quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Consequências (III de XLIII)




A mansão dos Pereira, nos subúrbios, era um lugar impressionante. Edifício centenário, sempre mantido na mesma família, uma das mais ricas e poderosas da região, continuava a ter um aspecto impecável, ao contrario de outras casas semelhantes que, apesar de ainda manterem alguma da sua imponência, estavam marcadas indelevelmente pela idade e falta de manutenção.

Entraram com o carro pelos portões, andando ainda algumas boas dezenas de metros até chegar à casa por uma estreita estrada delimitada por sebes baixas e ladeada de Alamos. Por cima das sebes podia-se ver enormes relvados, pontuados por canteiros de flores que, mesmo à noite, deixavam perceber que tinham sido plantadas de forma a que as suas cores fizessem desenhos. Havia também pequenas fontes, todas elas de mármore com estátuas de onde saiam fios de água.
Estacionaram num amplo largo em frente à mansão onde havia já mais carros estacionados, todos de luxo, desde os carros predominantemente, BMW’s e Mercedes topo de gama, mas também alguns carros exóticos como Lamborguinis e Ferraris. Era óbvio, apenas pelos carros estacionados, o tipo de pessoas que estaria dentro da mansão.
Ele olhou para aquilo tudo e suspirou fundo. Eram dez da noite, ela disse-lhe que isto estaria acabado por volta da meia-noite portanto a tortura não se prolongaria. Olhou para ela antes de sair. “Pelo menos tenho um bom incentivo para aguentar isto por duas horas.” pensou. 
Ela olhou para ele, parecendo perceber-lhe os pensamentos. Inclinou-se para ele, deu-lhe um muito leve beijo nos lábios, para não esborratar o batom, e simplesmente perguntou “Vamos?”
Ele respirou fundo, abriu a porta do carro e saiu, dando a volta e abrindo a porta dela, ajudando-a a sair. Seguiram de mãos dadas para a mansão. Ao entrarem a mulher arrastou-o directo para uma pequena bancada improvisada onde uma rapariga com uma farda de trabalho e um ar absolutamente profissional recebeu o casaco da sua mulher, dando-lhe uma ficha com um numero de volta. Depois deu-lhe uma ficha a ele.
“Eu não tenho nada para deixar aí.” Disse ele surpreendido.
“Todos os convidados tem de ter este número com eles e entregá-lo à saída, quer depositem algo aqui, quer não” respondeu a rapariga com um tom absolutamente impessoal.
Ele encolheu os ombros, não sabendo bem o que pensar disto, mas, quando em Roma, sê romano, não é verdade?
Meteu a ficha no bolso do smoking e seguiu de braço dado com a sua mulher. Entraram no salão grande, tão imponente como o resto da casa, com o chão e algumas colunas de estilo grego em mármore rosa. As colunas serviam de suporte a um varandim interior ao qual se acedia por uma das duas escadas curvas laterais e que dava acesso ao resto do primeiro andar da casa.
Uma vez que nunca tinham ali estado antes, ela fez questão de conhecer todos os cantos da casa, pelo menos os que estavam acessíveis, com curiosidade. Por todo o lado havia móveis, pinturas, decorações que denotavam a sua antiguidade e história.
Depois de darem uma volta e apreciarem a arquitectura e os objectos, saíram para as traseiras, para o jardim. 
Ele reparou que havia poucas interações entre homens e mulheres parecendo elas mais separadas em grupos a falarem uma com as outras e eles também em grupos. Mas não estranhou.
Ela viu um grupo de mulheres a falar junto a uma fonte a dirigiu-se de imediato para elas, arrastando-o. Ele conhecia uma delas, mas nenhuma das outras. Quando a viram, todas a cumprimentaram.
“Ainda não acreditamos que estás aqui.” Disse uma. “Já tínhamos quase desistido de te ver numa destas festas”
Ele estranhou este comentário. Afinal, quantas vezes tinha dito ela ao longo da semana que isto era uma oportunidade única, que nunca tinha sido convidada. Afinal tinha? Ou referia-se a amiga ao facto de finalmente ela ter finalmente conseguido um convite? Havia algo de estranho naquele comentário. Outra coisa que ele estranhou foram os olhares de todas elas em relação a ele, nada subtis. Olhou para ela com um ar inquiridor, mas ela parecia completamente alheia, e continuava a falar de trivialidades com elas. Depois virou-se para ele e num tom condescendente disse-lhe:
“Vai buscar umas bebidas para nós.” Não foi um pedido, foi uma afirmação, como se fosse uma obrigação dele.
Ele, apanhado de surpresa, olhou bem para ela, com os olhos semicerrados. Ela reparou e acrescentou de repente “Sê um querido, vá lá…” com um sorriso. 
Ele olhou para ela e para as outras mulheres. Este momento tinha-lhe deixado um amargo na boca e ele nem sabia porquê, mas alguma coisa não lhe caiu bem. Mas resolveu relevar. Mais uma hora e meia e isto acabaria, segundo ela. Encolheu os ombros, largou-a e dirigiu-se ao sitio onde estava o bar.
Ainda aguardou algum tempo para lhe darem atenção e pedir um copo de vinho para ela e outro para si. Não queria misturar bebidas. Ainda tinha de atravessar a cidade a conduzir. No entanto, enquanto esperava não deixou de reparar que quase toda a gente olhava para si e murmurava, sendo que os olhares das mulheres eram mais intensos. Como se todas o estivessem a avaliar. Sentiu-se desconfortável.
