Entraram com o carro pelos portões, andando ainda algumas boas dezenas de metros até chegar à casa por uma estreita estrada delimitada por sebes baixas e ladeada de Alamos. Por cima das sebes podia-se ver enormes relvados, pontuados por canteiros de flores que, mesmo à noite, deixavam perceber que tinham sido plantadas de forma a que as suas cores fizessem desenhos. Havia também pequenas fontes, todas elas de mármore com estátuas de onde saiam fios de água.
Estacionaram num amplo largo em frente à mansão onde havia já mais carros estacionados, todos de luxo, desde os carros predominantemente, BMW’s e Mercedes topo de gama, mas também alguns carros exóticos como Lamborguinis e Ferraris. Era óbvio, apenas pelos carros estacionados, o tipo de pessoas que estaria dentro da mansão.
Ele olhou para aquilo tudo e suspirou fundo. Eram dez da noite, ela disse-lhe que isto estaria acabado por volta da meia-noite portanto a tortura não se prolongaria. Olhou para ela antes de sair. “Pelo menos tenho um bom incentivo para aguentar isto por duas horas.” pensou.
Ela olhou para ele, parecendo perceber-lhe os pensamentos. Inclinou-se para ele, deu-lhe um muito leve beijo nos lábios, para não esborratar o batom, e simplesmente perguntou “Vamos?”
Ele respirou fundo, abriu a porta do carro e saiu, dando a volta e abrindo a porta dela, ajudando-a a sair. Seguiram de mãos dadas para a mansão. Ao entrarem a mulher arrastou-o directo para uma pequena bancada improvisada onde uma rapariga com uma farda de trabalho e um ar absolutamente profissional recebeu o casaco da sua mulher, dando-lhe uma ficha com um numero de volta. Depois deu-lhe uma ficha a ele.
“Eu não tenho nada para deixar aí.” Disse ele surpreendido.
“Todos os convidados tem de ter este número com eles e entregá-lo à saída, quer depositem algo aqui, quer não” respondeu a rapariga com um tom absolutamente impessoal.
Ele encolheu os ombros, não sabendo bem o que pensar disto, mas, quando em Roma, sê romano, não é verdade?
Meteu a ficha no bolso do smoking e seguiu de braço dado com a sua mulher. Entraram no salão grande, tão imponente como o resto da casa, com o chão e algumas colunas de estilo grego em mármore rosa. As colunas serviam de suporte a um varandim interior ao qual se acedia por uma das duas escadas curvas laterais e que dava acesso ao resto do primeiro andar da casa.
Uma vez que nunca tinham ali estado antes, ela fez questão de conhecer todos os cantos da casa, pelo menos os que estavam acessíveis, com curiosidade. Por todo o lado havia móveis, pinturas, decorações que denotavam a sua antiguidade e história.
Depois de darem uma volta e apreciarem a arquitectura e os objectos, saíram para as traseiras, para o jardim.
Ele reparou que havia poucas interações entre homens e mulheres parecendo elas mais separadas em grupos a falarem uma com as outras e eles também em grupos. Mas não estranhou.
Ela viu um grupo de mulheres a falar junto a uma fonte a dirigiu-se de imediato para elas, arrastando-o. Ele conhecia uma delas, mas nenhuma das outras. Quando a viram, todas a cumprimentaram.
“Ainda não acreditamos que estás aqui.” Disse uma. “Já tínhamos quase desistido de te ver numa destas festas”
Ele estranhou este comentário. Afinal, quantas vezes tinha dito ela ao longo da semana que isto era uma oportunidade única, que nunca tinha sido convidada. Afinal tinha? Ou referia-se a amiga ao facto de finalmente ela ter finalmente conseguido um convite? Havia algo de estranho naquele comentário. Outra coisa que ele estranhou foram os olhares de todas elas em relação a ele, nada subtis. Olhou para ela com um ar inquiridor, mas ela parecia completamente alheia, e continuava a falar de trivialidades com elas. Depois virou-se para ele e num tom condescendente disse-lhe:
“Vai buscar umas bebidas para nós.” Não foi um pedido, foi uma afirmação, como se fosse uma obrigação dele.
