Dois dias depois uma quase recomposta Miranda batia à porta de Rob, às nove da manhã.
Um Rob ainda claramente ensonado veio à porta.
-Aproveitei e trouxe o teu pão fresco. – Disse ela, esticando um saco de pão com um sorriso.
-Não sei se posso pagar um serviço de entregas tão executivo… - disse ele, levantando o sobrolho, mas claramente surpreendido e divertido.
-E se a tarifa for o pequeno-almoço?
-Bem, se é só isso, acho que se pode arranjar qualquer coisa… - disse ele franqueando a porta com um sorriso.
Ela entrou e deu-lhe o saco, sentando-se numa cadeira na mesa da cozinha enquanto via, apenas com uns boxers largos, a cortar o pão e a começar a fazer torradas.
-Leite? Café? Chá?
-Chá?
-Sim. Verde, preto, Earl Grey…
-Pode ser um Earl Grey com uma pinga de leite?
-Meu Deus! Que britânica! – Respondeu Rob com uma pronuncia inglesa snob, fazendo uma expressão condizente a acompanhar.
Ela riu-se com a expressão dele. Não conseguia despregar os olhos dele. Seguia cada movimento.
-Estás a começar a incomodar-me.
-Com o quê?
-Com esse olhar.
-Desculpa. Estou aqui e não consigo parar de pensar como foram estes anos… Rob, eu gostava de conseguir exprimir em palavras o quanto eu te peço desculpa. Eu não consigo imaginar sequer o que te passou pela cabeça. O quanto te magoei…
-Ouve, tens de perceber uma coisa. Quando eu te disse que Robert MaCallum morreu, não quis dizer que foi apenas uma troca de nome e de cara. Eu não estou aqui disfarçado de quem não sou. Eu olho para mim e vejo-me como alguém que acordou de um coma profundo há seis anos atrás e que estranhamente se recorda de coisas que se passaram com outro alguém. E é nesse sentido que te posso dizer que não te menti quando aqui chegaste.
Ele pôs um pacote de leite na mesa, uma chávena com água a ferver e uma saqueta de chá Earl Grey, uma embalagem de manteiga e fatias de pão levemente torrado. Enquanto começava a barrar a manteiga no seu pão e ela o imitava, ele continuou:
-Mas posso dizer-te que o teu marido se sentiu mesmo muito deprimido com a situação daquele álbum. Mas sabes, a questão importante nem foi o que fizeram com as músicas, mas sim o facto de ele perceber que não havia o mínimo respeito pela sua vontade e tudo era feito à sua revelia. E todo este processo tinha-te envolvida. E eu olhava para ti e duvidava se apenas fazias o que tinha de ser feito por causa do contracto, que era aquilo que dizias todos os dias, ou se os teus motivos se alinhavam mais com o que era melhor para ti. E depois veio aquela ameaça, aquelas fotos e a confiança desapareceu. Como é que ele podia acreditar em ti?
Miranda olhava já para ele com os olhos a encher-se de lagrimas, mas ele sorriu e disse com uma suavidade calmante:
-Pensa assim: Isto já aconteceu. As consequências daqueles teus actos já não importam. Serena o teu espirito. Ouve, entende e fecha esse capítulo. Não há mágoas aqui. Certo?
Ela olhou para ele e sorriu, enquanto uma lágrima teimou ainda em soltar-se, mas sorriu, respirou fundo, abanou-se com as mãos, agarrou na sua torrada e deu mais uma dentada.
-Afastou-se porque não suportava olhar para ti todos os dias com dúvida no coração. Por mais que o coração lhe dissesse que tinha de haver uma explicação, mesmo que ela existisse, subsistiria sempre uma dúvida. Além disso, afastar-se nulificaria toda a situação. A única pessoa a quem poderiam chantagear eras tu, mas ele já tinham contratualmente o controlo do catálogo. Tudo pesado, ele viu que não havia nada que deixar para trás e simplesmente partiu. Andou pela Ásia, pela India, médio oriente, África. Conheceu gentes, estilos de vida, comeu coisas exóticas, mas havia sempre um problema. Por mais longe que ele estivesse, havia sempre alguém que acabava por o reconhecer. E foi assim que ele chegou e essa clínica ilegal, e foi aí que ele ficou.
