terça-feira, 29 de outubro de 2024

Renascimento (XXXVIII de XL)

 Saiu da sala, trancou a porta e ia para entregar a chave a Miranda, mas ela recusou.

-Não. Essa chave é tua. Independentemente do que decidires, essa chave é tua. Podes chegar aqui e levar tudo, podes trazer o que tens na loja para aqui. Mas ninguém vai ter acesso a esta sala sem a tua permissão expressa.

-Porquê?

-Ora, acho que a resposta a essa pergunta é óbvia.

Ele sorriu.

-Não perguntava o porquê desta sala. Perguntava o porquê disto tudo.

Miranda ficou parada, a pensar como responder àquela questão.

-No dia em que sai daqui a única coisa que ocupava os meus pensamentos era vingança. Vim aqui à procura de respostas. E tive-as. Durante anos carreguei comigo medo e culpa pelo desaparecimento do meu marido. Tu não só me fizeste entender e disseste o porquê de forma clara, como também fizeste tudo para aliviar a minha culpa. Mas o saber porquê acendeu em mim um fogo, uma fúria…

-Sentiste-te traída!

-Sim. Traída. Mas depois, não só algumas coisas que aconteceram me começaram a pôr coisas em perspectiva, como comecei a pensar no que tu terias sentido. No direito que tinhas, também a reclamar a tua vingança. E no entanto, não o fizeste. E mesmo o teu desaparecimento teve a intenção de causar o menor impacto possível dentro de todas as circunstâncias. E conseguiste. No fundo, a única coisa que sobrava ainda era a minha certeza que o meu marido não tinha morrido e a minha teimosia em encontra-lo. E depois houve alguém que me perguntou se o que eu queria era justiça ou vingança. E eu decidi pela justiça. Não sei se tiveste conhecimento de alguma coisa.

-Leio o jornal todos os dias. – Respondeu ele com um sorriso.

-Então sabes o que aconteceu. O que provavelmente não sabes é que tudo aquilo aconteceu porque eu me mexi e ao descobrir que havia imensas vítimas da mesma pessoa, não podia continuar calada. Trazer tudo aquilo a lume, poder falar abertamente do que se passou, foi um balsamo. Mas, entretanto, consegui declarar o óbito de Robert MaCallum. Como calculas herdei tudo. Mas nada disto é meu. 

-Bem, agora é.

-Não Rob. Nada disto é meu. E eu sei que tu também não queres nada, não precisas de nada. E sei que não tens qualquer orgulho no trabalho que permitiu que tudo isto acontecesse. Há quanto tempo é que não ouves uma das músicas daqueles cinco álbuns?

-Para te ser franco, há cerca de nove anos. Não só não me revejo no nome, também não me revejo minimamente na música.

-Bem, Rob, eu não espero que te venhas a rever na música, ou que te venhas a rever no nome. Robert MaCallum está morto em definitivo. Mas quero que saibas que esse tempo e esse trabalho podem dar frutos. Que podem servir para materializar os sonhos e aspirações de uma nova geração. Que pode servir para proteger outros daquilo que lhe aconteceu.

Rob acenou, entendendo.

-E porquê aqui? 

-Porque tu estás aqui. Não te mudavas daqui para outro lado, pois não?

-Não.

-Então, tens aí a razão.

Entretanto Patrícia chegou, interrompendo a conversa.

Aproveitaram para dar mais uma volta pelo complexo, prestando especial atenção à área dos três estúdios.

-Porque é que queres que seja eu a escolher o material para aqui? – Perguntou Rob a Miranda, o que espevitou o ouvido de Patrícia. – Deves ter engenheiros de som que fariam este trabalho.

-Pois, mas tu tens outro tipo de conhecimento, mais no que um estúdio precisa, não só de um ponto de vista técnico, mas também do criativo. Acredito que a maneira como montares estes estúdios, desde o material que aqui puseres, até á disposição e áreas de trabalho, vão ajudar à criatividade.

-Só isso? Não me queres agarrar aqui, de alguma maneira?