Ele, apanhado de surpresa, olhou bem para ela, com os olhos semicerrados. Ela reparou e acrescentou de repente “Sê um querido, vá lá…” com um sorriso.
Ele olhou para ela e para as outras mulheres. Este momento tinha-lhe deixado um amargo na boca e ele nem sabia porquê, mas alguma coisa não lhe caiu bem. Mas resolveu relevar. Mais uma hora e meia e isto acabaria, segundo ela. Encolheu os ombros, largou-a e dirigiu-se ao sitio onde estava o bar.
Ainda aguardou algum tempo para lhe darem atenção e pedir um copo de vinho para ela e outro para si. Não queria misturar bebidas. Ainda tinha de atravessar a cidade a conduzir. No entanto, enquanto esperava não deixou de reparar que quase toda a gente olhava para si e murmurava, sendo que os olhares das mulheres eram mais intensos. Como se todas o estivessem a avaliar. Sentiu-se desconfortável.
“Será que tenho alguma mancha na roupa ou alguma coisa fora do sítio?” Uma breve inspeção disse-lhe que não, tendo até sub-repticiamente inspecionado a sua braguilha, não estivesse esta aberta, mas não… Não conseguia perceber o porquê daqueles olhares.
Finalmente, com as bebidas na mão, voltou para onde estava a sua mulher, mas não a encontrou onde a tinha deixado. “Porra!” pensou. “Onde é que ela se enfiou?”. Foi deambulando pelos jardins à procura dela, beberricando do seu copo e com o dela na mão. Ao fim de a procurar em vão por quarenta e cinco minutos, pousou o copo dela e sentou-se.
“Foda-se!” gritou o seu cérebro “Então ela sabe que eu não conheço aqui ninguém e desaparece assim. Onde é que ela se meteu?”
Estava a começar a sentir-se irritado. Depois do dia que tinha tido e, apesar das promessas da sua mulher, nada parecia estar a melhorar. Olhou para o relógio. Passava pouco das onze. Continuou a olhar em volta, tentando vê-la, mas não a encontrava em lado nenhum. A sua irritação crescia com os minutos que passava e estava a chegar a um ponto em que a sua irritação aliada ao cansaço do dia estava a começar a deixá-lo azedo.
Se era para o abandonar assim, mais valia a pena ele ter ficado em casa.
Estava perdido nos seus pensamentos quando sentiu um toque no ombro. Voltou-se e viu um tipo, na casa dos cinquenta, bem-parecido que se dirigiu a ele com um sorriso.
“Você deve ser o Alex, o marido da Marie…”
“Sim, sou eu.”
“É um gosto finalmente conhecê-lo.”
Ele ficou a olhar para o homem, perguntando-se o porquê de ser um gosto. Neste momento até pequenas frases de circunstância o estavam a deixar mal disposto e desconfiado.
“António Pereira, ao seu dispor.” Disse o homem estendo a mão, que ele cumprimentou “Sou o anfitrião desta festa.”
“Prazer em conhecê-lo” respondeu ele com cortesia.
“Devo dizer-lhe que já ouvi falar muito de si.”
“Espero que não tenha sido tudo mau.”
“Antes pelo contrário. Só temos ouvido falar bem. E todos sabemos que é um homem de sorte. Todos o invejamos”
“Como assim?” perguntou ele surpreendido.
“Ora, homem, não seja modesto. A sua mulher é um espanto. Não há homem nenhum que não a cobice há anos.”
Ele ficou chocado com a observação.
“Há anos que insistimos com a sua mulher para vir, mas ela sempre disse que nunca viria sem si e, a verdade é que só casais é que podem vir, portanto ela nunca veio. Foi uma surpresa enorme quando ela disse que viria finalmente e todos estamos ansiosos.”
O choque dele ainda não se tinha desvanecido.
“Não sei se estou muito confortável que fale assim da minha mulher” disse com um tom de irritação na voz.
O homem só se riu.
“Relaxe. Afinal estamos todos aqui ao mesmo. E não há aqui mulher nenhuma que não esteja desejosa de ser a sua sortuda hoje. Até a minha mulher está em pulgas…”
Ele ficou em silêncio, com um quadro negro a começar a aparecer na sua cabeça.