“Será que tenho alguma mancha na roupa ou alguma coisa fora do sítio?” Uma breve inspeção disse-lhe que não, tendo até sub-repticiamente inspecionado a sua braguilha, não estivesse esta aberta, mas não… Não conseguia perceber o porquê daqueles olhares.
Finalmente, com as bebidas na mão, voltou para onde estava a sua mulher, mas não a encontrou onde a tinha deixado. “Porra!” pensou. “Onde é que ela se enfiou?”. Foi deambulando pelos jardins à procura dela, beberricando do seu copo e com o dela na mão. Ao fim de a procurar em vão por quarenta e cinco minutos, pousou o copo dela e sentou-se.
“Foda-se!” gritou o seu cérebro “Então ela sabe que eu não conheço aqui ninguém e desaparece assim. Onde é que ela se meteu?”
Estava a começar a sentir-se irritado. Depois do dia que tinha tido e, apesar das promessas da sua mulher, nada parecia estar a melhorar. Olhou para o relógio. Passava pouco das onze. Continuou a olhar em volta, tentando vê-la, mas não a encontrava em lado nenhum. A sua irritação crescia com os minutos que passava e estava a chegar a um ponto em que a sua irritação aliada ao cansaço do dia estava a começar a deixá-lo azedo.
Se era para o abandonar assim, mais valia a pena ele ter ficado em casa.
Estava perdido nos seus pensamentos quando sentiu um toque no ombro. Voltou-se e viu um tipo, na casa dos cinquenta, bem-parecido que se dirigiu a ele com um sorriso.
“Você deve ser o Alex, o marido da Marie…”
“Sim, sou eu.”
“É um gosto finalmente conhecê-lo.”
Ele ficou a olhar para o homem, perguntando-se o porquê de ser um gosto. Neste momento até pequenas frases de circunstância o estavam a deixar mal disposto e desconfiado.
“António Pereira, ao seu dispor.” Disse o homem estendo a mão, que ele cumprimentou “Sou o anfitrião desta festa.”
“Prazer em conhecê-lo” respondeu ele com cortesia. 
“Devo dizer-lhe que já ouvi falar muito de si.”
“Espero que não tenha sido tudo mau.”
“Antes pelo contrário. Só temos ouvido falar bem. E todos sabemos que é um homem de sorte. Todos o invejamos”
“Como assim?” perguntou ele surpreendido.
“Ora, homem, não seja modesto. A sua mulher é um espanto. Não há homem nenhum que não a cobice há anos.”
Ele ficou chocado com a observação.
“Há anos que insistimos com a sua mulher para vir, mas ela sempre disse que nunca viria sem si e, a verdade é que só casais é que podem vir, portanto ela nunca veio. Foi uma surpresa enorme quando ela disse que viria finalmente e todos estamos ansiosos.”
O choque dele ainda não se tinha desvanecido.
“Não sei se estou muito confortável que fale assim da minha mulher” disse com um tom de irritação na voz.
O homem só se riu.
“Relaxe. Afinal estamos todos aqui ao mesmo. E não há aqui mulher nenhuma que não esteja desejosa de ser a sua sortuda hoje. Até a minha mulher está em pulgas…”
Ele ficou em silêncio, com um quadro negro a começar a aparecer na sua cabeça.
“Por acaso não viu a minha mulher?”
“Sim, vi. Está na casa. Quando entrar vire para a esquerda, siga o corredor e vai encontra-la na biblioteca”
“Obrigado.” Respondeu ele, levantando-se e dirigindo-se à casa.
Seguiu as indicações e entrou na biblioteca onde a viu finalmente a conversar sem preocupações com outras mulheres. Dirigiu-se a ela que assim que o viu sorriu, mas o sorriso apagou-se quando olhou para ele. Ele chegou ao pé dela, chegou-se junto do ouvido e murmurou “Precisamos de falar.” Ela olhou para ele com um ar inquiridor e ele acrescentou entre dentes “Agora.”
O tom e ar dele não davam azo para duvidas. O sorriso dela apagou-se de vez, substituído por outra coisa qualquer nos seus olhos, medo, pânico… Ele não conseguiu identificar.
As outras mulheres que estavam com ela aperceberam-se de que algo se passara e ficaram em silêncio também. Ela levantou-se e seguiu-o enquanto procuravam um sitio onde pudessem falar sem intromissões. Enquanto seguiam ao longo do corredor ele deu com uma porta de uma sala aberta e, não estando esta ocupada ele agarrou-lhe no braço, quase a empurrando para dentro da sala e entrou, fechou a porta atras.
Ele ficou a olhar para ela em silêncio, com um ar sério e carregado.
“O que é que se passa, querido?” perguntou ela com um sorriso sacana e quase num tom de gozo.
“Isso pergunto eu. Podes explicar-me o que se passa?”
“O que é que se havia de passar? É uma festa. Não tens estado divertido?”
“Não. Sabes que nem queria vir e tu praticamente me obrigaste. Chegamos e tu desapareceste. E depois tive uma conversa interessantíssima com o dono da casa…”
Ele calou-se e deixou o seu olhar pousar sobre ela. Ela, desconfortável, nem o conseguia encarar.
“Portanto, vou repetir a pergunta e desta vez quero uma resposta como deve de ser: Podes explicar-me o que se passa?”
“Ora, querido, estás a fazer uma tempestade num copo de água. Não se passa nada. É uma simples festa e, daqui a pouco vamos embora, porque está quase a acabar. Escusas de ficar assim. E garanto-te que vais ter uma noite de sonho, quando chegares a casa.”
Ele ficou a olhar para ela durante um bom bocado, com o silêncio a aumentar a tensão entre ambos.
