quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Chuva - XLI

Mas antes deixa-me falar-te noutra coisa. Comecei a aproveitar cada momento que tinha para aperfeiçoar o programa, automatizá-lo, afiná-lo.

Consegui chegar ao ponto em que ele corria as cadeias alfanuméricas em busca de palavras com base num dicionário e assim que apanhasse uma verificava se era um caso isolado ou se havia mais palavras com base no padrão seguido até ai, isto é, se cinco letras depois aparecia um artigo ou outra palavra reconhecível. Quando finalmente consegui, criei uma rotina que mandava a mensagem, já limpa, directamente para o meu telemóvel, por SMS.

Isto fez com que eu não ficasse dependente do acesso ao computador, caso acontecesse alguma coisa, percebes? Apenas tinha de me assegurar com alguma regularidade de que o computador estava a funcionar.

Infelizmente só teria certeza de que tudo isto funcionaria quando recebesse uma nova mensagem. Funcionou bem com as anteriores cadeias o que me deixava optimista, mas eu sabia que poderia haver algo que me tinha escapado…

 Mas voltando atrás, por estas alturas parecia que toda a gente estava interessada em mim. Quando as pessoas em geral descobriram onde eu estava a viver aconteceu aquilo que se passava à porta do meu prédio em Almada. Claro que quem não estava muito contente era o Fernandes, como podes calcular.

Ter a casa sempre com dezenas de pessoas à porta era, no mínimo inconveniente. Isto para não falar nas flores e nas velas.

“Devias acabar com isto, pá. Dizer-lhes qualquer coisa…” dizia ele.

“Mas o que é que queres que lhes diga? Que os enxote? Deixa-os estar. Ao fim ao cabo não incomodam nada, não fazem barulho…”

Ficava sempre a resmungar qualquer coisa e afastava-se.

Houve um dia em que cheguei ao pé dele e lhe perguntei “Mas queres que eu saia daqui?”

Ele olhou para mim, com o ar mais escandalizado do mundo e perguntou, com a voz carregada de preocupação “Eu fiz alguma coisa que não tivesses gostado, ou dei-te essa sensação?”

“Não, pá, mas sei que não gostas de ter este pessoal todo à porta…”

“Pá, não gosto, mas eles estão lá fora. Por mim ficas e não vais para lado nenhum…”

Claro que além das pessoas havia também o correio. Comecei a receber cartas de todo o mundo, muitas delas nunca cheguei a saber o que diziam, a maior parte delas a agradecer, com orações, e ai sim, com pedidos. Pediam para eu interceder por eles, por familiares, para terem melhores empregos, mais dinheiro…

…até pediam sorte ao jogo…

…como se eu fosse um curandeiro, um médium ou andasse a vender a banha da cobra…

Esta é uma faceta que não consigo entender nas pessoas. Mesmo.

Sabes, parece que são a única estrela do seu próprio universo, e Deus, a existir, está lá somente para lhes satisfazer as necessidades e os caprichos. Todo o universo se devia realinhar para serem bonitos, ricos e saudáveis.

Quando é que as pessoas vão perceber que não são nada num universo que tem mais estrelas do que uma praia tem grãos de areia?

Enfim…

Mas além disto começaram também a chover convites para festas, aparições publicas, inaugurações, de revistas a querer saber a minha vida privada, pedidos de entrevistas, alguns sérios, mas a maior parte nem por isso…

…muitas das revistas ofereciam dinheiro só pela minha comparência…

Claro que nunca aceitei nenhum, mas isso nunca os dissuadiu de tentar.

Mas um dia bateram à porta. Olhei de longe e vi o Fernandes a falar com um homem. Estava com cara de poucos amigos. Ainda me lembrava da maneira como ele me abordou pela primeira vez, por isso nem estranhei muito a expressão dele. O que estranhei foi o facto de ele o convidar a entrar.

O homem entrou e deu de caras comigo. Sorriu.

“Sr. Gabriel?”

“Sim.”

“Boa tarde. Deixe que em primeiro lugar me apresente. Chamo-me João Chaves e sou pároco numa paroquia não muito longe daqui.”

Cumprimentei-o com um aperto de mão. Ele continuou.

“Sabe, estou aqui em nome da minha paróquia para o convidar para a cerimónia de inauguração do nosso novo Centro Paroquial. Estivemos para lhe mandar um convite, mas achei que seria melhor vir pessoalmente, até porque, confesso, sinto alguma curiosidade em relação a si…”

Como te disse não fiquei surpreendido. Sabia que mais tarde ou mais cedo a religião me ia entrar pela porta adentro. Ainda não fazia ideia era de como aconteceria.

De qualquer maneira, para ser franco, acho que preferi assim, com um simples padre a convidar-me para um evento local, ao invés de ter um confronto directo com hierarquias mais altas.

É que eu nunca consegui lidar muito bem com a religião, embora a tenha tentado entender. Mas para ser franco não me fazia confusão a existência de um Deus, de profetas ou até de um messias. Fazia-me confusão a institucionalização destas coisas, a burocratização do sagrado.

“E diga-me, que dizem os seus superiores deste convite?”

“Os meus superiores? Bem, não dizem nada porque não os informei, para ser franco. Mas porque pergunta?”

“Bem, digamos que a minha situação não será muito bem vista pela igreja, penso eu…”

“É verdade que por norma não lidamos bem com a profecia…”

“…Sim, eu sei, ao ponto de matarem os vossos próprios santos.”

Ele sorriu perante a minha ironia.

“…pois, mas a verdade é que temos de admitir que o seu caso é, no mínimo, sui generis.”

“sim, e além disso, não se pode dizer que se trate de profecias, portanto nem sequer me enquadro naquilo com que não lidam bem.”

“Não são profecias?”

“Não.”

“Então são o quê?”

“Avisos, talvez…”

Ele encolheu os ombros.

“De qualquer forma gostava de poder contar com a sua presença. Acho que era também um sinal para os paroquianos que vão estar presentes.”

“É um sinal, mas pode não passar uma ideia correcta.”

“Como assim?”

“O facto de eu aparecer pode ligar-me à igreja e dar às pessoas a impressão de que eu pertenço a uma religião, coisa que não é verdade.”

“Diga-me, Gabriel, você não é um homem de fé?”

A mesma pergunta. Contexto diferente.

“Depende da definição. Pela sua, acho que não.”

“Mas como é que pode não o ser e receber esses sinais divinos?”

“Eu nunca disse que são sinais divinos. Pura e simplesmente não sei ao certo o que são. Portanto, até o saber, considero todas as possibilidades.”

“É portanto um céptico.”

“Sou realista.”

Ele encolheu os ombros.

“De qualquer forma, o convite está feito. E gostaria muito de contar com a sua comparência, se lhe for possível, claro.”

Olhei para o Fernandes. Ele ficou alguns momentos a olhar para mim, sem duvida a pensar no que me devia dizer, ou se havia de me dar alguma indicação. Por fim limitou-se assentir com a cabeça enquanto encolhia os ombros. Percebi-o. Era uma espécie de mal-não-faz-por-isso-porque-não?

“E quando é que será a inauguração?”

“No próximo sábado, às quinze horas.”

“Muito bem. Estaremos lá.”

O Fernandes olhou para mim com um olhar que dizia “que é que queres dizer com estaremos?”. Eu sorri ligeiramente. Já que ele me tinha metido nisto ia ter que sofrer comigo a penitência deste sacro ofício.

Mas o acontecimento mais curioso nessa semana nem foi o convite do padre…


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