“Por acaso não viu a minha mulher?”
“Sim, vi. Está na casa. Quando entrar vire para a esquerda, siga o corredor e vai encontra-la na biblioteca”
“Obrigado.” Respondeu ele, levantando-se e dirigindo-se à casa.
Seguiu as indicações e entrou na biblioteca onde a viu finalmente a conversar sem preocupações com outras mulheres. Dirigiu-se a ela que assim que o viu sorriu, mas o sorriso apagou-se quando olhou para ele. Ele chegou ao pé dela, chegou-se junto do ouvido e murmurou “Precisamos de falar.” Ela olhou para ele com um ar inquiridor e ele acrescentou entre dentes “Agora.”
O tom e ar dele não davam azo para duvidas. O sorriso dela apagou-se de vez, substituído por outra coisa qualquer nos seus olhos, medo, pânico… Ele não conseguiu identificar.
As outras mulheres que estavam com ela aperceberam-se de que algo se passara e ficaram em silêncio também. Ela levantou-se e seguiu-o enquanto procuravam um sitio onde pudessem falar sem intromissões. Enquanto seguiam ao longo do corredor ele deu com uma porta de uma sala aberta e, não estando esta ocupada ele agarrou-lhe no braço, quase a empurrando para dentro da sala e entrou, fechou a porta atras.
Ele ficou a olhar para ela em silêncio, com um ar sério e carregado.
“O que é que se passa, querido?” perguntou ela com um sorriso sacana e quase num tom de gozo.
“Isso pergunto eu. Podes explicar-me o que se passa?”
“O que é que se havia de passar? É uma festa. Não tens estado divertido?”
“Não. Sabes que nem queria vir e tu praticamente me obrigaste. Chegamos e tu desapareceste. E depois tive uma conversa interessantíssima com o dono da casa…”
Ele calou-se e deixou o seu olhar pousar sobre ela. Ela, desconfortável, nem o conseguia encarar.
“Portanto, vou repetir a pergunta e desta vez quero uma resposta como deve de ser: Podes explicar-me o que se passa?”
“Ora, querido, estás a fazer uma tempestade num copo de água. Não se passa nada. É uma simples festa e, daqui a pouco vamos embora, porque está quase a acabar. Escusas de ficar assim. E garanto-te que vais ter uma noite de sonho, quando chegares a casa.”
Ele ficou a olhar para ela durante um bom bocado, com o silêncio a aumentar a tensão entre ambos.
“Não queres antes dizer que vamos ter uma noite de sonho?”
“Sim, querido. Ambos vamos ter, de certeza, uma noite de sonho.”
“Nesse caso, o melhor é anteciparmos e sairmos agora. Vamos.”
“Nem peses.” Insurgiu-se ela de repente “ Há anos que quero vir a uma destas festas e não me vais estragar a noite”
“Sim, mas pelo que sei, não foi por falta de convite, afinal. Aparentemente foi mais por falta de companhia. Não que alguma vez me tivesses falado destas festas até à semana passada.”
“As festas são para casais…”
“E porque é que não me falaste antes?”
Ela parou e mordeu o lábio, algo que só fazia quando estava imensamente nervosa.
“Tínhamos os miúdos em casa, era mais complicado, e eu sabia que nunca quererias vir, se eu te falasse nelas.”
“E porque é que eu não quereria vir?”
Ela respirou fundo e respondeu, olhando para todo o lado menos para ele.
“Porque a qualquer momento vai começar o sorteio e é algo que eu sei que tu nunca aceitarias se eu te dissesse.”
“Sorteio?”
“Sim. Daqui a pouco vai haver um sorteio…”
E como que aproveitando a deixa uma voz fez-se ouvir alta, num sistema de som, dizendo que se ia iniciar o sorteio e que todos deveriam ir para o salão principal.
“Vamos embora. Agora!”
Não era um pedido.
“Já te disse que nem penses” respondeu ela, passando por ele e abrindo a porta, agarrando-lhe na mão e arrastando-o consigo para o salão principal.