“Não queres antes dizer que vamos ter uma noite de sonho?”
“Sim, querido. Ambos vamos ter, de certeza, uma noite de sonho.”
“Nesse caso, o melhor é anteciparmos e sairmos agora. Vamos.”
“Nem peses.” Insurgiu-se ela de repente “ Há anos que quero vir a uma destas festas e não me vais estragar a noite”
“Sim, mas pelo que sei, não foi por falta de convite, afinal. Aparentemente foi mais por falta de companhia. Não que alguma vez me tivesses falado destas festas até à semana passada.”
“As festas são para casais…”
“E porque é que não me falaste antes?”
Ela parou e mordeu o lábio, algo que só fazia quando estava imensamente nervosa.
“Tínhamos os miúdos em casa, era mais complicado, e eu sabia que nunca quererias vir, se eu te falasse nelas.”
“E porque é que eu não quereria vir?”
Ela respirou fundo e respondeu, olhando para todo o lado menos para ele.
“Porque a qualquer momento vai começar o sorteio e é algo que eu sei que tu nunca aceitarias se eu te dissesse.”
“Sorteio?”
“Sim. Daqui a pouco vai haver um sorteio…”
E como que aproveitando a deixa uma voz fez-se ouvir alta, num sistema de som, dizendo que se ia iniciar o sorteio e que todos deveriam ir para o salão principal. 
“Vamos embora. Agora!”
Não era um pedido.
“Já te disse que nem penses” respondeu ela, passando por ele e abrindo a porta, agarrando-lhe na mão e arrastando-o consigo para o salão principal.
Um homem, claramente o mestre de cerimónias, falava a um microfone, urgindo os convivas a reunirem-se no salão. Quando houve a certeza de que todos estavam presentes o homem falou novamente.
“Vamos então por fim dar inicio ao nosso sorteio desta noite.” Meteu a mão dentro de um saco azul de onde tirou uma bola com um numero “Vinte e oito” anunciou.
Um dos convidados chegou-se á frente, apresentando a sua ficha ao mestre de cerimónias, que confirmou o numero, após o que tirou um numero do saco cor-de-rosa que anunciou também.
Uma mulher caminhou até ao centro da sala, chegando ao pé do contemplado, deu-lhe um suave beijo nos lábios com um sorriso, ele agarrou-a pelo braço e marcharam ambos para fora da sala, saindo da casa em direcção à rua, sob aplauso dos restantes.
“Então é para isto que servem as fichas?” perguntou ele à mulher, chocado com aquilo a que estava a assistir.
“Sim”
Ele ficou estático e em silêncio, com uma expressão séria, mas impossível de ler, enquanto foi observando a sala a ficar cada vez mais vazia, à medida que os casais arrumados pelo sorteio iam saindo.
Na sua mente já tinha estrangulado a sua mulher com as próprias mão e tinha metralhado toda aquela sala. Mas por fora parecia apenas uma estátua. Até que o mestre de cerimónias anunciou um numero e ela lhe disse:
“É a minha vez.”
Ele olhou para ela com os olhos frios como gelo polar.
“Não faças isto”
Ela olhou para ele, para os olhos dele e percebeu que ele não estava mesmo bem, mas esperavam-na no meio da sala.
“Daqui a pouco o teu numero vai ser chamado, vais sair daqui acompanhado, vais ter uma noite com uma experiencia diferente e amanhã vais ver, quando falarmos, que isto só nos vai aproximar mais.” E sem mais palavras voltou-se e caminhou em direcção ao homem que já a aguardava. À semelhança de todos os outros casais, ela deu um beijo nos lábios do sortudo que a levou pelo braço para fora da sala.
Embora ele parecesse uma estátua pregada ao chão, sentiu algo dentro do seu peito que não conseguiu definir. Como se naquele momento alguém lhe tivesse arrancado o coração do peito e substituído por uma pedra. Deixou de ver o que estava à sua volta, enquanto o mundo se tornou branco, os seus ouvidos apenas ouviam tudo como se estivesse muito longe, sentiu os suores frios que lhe invadiram a testa, sentiu que ia desmaiar ou ter um ataque cardíaco. Ou talvez nem tanto, mas reconhecia pelo menos os sintomas de um ataque de pânico.
Estendeu um braço, agarrando-se a uma parede para não cair e respirou fundo, bem fundo, tentando dominar as suas emoções. E foi naquele preciso momento que, ao fazê-lo, tomou uma resolução e enquanto se perdia nos corredores da sua mente, pensando em tudo o que viria para a frente que sentiu um toque no ombro e deu atenção a outro homem que o interpelava.
“Qual é o seu numero?”
Aparentemente o mestre-de-cerimónias tinha anunciado um número mas ninguém se tinha chegado à frente. Tirou a ficha do bolso do casaco e o homem disse-lhe de imediato:
“É a sua vez. Siga.” Quase o empurrando para o meio da sala, onde ficou, continuando estático e alheio do que o rodeava, perdido na sua mente.
O mestre de cerimónias anunciou um numero do saco cor-de-rosa e uma mulher aproximou-se dele. Alta, magra, com um andar extremamente elegante, cabelos ruivos naturais que pareciam de fogo, soltos, compridos, até ao fundo das costas, pele muito branca mas coberta de sardas que lhe davam um encanto natural, com um vestido ainda mais revelador que o que a sua mulher usava, mas sem um resquício de mau gosto e aproximou-se dele com um sorriso que parecia o de uma miúda que tinha ganho o brinquedo que queria nas prendas de natal.