-Porque é que tu… ele não falou comigo?
-Porque ele não conseguiria acreditar em ti. Não é difícil perceberes isso, pois não?
-Não, não é. Quer dizer, o meu ego grita-me que se ele me amasse…
-O problema é que a desconfiança corrói o amor. Se tu o amasses nunca lhe teriam mentido.
Ela ficou em silêncio contemplando aquela espada de dois gumes.
-Quanto à segunda parte da tua pergunta, curiosamente de lá vim para Portugal, influenciado por um Português que vivia no Brasil há décadas, mas que não se calava com o dia em que ia poder voltar. Entrei pelo Norte e fui vagueando para sul. Cheguei aqui bastante entrado na noite. Entrei ali no Zé, e acredita que não foi uma boa experiência.
-Como assim?
-Digamos que tive uma recepção algo acalorada.
-Só te posso dizer o quanto acho isso estranho. Parece que sou bem recebida onde quer que vá…
-Tu és uma miúda gira e sofisticada… Quer dizer, foste, agora és uma mulher madura, gira e sofisticada.
-Preferia a primeira versão…
-Olha, já eu acho a segunda mais interessante.
-Então fica essa.
-Mas eu, quando aqui cheguei, parecia um vagabundo, roupas a precisar de descanso, sujo, barba desgrenhada e cabelo comprido às rastas… Ainda perguntei onde é que podia passar a noite por aqui, mas puseram-me a andar sem cerimónia. Acabei por montar uma tenda mesmo à saída da aldeia e passei lá a noite. De manhã fui acordado pela polícia. Queriam decididamente enxotar-me daqui para fora. E eu, teimoso, achei que era aqui que ia ficar.
-Só para contrariar?
-Mesmo! – Disse ele rindo. – E não foi fácil, mas depois de ter comprado a casa foi-se tornando simples.
-Então e, durante este tempo todo…? – Insinuou ela.
-Não, não fui santo. Mas também não fui nenhum debochado. Tive algumas curtes de uma noite, mas… Nunca houve nada nem ninguém que me levasse a querer ter uma relação. E normalmente só aconteceram quando eu bebi um pouco mais, para te ser franco. Aprendi a prezar, sobretudo, a minha paz de espirito.
-Pois já percebi…
-E tu, neste tempo todo?
-Nada! Não por falta de haver quem tentasse, mas… Nunca consegui. Acho que enquanto não tivesse uma certeza, nunca conseguiria.
-Bem, agora já tens certezas.
-Pois mas isso deixa-me com um problema.
-Que é?
-Só há um gajo que eu quero.
Ele sorriu, acabou o chá e as torradas, foi direito à máquina caseira de expresso e tirou dois cafés com calma dando um a ela.
-Miranda. Eu não quero que te iludas. Eu não sou a mesma pessoa. Tu não és a mesma pessoa…
-Eu sei. Eu não estou iludida. Não estava à espera de chegar aqui e ser arrebatada por ti, agarrares-me ao colo e levares-me para o quarto e… Se bem que não era uma má perspectiva, para te ser franca. – Disse ela piscando-lhe o olho.
Ele sorriu, ela continuou.
-Mas seja o que for que o futuro traga, quero que saibas o quanto estou arrependida por tudo e agradecida por finalmente ter as respostas que procurei durante tanto tempo. Mas,… E agora?
-Agora eu tive oito anos para digerir e lidar com isto tudo. Tu tiveste dois dias. Precisas de mais tempo. Precisas de saber o que queres. Eu já estou adiantado e já sei o que quero. Até lá, podemos ser conhecidos, amigos… Mas nada mais. Até tu saberes o que queres e qual é o teu lugar, é o que é. E quando souberes… Bem, pode ser que o que queremos seja irreconciliável!
