dai a um ano e como conheces alguém, a consulta acabar por ser dai a um mês…

É diferente? Em quê? Já pensaste que o teu benefício prejudica invariavelmente alguém?

Claro que tu achas que é a tua saúde, por isso…

…mas, e a saúde do outro? E se nada disso acontecesse?

Claro que se entrasses por aqui terias de ter outras condições, como por exemplo os próprios médicos cumprirem os horários estipulados de maneira a que toda a gente pudesse ser atendida…

Mas isto espalha-se em todas as áreas da sociedade. Dei-te este exemplo porque afinal ninguém leva a mal que digas “pá, lá me consegui safar porque conhecia lá um tipo…”. Há uma permissividade até porque muitos dos que refilam acerca deste estado de coisas não o fazem por uma noção de justiça. Fazem-no porque a eles não coube nada do bolo e é isso que é injusto.

Não és muito diferente. A escala das coisas é que é diferente. E como a escala é diferente, as consequências também o são. O teu acto prejudica uma ou duas pessoas, o do construtor, se calhar, umas centenas, o de um ministro um país inteiro. Mas é tão condenável uma coisa como a outra e enquanto não tiveres noção disso és igual a quem condenas e não tens, portanto, moral alguma para condenar.

Mas quando é a nosso favor é sempre justificável, não é?

“Pois, se calhar ninguém vai mesmo exigir nada. Vai toda a gente ficar à espera que se lhes atire um osso e depois volta tudo à rotina do costume.”

O Fernandes desatou a rir.

“Sabes, pá, esta tragédia não passou de uma grande oportunidade de negócios, e aposto que já há muita gente a esfregar as mãos e a perguntar porque é que isto não aconteceu há mais tempo.”

Sorri para ele.

Sem duvida que a mais viciante e poderosa das drogas é o dinheiro.

Sem comentários:

Enviar um comentário

O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!