Chegou a sua frente e esticou-se, uma vez que ele não se baixou, para lhe dar um suave beijo nos lábios ao qual ele não respondeu. Depois deu-lhe o braço e puxou-o, arrastando-o para fora da casa.


Renascimento - XL

 Rob conseguiu rapidamente uma equipa de trabalhadores. Apesar de ter perdido algum tempo a ensinar algumas coisas a alguns, parte deles tinha experiência em trabalhos temporários para operadoras de telecomunicações e estavam familiarizados com esquemas de cabos complicados. Os trabalhos seguiram com uma rapidez que surpreendeu todos, sobretudo com a equipa motivada pela promessa de um trabalho seguro e local em seguida.

Rob acabou por supervisionar as montagens de cabos e equipamentos espalhados pelo local, excepto a parte informática, que foi montada por uma empresa especializada.

Entretanto Cassandra e Tobias voltam de Lua-de-mel e o primeiro sítio onde foram, foi ao complexo, que ambos viram pela primeira vez, já não somente um edifício em betão, como Rob tinha visto, mas um complexo funcional e muito próximo de ser concluído.

Patrícia ia a passar perto da entrada quando os viu, com Cassandra já a pegar no telemóvel, de certeza para avisar Miranda, e dirigiu-se a eles. Tobias viu-a e fez sinal a Cassandra, que largou de imediato o telefone e abraçou Patrícia para a cumprimentar.

Ela levou-os através do complexo, oferecendo uma pequena tour pelo local, até ao sítio onde estavam Miranda e Rob, que ficaram surpreendidos. Depois dos cumprimentos Miranda e Cassandra começaram de imediato a pôr a conversa em dia, acompanhadas de Patrícia e Rob, vendo isto, agarrou no Tobias e levou-o até um dos estúdios que já estava pronto. Sentaram-se na régie e, enquanto Tobias olhava à sua volta admirado, Rob tirou uma cerveja do frigorífico e perguntou:

-O que é que achas?

-Então isto é que é um estúdio à séria!

-Sim, já viste as salas?

-Já. Já vi aquela bateria… Aquilo é topo!

-É! – Respondeu Rob e depois, como que lembrando-se, de repente, disse – Anda comigo. – E levantou-se, sendo seguido por Tobias.

Foram até à porta da tal sala, escondida no meio do complexo, Rob abriu a sala e fez sinal ao Tobias para entrar. Entrou atrás dele e deixou a porta fechar sozinha. Tobias estava parado a olhar para o conteúdo!

-Isto é a gruta do Ali Bá-bá? – Perguntou espantado.

-Quase.- Riu-se Rob – Digamos que é algo que foi deixado por um conhecido meu. – Acabou por dizer Rob piscando-lhe o olho – Mas o que te queria mostrar era isto… - e levou Tobias até um kit de bateria que estava montado num canto da sala.

Tobias olhou para o Kit.

-Muito bem. Nota-se que é vintage e que já viu alguma estrada…

-Isso é dizer pouco, para te ser franco. Adivinha a quem pertenceu este kit de bateria?

-Tobias olhou bem para o kit e de repente abriu muito os olhos e voltou-se para Rob:

-Não me vais dizer…

-Sim, esse mesmo.

Tobias ficou ali a olhar para o kit como se fosse um objecto religioso, digno de devoção. Ficou ainda mais aparvalhado quando Rob lhe estendeu um par de baquetas e lhe apontou o assento. Tobias sentou-se, deu uns toques meio a medo e depois perguntou a Rob, com o ar de uma criança de cinco anos:

-Posso?

-Dá-lhe!

E Tobias deu-lhe e ria a gargalhada enquanto tocava. Depois de tocar um pouco parou, olhou para o amigo, emocionado, e disse:

-Nunca pensei! Tocar na mesma bateria. Pá, nem sei que te dizer…

-Pois eu digo-te que devíamos passar a nossa sala de ensaio para aqui. Temos o espaço, os instrumentos…

-Então mas e o resto…

-A Miranda deu-me esta sala. Está completamente isolada. Podia estar a tocar uma banda de Death Metal aqui ao lado, e podia estar pessoal ao telefone aqui à porta e ninguém dava por algo que se passe aqui!