-Rob, eu não estava a brincar quando disse que faria absolutamente tudo por ti.
-Mas a única coisa que eu verdadeiramente quero que faças por mim e não fazeres nada por mim.
Continuaram a falar até perto da hora de almoço quando Tobias apareceu junto com Cassandra, que estava obviamente preocupada, mas assim que viu a amiga, descansou. Decidiram dar um descanso às questões e aproveitar o tempo de férias que o Tobias tinha tirado para passearem pelas redondezas como quatro bons amigos, se bem que era cada vez mais óbvia a cumplicidade entre ele e Cassandra, coisa que os outros dois aproveitavam para os atazanar na brincadeira.
Nos últimos dias de férias do Tobias, a filha, o genro e as netas viram fazer-lhe companhia, o que partiu o quarteto, com Cassandra a passar os dias com eles, e Rob e Miranda por si sós. Cassandra estava encantada com as netas de Tobias e foi recebida de braços abertos pela filha, o que deixou Rob feliz pelo amigo.
Havia uma tensão estranha entre Rob e Miranda, bem como o peso de um tempo que teria de acabar.
E após duas semanas, o tempo acabou, enquanto passeavam por um pinhal.
-Sabes que eu tenho de voltar… - disse Miranda um dia, do nada, com alguma mágoa na voz.
-Claro. Deves ter catrefadas de coisas à tua espera na “Grande Maçã”.
-Tenho. – Disse ela. – Suponho que não estejas interessado em visitar-me lá, e passar uns tempos…
-Supões bem. Não quero nunca voltar a pôr os pés naquela cidade.
Ela suspirou com tristeza.
-Pois. Então suponho que as coisas são como são…
Rob encolheu os ombros.
-São como são. – Afirmou ele com um sorriso.
Ela fez uma pausa antes de anunciar.
-Partimos amanhã de madrugada. Tenho voo de Lisboa às dez.
Ele acenou, o seu sorriso não vacilou.
-Que os ventos vos sejam favoráveis.
Ela olhava para ele, tentando perceber se o desapego que ele demonstrava era o que verdadeiramente sentia. Sentiria ele a sua falta? Não se conteve e a pergunta rolou na sua língua.
-Vais sentir a minha falta?
-Claro. – Disse ele sem hesitação.
Chegavam entretanto à porta de Rob.
-Então porque não aceitas o convite?
-Consegues imaginar o que isso seria trágico para os músicos da região? – Brincou ele.
-Aqueles que fazem fila à tua porta todos os dias?
-Esses mesmos. O que seria dele se eu saísse daqui? – E riram os dois. Depois Rob continuou, já num tom mais sério – Sabes já conheço o mundo. E é aqui que eu quero estar.
Ela parou, parou-o. Olhou-o nos olhos, profundamente.
-Robert Mitchell,… - disse ela desfazendo o espaço entre eles - …já alguém te disse que és um homem extremamente frustrante? – Perguntou, ficando com o seu rosto a centímetros da dele, sem desviar os olhos.
Ele, sem desviar o olhar e com um sorriso sacana, respondeu:
-Para te ser franco, já se me constou. – Disse ele sem se aproximar dela.
-Cala-te. – Disse ela, mergulhando para ele e unindo-se a ele num beijo mais que desejado. Ele abraçou-a, tomou-a em si e deixou-a derreter nos seus braços.
Quando quebraram o beijo e respiraram, estavam ambos vermelhos de afogueados, sem conseguirem quebrar o olhar. Foi naquele momento, naquele mais ínfimo instante que uma certeza se cristalizou na mente de Miranda, que quebrou finalmente o olhar, entrou no jipe sem olhar para trás e arrancou.
Às dez da manhã apanhava o a
Não há dor, por mais profunda, nem ferida mais sangrenta, que o tempo não cure.. ou mate!!
ResponderEliminarDito por outras palavras: o que não mata, o tempo cura! : )
Um abraço, Gil
True story :)
EliminarAbraço, Janita :)