-Patrícia, - disse Miranda, virando-se para ela – O que foi que te disse quando te pedi para ires falar com o Robert?

-Que eu não deveria tentar forçar nenhum envolvimento e que qualquer resposta dele deveria ser dada como definitiva. Se ele recusasse, eu não deveria insistir.

-E mais?

-Que deveria tornar claro que o envolvimento dele iria até ao nível que ele desejasse.

-Como assim? – Perguntou Rob a Patrícia.

Patrícia sentiu-se embaraçada por a pergunta lhe ser feita directamente, mas recompôs-se e respondeu.

-Estou habituada a levar as ordens de Miranda à letra, pelo que no meu entendimento, salvo o cargo de directora e de gestora, o Robert poderia tomar qualquer cargo que assim desejasse dentro da organização.

Rob ficou a olhar para Patrícia com um ar sério, enquanto remoía a sua resposta nos seus pensamentos. Miranda estava calma, mas Patrícia estava claramente nervosa.

-Ela sempre foi assim? – Perguntou Rob a Miranda, continuando a observar Patrícia.

-Sim. Eficientíssima e discreta. – Respondeu Miranda, algo divertida com a atitude de Rob, mas sem o deixar transparecer.

-Não sei se ela vai conseguir ficar discreta por aqui durante muito tempo. Não consegues que a moça descontraia?

Por esta altura já Miranda sorria e Patrícia corava.

-Eu tento. Aliás eu tinha esperança que nestes meses que passou aqui sem mim já tivesse descontraído um pouco.

-Nem por isso. Vê lá que a primeira vez que me dirigiu a palavra foi quando a mandaste falar comigo. Para te ser franco, acho que a única pessoa com quem ela falou na povoação toda foi o Zé. As velhotas chamam-lhe a-do-nariz-empinado.

Miranda não aguentou e desatou a rir enquanto Patrícia parecia querer que se abrisse um buraco por baixo dela. Miranda foi direita a ela e abraçou-a, gesto que a surpreendeu ainda mais.

-Não lhe ligues. Ele está só a brincar contigo.

Patrícia olhou para Rob e viu que ele já olhava para ela com um sorriso caloroso.

-Patrícia, - disse ele – tu és gestora de uma fundação. Já não és assistente pessoal. Pelo que eu vi, conseguiste manter uma obra nos eixos e lidar com aqueles trabalhadores todos. Sei que deves ser extremamente eficiente no que fazes. Mas já não estás nos estados unidos.

Patrícia acenou com a cabeça, entendendo e recompondo-se.

-O que é que achaste das ordens de Miranda?

-Estranhas. Mas depois lembrei-me, quando tive de ir a tua casa, que esta era a morada para onde eu tinha mandado a guitarra. Portanto tu eras claramente alguém que Miranda conhecia e não me cabe questionar os motivos dela.

-Boa resposta.

-Então Rob? O que dizes?

Rob olhou em volta.

-Vou montar os estúdios. Mas vai ser preciso uma equipa para montar isto tudo.

-Tens alguma sugestão?

-Sim. Há bastante desemprego por aqui, ou empregos sazonais. Acho que não deve ser difícil arranjar pessoal para trabalhar por aqui. Eu trato disso, se tu prometeres que lhes dás emprego fixo a seguir, e formação aos que precisarem, em vez de ir buscar pessoal de fora.

-Prometido. 

-Então, para já, fazemos isto, e depois vai-se vendo. – Disse o Rob.


2 comentários:

  1. Gosto deste Rob e começo a gostar (um bocadinho) da Miranda.
    Tens de dar-me tempo para me despedir, lentamente, destas personagens para começar a entrar na trama da vida de outras...para agora, vou lendo o Renascimento do renascido!! ;)

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    1. E fazes bem... Mas comecei a publicar o consequências esta semana para deixar a história num ponto... Complicado. Amanhã, quando te despedires desta gente, podes começar a ver os outros e...

      ;)

      Abraço, Janita

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