-Tens uma masmorra!

-É isso! Tenho uma masmorra! Claro que não podemos ir tocar com estes instrumentos ao vivo, mas podemos usá-los para ensaiar.

-Acho que o resto do pessoal vai gostar disto.

Rob sorriu.

-Olha lá, - continuou Tobias – e tu?

-E eu o quê?

-Como é que estás a lidar com isto tudo?

Rob suspirou.

-Boa pergunta. Nem eu sei, se queres que te diga. Levo as coisas um dia de cada vez. Sei qual é o objectivo, sei que vai fazer bem a muita gente,… Mas não sei se quando estiver tudo montado quero continuar a fazer parte, pelo menos como a Miranda gostava.

-Compreendo. – Disse o Tobias – Afinal tens a tua loja de música e cada bocadinho aqui aumenta mais a fila de pessoal que está lá acampado à porta, à tua espera…

-Pá, não gozes.

-Ouve uma coisa. Isto está em ti. Tu sabes disso. Acho que nunca disse a ninguém, mas no dia em que tu apareceste pela primeira vez num ensaio e ligaste a guitarra, o som que tiravas dela era espectacular. Sempre notei que estavas a tocar sem dificuldade, que as musicas que eram difíceis para nós eram fáceis para ti. Isto és tu, e está-te na alma, e tu sabes disso. E também sabes que é treta. Não te vais afastar.

Rob suspirou mais uma vez, a sentir as palavras do amigo a ressoar na sua alma.

-E a Miranda? – Continuou Tobias.

-O que é que tem a Miranda?

-Como é que as coisas estão?

-Onde estavam.

-Como assim? Vocês não falaram?

-Sim, de algumas coisas. E vemo-nos todos os dias aqui, e comemos no Zé, com a Patrícia.

Tobias abanou a cabeça.

-Pá, como calculas, eu e a Cassandra falamos muito nestes dias…

-Espero que não tenham só falado. – Interveio Rob.

-Fizemos intervalos. – Respondeu Tobias com um sorriso que parecia o de um gato que acabou de comer leite-creme. – Mas adiante, ela falou muito da Miranda.

-Calculo que sim. Já deves saber mais que eu!

-Pois. Por acaso tens noção daquilo que ela rejeitou nestes últimos 9 anos? Artistas, desportistas, empresários, bilionários… E alguns parece que bem insistentes. Mas, segundo Cassandra, ninguém teve hipótese, porque ela teimou sempre em mostrar a aliança e dizer que era casada.

-Ela só me disse que não teve ninguém neste tempo. Eu não pedi pormenores, porque francamente, não ia querer saber, e ela não os deu.

-Bem, agora já tens alguns.

Rob olhou de repente para o relógio.

-É pá. O tempo voa. Tenho de avisar o Zé…

-Não é preciso. Já o avisei e ele já sabe que vamos lá todos.

Saíram da sala e reuniram-se com elas, incluindo Patrícia, seguindo todos para o Zé, onde jantaram. Depois acabaram os cinco na casa de Rob enquanto o Tobias e Cassandra contavam as suas aventuras nos Estados Unidos. Tobias não gostou nada de Nova Iorque. – Não se vê o céu – dizia. Mas adorou os estados do interior e sobretudo o Grand Canyon e Monument Valley, cenário para inúmeros filmes de cowboys e Índios que passavam na televisão, na sua juventude.

Ao fim de algum tempo e muitas histórias, Tobias bocejou e voltou-se para Cassandra:

-Se calhar já íamos indo…

-Estás velho!

-Eu sei, mas já me apanhaste assim, portanto não podes reclamar. Patrícia, queres boleia?

Miranda, ao ouvir isto olhou de repente para ele, percebendo o que implicava aquela pergunta. Depois viu que Patrícia a olhava com um olhar inquiridor, de quem não sabia o que responder. E depois olhou para Rob, que olhava para Tobias com um olhar semi-serrado.

Tobias, por sua vez, e com a subtileza de um elefante, levantou-se, sendo imitado por Cassandra e disse:

-Anda Patrícia.

Esta olhou para os outros dois e, o mais discretamente que conseguiu, levantou-se e seguiu o casal, deixando Miranda e Rob sozinhos.

Miranda, sem saber muito bem o que fazer, começou:

-Rob, se quiseres eu posso ir indo também…

-Queres uma vodka-melão? Ou outra coisa qualquer… - perguntou ele.

Ela respirou fundo e descontraiu.

-Pode ser. Aquilo era bom.

-Mas… - disse Rob.

-Mas?

-…se beberes vais ter de passar a noite lá em cima. Com o que já bebeste até agora, mais isto… Ficas cá.

-Isso é um convite?

-É uma constatação. Posso arranjar-te outra T-shirt XXXL. Tens alguma banda preferida?

-Não, podes escolher tu. Nesse caso, podia ir tomar um duche?

-Podes ir. Eu vou buscar uma T-shirt. E preparar as Vodkas.

-Amanhã a Patrícia vai ter muitas perguntas…

-É provável. – Sorriu Rob

Ela seguiu para o duche, ele foi buscar a T-shirt rapidamente e deu-lha e foi preparar as bebidas em seguida. Ligou a televisão que deixou num canal de séries e quando ela saiu deu-lhe a bebida e o comando da televisão.

