Espero que estar a contar-te estes pormenores todos não seja fastidioso
para ti. Eu sei que se calhar estou a esmiuçar demais, mas sabes, tudo isto
foram peças que se foram encaixando uma a uma.
Quando olho para trás é como se um pedreiro estivesse andado a construir
uma parede, a assentar tijolo a tijolo, com calma e sempre a rever o
alinhamento, para ter a certeza de que a parede estava direita e nivelada.
Por isso se achares que estou a ser muito pormenorizado ou até chato, diz…
Mas adiante.
“Então? Que é que achaste da entrevista?” perguntei ao Fernandes assim que
nos encontramos novamente.
“Gostei. Fizeste bem em esquivar-te a algumas coisas, mas o que gostei
mesmo foi o facto de deixares aquela mensagem de esperança no fim. Mas olha lá,
achas mesmo aquilo?”
“Sabes, é bem capaz. Talvez esta seja a oportunidade de lavar a cara a
Lisboa, corrigir os erros que foram sendo feitos ao longo dos anos. Não achas?”
“Era bom que fosse… Mas tens noção que Lisboa vai ser a presa dos senhores
do betão e que o que vai interessar é a reconstrução rápida. Acho que isso vai
levar a que se comece mal outra vez.”
“Sim, mas sabes, acho que está na hora das pessoas exigirem.”
“E achas que as pessoas vão exigir alguma coisa?”
Estava a tentar meter-me num novo papel, é certo e ao fazê-lo procurava
dar-me uma aparência mais…
…humana, mas claro que eu sabia que ele tinha toda a razão. Parte da
destruição tinha sido causada porque sai mais caro cumprir regras do que subornar
alguém. É que as regras tem de se cumprir sempre. Já o suborno, depois de feito
uma vez torna-se algo que dura quase indeterminadamente. O medo de parte a
parte acaba por conseguir mais do que o dinheiro tinha conseguido
originalmente. O problema é mesmo quando acontece qualquer coisa, mas há sempre
o pensamento de que “não se há-de passar nada, e mesmo que passe não há-de
haver problema…”.
Claro que isto leva a que o próprio suborno seja um factor de concorrência.
Quem joga segundo as regras sai prejudicado. E é assim que o suborno se
institucionaliza e se torna pratica corrente. E é claro que quando vês que o
parceiro do lado se dá bem, tu também queres…
Não achas? Mesmo? Então diz-me lá se não falaste já com um amigo para
conseguires qualquer coisa com mais facilidade? É que nem estou a falar de
dinheiro que passe de mãos, mas por exemplo, teres uma consulta a qualquer
coisa marcada num hospital para dai a um ano e como conheces alguém, a consulta
acabar por ser dai a um mês…
É diferente? Em quê? Já pensaste que o teu benefício prejudica
invariavelmente alguém?
Claro que tu achas que é a tua saúde, por isso…
…mas, e a saúde do outro? E se nada disso acontecesse?
Claro que se entrasses por aqui terias de ter outras condições, como por
exemplo os próprios médicos cumprirem os horários estipulados de maneira a que
toda a gente pudesse ser atendida…
Mas isto espalha-se em todas as áreas da sociedade. Dei-te este exemplo
porque afinal ninguém leva a mal que digas “pá, lá me consegui safar porque
conhecia lá um tipo…”. Há uma permissividade até porque muitos dos que refilam
acerca deste estado de coisas não o fazem por uma noção de justiça. Fazem-no
porque a eles não coube nada do bolo e é isso que é injusto.
Não és muito diferente. A escala das coisas é que é diferente. E como a
escala é diferente, as consequências também o são. O teu acto prejudica uma ou
duas pessoas, o do construtor, se calhar, umas centenas, o de um ministro um
país inteiro. Mas é tão condenável uma coisa como a outra e enquanto não tiveres
noção disso és igual a quem condenas e não tens, portanto, moral alguma para
condenar.
Mas quando é a nosso favor é sempre justificável, não é?
“Pois, se calhar ninguém vai mesmo exigir nada. Vai toda a gente ficar à
espera que se lhes atire um osso e depois volta tudo à rotina do costume.”
O Fernandes desatou a rir.
“Sabes, pá, esta tragédia não passou de uma grande oportunidade de
negócios, e aposto que já há muita gente a esfregar as mãos e a perguntar
porque é que isto não aconteceu há mais tempo.”
Sorri para ele.
Sem duvida que a mais viciante e poderosa das drogas é o dinheiro.
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