Um homem, claramente o mestre de cerimónias, falava a um microfone, urgindo os convivas a reunirem-se no salão. Quando houve a certeza de que todos estavam presentes o homem falou novamente.
“Vamos então por fim dar inicio ao nosso sorteio desta noite.” Meteu a mão dentro de um saco azul de onde tirou uma bola com um numero “Vinte e oito” anunciou.
Um dos convidados chegou-se á frente, apresentando a sua ficha ao mestre de cerimónias, que confirmou o numero, após o que tirou um numero do saco cor-de-rosa que anunciou também.
Uma mulher caminhou até ao centro da sala, chegando ao pé do contemplado, deu-lhe um suave beijo nos lábios com um sorriso, ele agarrou-a pelo braço e marcharam ambos para fora da sala, saindo da casa em direcção à rua, sob aplauso dos restantes.
“Então é para isto que servem as fichas?” perguntou ele à mulher, chocado com aquilo a que estava a assistir.
“Sim”
Ele ficou estático e em silêncio, com uma expressão séria, mas impossível de ler, enquanto foi observando a sala a ficar cada vez mais vazia, à medida que os casais arrumados pelo sorteio iam saindo.
Na sua mente já tinha estrangulado a sua mulher com as próprias mão e tinha metralhado toda aquela sala. Mas por fora parecia apenas uma estátua. Até que o mestre de cerimónias anunciou um numero e ela lhe disse:
“É a minha vez.”
Ele olhou para ela com os olhos frios como gelo polar.
“Não faças isto”
Ela olhou para ele, para os olhos dele e percebeu que ele não estava mesmo bem, mas esperavam-na no meio da sala.
“Daqui a pouco o teu numero vai ser chamado, vais sair daqui acompanhado, vais ter uma noite com uma experiencia diferente e amanhã vais ver, quando falarmos, que isto só nos vai aproximar mais.” E sem mais palavras voltou-se e caminhou em direcção ao homem que já a aguardava. À semelhança de todos os outros casais, ela deu um beijo nos lábios do sortudo que a levou pelo braço para fora da sala.
Embora ele parecesse uma estátua pregada ao chão, sentiu algo dentro do seu peito que não conseguiu definir. Como se naquele momento alguém lhe tivesse arrancado o coração do peito e substituído por uma pedra. Deixou de ver o que estava à sua volta, enquanto o mundo se tornou branco, os seus ouvidos apenas ouviam tudo como se estivesse muito longe, sentiu os suores frios que lhe invadiram a testa, sentiu que ia desmaiar ou ter um ataque cardíaco. Ou talvez nem tanto, mas reconhecia pelo menos os sintomas de um ataque de pânico.
Estendeu um braço, agarrando-se a uma parede para não cair e respirou fundo, bem fundo, tentando dominar as suas emoções. E foi naquele preciso momento que, ao fazê-lo, tomou uma resolução e enquanto se perdia nos corredores da sua mente, pensando em tudo o que viria para a frente que sentiu um toque no ombro e deu atenção a outro homem que o interpelava.
“Qual é o seu numero?”
Aparentemente o mestre-de-cerimónias tinha anunciado um número mas ninguém se tinha chegado à frente. Tirou a ficha do bolso do casaco e o homem disse-lhe de imediato:
“É a sua vez. Siga.” Quase o empurrando para o meio da sala, onde ficou, continuando estático e alheio do que o rodeava, perdido na sua mente.
O mestre de cerimónias anunciou um numero do saco cor-de-rosa e uma mulher aproximou-se dele. Alta, magra, com um andar extremamente elegante, cabelos ruivos naturais que pareciam de fogo, soltos, compridos, até ao fundo das costas, pele muito branca mas coberta de sardas que lhe davam um encanto natural, com um vestido ainda mais revelador que o que a sua mulher usava, mas sem um resquício de mau gosto e aproximou-se dele com um sorriso que parecia o de uma miúda que tinha ganho o brinquedo que queria nas prendas de natal.
Chegou a sua frente e esticou-se, uma vez que ele não se baixou, para lhe dar um suave beijo nos lábios ao qual ele não respondeu. Depois deu-lhe o braço e puxou-o, arrastando-o para fora da casa.
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