-Aproveito e também tomo já um duche.

Parou a meio do caminho, voltou-se para ela e disse:

-Sabes, ainda tenho a foto da última vez que te vestiste assim.

-Podes tirar outra, se quiseres.

E Rob tirou o telemóvel do bolso e apontou-o a ela, ela fez pose bem atrevida e ele tirou a foto. Guardou o telemóvel com um sorriso e seguiu para o duche.

Quando saiu, minutos depois, encontrou-a preguiçosamente estendida no sofá e beberricar a vodka e com o olhar dirigido à televisão, mas ausente. Ela deu pela sua presença e pareceu reanimar-se de uma forma languida. Ele sentou-se, pegou no seu copo e bebeu também.

-Sabes, aquelas fotos foram mesmo um ponto final. – Começou ele e ela despertou de repente e ficou séria – Com tudo o que andava à minha volta naquele momento, foram a gota de água que transbordou o copo. Tu não consegues sequer imaginar tudo o que me passou pela cabeça. Parti para não fazer nada estúpido, desapareci porque não queria voltar a ver-te e não queria ter nada a ver com aquela vida. Passei dois anos perdido. Reencontrei-me aqui.

Miranda olhava-o séria, sem saber o que dizer e com os olhos marejados.

-E passado este tempo consigo olhar para trás e ver o contexto das coisas. Mas, mais importante, consigo olhar para ti.

Miranda olhava-o sem reacção. Rob bebeu mais um gole de bebida.

-Comprei um escopro e um martelo. – Disse-lhe ele com um ar absolutamente sério.

Ela ouviu-o, ficou também séria algum tempo. Depois um sorriso sacana apareceu-lhe no canto do lábio e disse:

-Robert Mitchell, nestes anos todos já me fizeram as propostas mais tentadoras…

-Por mais incrível que te pareça, já se me constou.

Ela sorriu, deu mais um golo e continuou.

-…mas tu tens um jeito irresistível com as palavras. – Disse, enquanto se esticava languidamente no sofá, fazendo a T-Shirt subir pela sua coxa acima.

Rob levantou o sobrolho ante a visão que se ia revelando, bebeu mais um golo, pousou o copo e sorriu. A Patrícia ia ter mesmo muitas perguntas…



FIM


quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Consequências (II de XLIII)




Chegaram ao restaurante mesmo em cima da hora da reserva e foram prontamente levados para uma mesa. Os olhares que os seguiram eram inevitáveis, pensou ele, sobretudo por causa dela. Ele sabia que não estava nada mal apresentado, mas ela… Caramba! Ela simplesmente estava capaz de iluminar qualquer lugar onde entrasse só com a sua presença. Era, sem dúvida, o homem mais invejado daquele restaurante.

O Garçom veio com os menus e, como era já hábito, foi ela que pediu, no seu francês perfeito. A Sua mãe, Canadiana, tinha feito questão que ela também falasse francês, sendo ela bilingue desde pequena. Já ele não gostava sequer do som da língua. Havia quem dissesse que era uma das línguas mais sexy do mundo, mas para ele, os “r”s arranhados faziam tudo parecer algo gutural. Nem se atrevia a tentar sequer pronunciar o nome dos pratos.

Depois do pedido feito, ficaram sozinhos por alguns instantes, com ela finalmente a perguntar:

“Então, além do transito, como foi o teu dia?”

“Nem queiras saber. Quando íamos para entregar o relatório trimestral descobrimos um erro. Estivemos o dia todo à procura, tivemos de virar a empresa toda de cabeça para baixo. Felizmente conseguimos encontrar o erro mesmo a tempo e entregamos o relatório, mas a equipa inteira ficou exausta. Nem sequer almocei, não tivemos tempo. Dei a segunda-feira de folga ao pessoal todo como agradecimento, mas estou exausto.”

“Bem, dia complicado e no fim horas na auto-estrada.”

“É para tu veres. Normalmente quando um dia começa mal, acaba pior”

Entretanto chegou um garçom com uma garrafa de vinho que abriu e deixou em cima da mesa a respirar. Quando se afastou ela perguntou:

“E então, achas que o dia está a melhorar?”. O sorriso que lhe iluminava a cara e os olhos, embora genuíno, tinha algo de estranho. Como o sorriso de uma miúda travessa prestes a fazer algo que não devia. Ele sorriu.

“Sei como podia melhorar bastante.”

O garçom voltou à mesa e despejou um pouco de vinho no copo dele, depois de o deixar respirar, ficando à espera. Ele pegou no copo, abanou-o um pouco, levou-o ao nariz sentindo a fragância, levou o copo aos lábios provando o néctar e pousou o copo, acenando afirmativamente para o garçom. Este encheu o copo dela e depois o dele, pousando a garrafa e afastando-se.

“E como é que podia melhorar assim tanto?” perguntou ela com um ar sacana, voltando à conversa.

“Bem, podíamos apreciar a refeição, passar ao lado da festa e voltar para casa, porque me apetece descascar essas camadas de pano que tens em cima…”

“Desculpa, querido, mas em compensação ficas a saber que a festa vai acabar cedo. Por volta da meia-noite já deve ter acabado”

“Menos mal.” Disse ele com um sorriso “Isso quer dizer que não vou ter de aguentar a tortura por muito tempo”

“Tortura?”

“O que é que achas que esta festa vai ser para mim. Nem sequer conheço lá ninguém… Vou passar umas horas de seca, em que nem sequer posso beber nada de jeito porque tenho de conduzir, a aturar os amigos ricaços das tuas amigas que não conheço de lado nenhum, se eles sequer se derem ao trabalho de falar comigo.”

“Querido, vais ver que não vai ser nada disso.” Disse ela a sorrir, olhando-o nos olhos “Prometo-te.” E ele de repente sentiu o pé desnudo dela a deslizar na sua perna, por baixo da mesa, subindo e aninhando-se no meio das duas pernas, começando a tocá-lo e provoca-lo “E mais, se te portares bem, prometo que a noite vai ser muito melhor que aquilo que estás à espera.”

“Isso é mesmo uma promessa?” perguntou ele enquanto exercia de todo o seu autocontrole para se conter, enquanto sentia as caricias do pé dela.

“É mesmo uma promessa.” Disse ela com o sorriso mais sacana e um brilho no olhar que não deixavam margem para duvidas.

Olhou em volta e reparou que alguns casais os olhavam com um sorriso sacana também, não vendo claramente, mas apercebendo-se que havia algo que se passava naquela mesa.

Ele sorriu e achou-se o homem mais feliz do mundo naquele momento.


Renascimento (XXXIX de XL)

 Chegaram ao estabelecimento do Zé, para jantar. Ele já os esperava e tinha uma mesa posta para quatro. Sentaram-se e o Zé colocou uma travessa de barro com um bacalhau à Gomes-de-Sá na mesa.

-O que é isto? - Perguntou Miranda ao olhar para a travessa e sentir a sua boca a insalivar com o aroma que lhe chegava.

Foi Rob quem respondeu:

-Restos!

O Zé trouxe uma garrafa de vinho branco fresco, que pôs na mesa.

-Este é caseiro. É da minha produção. – E encheu os copos que estavam na mesa.

Cada um serviu-se. Patrícia foi a primeira a provar e ficou com um ar surpreendido, seguida de Miranda, que só disse:

-Isto sabe ainda melhor do que cheira. O que é isto, ao certo?

-Bem, faz-se um refogado com cebola e alho e mais temperos a gosto e junta-se restos de bacalhau, batatas cozidas, ovos cozidos, azeitonas, salsa picada de fresco e leva-se ao forno.

-Então isto são mesmo restos?

-Sim, sobras do almoço. – Respondeu o Zé. - E tinha ai umas batatas e ovos de ontem e aproveitei.

-Aqui até os restos sabem bem. – disse Patrícia com deleite.

Ao fim de um copo de vinho notava-se que Patrícia estava já um pouco alterada, não habituada a beber. Curiosamente ficou mais solta e bem-disposta. Ainda pediu mais ao Zé, mas este não a deixou beber, ao que esta se virou para ele e fez beicinho, o que deixou toda a gente a rir.

No fim da refeição e de beberem o café, quando já se fazia hora de irem embora, Miranda perguntou a Rob:

-Queres acabar o dia, ou queres acabar a conversa de hoje à tarde?

Rob ficou a olhar para ela, pensativo. Ela continuou:

-Há mais coisas que te queria dizer e que podem influenciar as tuas decisões.

-E o que é que propões?

-Se me levares mais logo, a Patrícia pode ir indo, e podíamos falar em tua casa.

-Tudo bem.

Miranda falou com Patrícia, assegurou-se que ela estava bem para conduzir, embora o caminho fosse curto e depois foi levada por Rob para sua casa.

Sentaram-se no sofá, na sala.

-Queres beber alguma coisa? – Perguntou Rob.

-Acompanho-te no que tu beberes.

Rob pensou de imediato num whisky, mas sabia que Miranda não apreciava, mas lembrou-se, fez um sorriso, foi buscar gelo e serviu duas Vodkas-Melão. Miranda provou e primeiro disse: -Uau! – E logo em seguida, quando o álcool começou a queimar disse: 

-Wow! Isto é delicioso, mas potente.

-É Vodka.

Saborearam os dois a bebida mais um pouco e depois Miranda começou:

-Houve uma coisa que aconteceu na semana passada que ainda nem a Patrícia sabe. Quando aconteceu, queria que fosses o primeiro a saber.

Rob assentiu. Ela continuou.

-Aquele processo todo que ouviste falar nas notícias levou a que a editora se visse obrigada a renegociar os contractos que tinham sido feitos sob coacção, desde que as vitimas o quisessem. Muitas quiseram. E eu também. O problema é que MaCallum era o artista que mais lucros tinha trazido e continuava a trazer à editora. A renegociação seria catastrófica e a editora teria de abrir falência.

-E o que é que fizeste.

-Bem, negociamos o valor que teria de ser pago e foi convertido em acções da editora. O que quer dizer que neste momento detenho o capital maioritário. Para o negócio seguir, concedi que o conselho de administração se mantivesse e não nomear ninguém nos próximos dez anos, mas em troca foi criada uma subsidiária que editará e distribuirá os trabalhos da fundação.

Rob olhou para ela, admirado.

-Tens aqui uma oportunidade de fazer uma enorme diferença, sem teres de aparecer em lado nenhum. A função que eu queria que tivesses mesmo, além de qualquer outra coisa que escolhesses fazer, era ser o director de artistas e reportório desta editora subsidiaria. Mas o teu nome não teria de constar em lado nenhum, nem a tua função ser conhecida. Mas poderes escolher bandas por aquilo que consideras a sua prestação artística e não o seu valor comercial. O que dizes.

Rob deu mais um golo, antes de responder.

-Digo-te que tenho muito em que pensar. É muita informação. Lembras-te do que eu te disse quando aqui chegaste? Antes de chegares estava a usufruir da minha paz e sossego.

-Eu sei. Se calhar até demais… - respondeu Miranda com um sorriso, e claramente com o vinho do jantar e a Vodka a começarem a afectá-la – Mas se pensares bem, isto é um bocadinho mais divertido e menos aborrecido.

Rob riu. Ficaram os dois um pouco em silêncio, beberricando as bebidas e foi Miranda que falou novamente.

-Tinha saudades tuas.

-Do teu marido?

-De ti, Rob Mitchell.

Rob ficou a olhar para ela, surpreendido.

-Sabes, - continuou ela – disseste-me que o meu marido tinha morrido embora tu estivesses aqui e eu primeiro não percebi bem. Como é que isso era possível? Mas depois pensei em tudo o que deixaste, sem nunca olhar para trás. Mas aquilo que eu percebi é que o que deixaste para trás foi aquilo que era mau e te pesava, na tua anterior vida. Mas curiosamente isso transformou-te em quem és e não só me sinto tão à vontade contigo como sempre senti, mas adoro a leveza de quem és, mesmo quando queres ser caustico. Estás calmo, divertido, mais sábio…

-O Tobias era capaz de discordar nesse ponto.

-Pois, é capaz… Mas eu só posso falar pelo que vejo. E gosto mesmo da pessoa que te tornaste, das pessoas que escolheste ter à tua volta e do lugar que escolheste para viver.

-Bem, tantos elogios… Daqui a pouco até começo a pensar que me queres engatar…

-Era uma possibilidade… - disse ela com um sorriso maroto, prendendo os olhos dele nos dela.

Ficaram assim, como que parados no tempo, perdidos no olhar um do outro, até que Rob falou:

-Se não estás com ninguém há assim tanto tempo, ia precisar de um escopro e de um martelo, não?

Desataram os dois a rir e o momento perdeu-se…


terça-feira, 29 de outubro de 2024

Consequências (I de XLIII)

 



Acabou de entrar com o carro na garagem, desligou o motor, carregou no comando da porta, o que fez com que esta começasse a fechar mergulhando a garagem gradualmente na escuridão e permitiu-se encostar-se no banco, fechar os olhos, respirar fundo e tentar serenar um pouco.

O dia tinha sido de loucos. Pela manhã, a poucas horas do prazo final de entrega do relatório trimestral, descobriu-se um erro numa folha de calculo, com implicações graves para o relatório no global. Todo o departamento parou para procurar a origem do erro e isto significou passar a pente fino os registos de transacções de uma multinacional nos últimos três meses. Com a hora a aproximar-se as tensões tinham-se elevado e o dia foi exaustivo. Felizmente, à última hora o erro foi corrigido e o relatório seguiu mas todo o seu departamento estava exausto.

Alguns queriam ainda celebrar o terem conseguido, num bar onde costumavam reunir-se para beber um copo depois do trabalho com alguma frequência, e faziam questão em ter lá o chefe, mas ele hoje estava exausto e declinou.

TGIF. “Thank God it’s Friday” pensou, erguendo-se, abrindo a porta do carro e saindo, entrando em casa pela garagem. Deixou a pasta em cima do pequeno móvel logo a seguir à porta, como fazia todos os dias, e começou a tirar a gravata enquanto se dirigia à cozinha, gritou “Cheguei”, entrou na cozinha. Dirigiu-se ao frigorífico, tirou uma cerveja gelada, abriu a garrafa de vidro, deu um gole e sentiu um momento de paz e satisfação enquanto sentia o fresco a descer pela garganta.

O seu estado de paz foi prontamente interrompido pela sua mulher, que entrou de rompante na cozinha perguntado com uma nota urgente e meio zangada na voz:

“Mas onde é que tu estiveste até agora?”

Ele virou-se para ela e viu-a à sua frente vestida num robe aberto e com a lingerie da “Agent Provocateur” que ele lhe tinha oferecido no aniversário de casamento e que vira apenas uma vez. O cabelo dela obviamente arranjado numa cabeleireira e ainda estava a meio de aplicar a maquilhagem. A visão fê-lo parar.

“No transito.” acabou por responder “Houve um transito brutal hoje. Um acidente condicionou o acesso à auto-estrada.”

Ela olhou para ele com os olhos semi-cerrados e com uma expressão zangada, não sabendo se havia de acreditar nele.

Ele tirou o telefone do bolso do casaco, fez uma busca rápida no Google e passou-lhe o telemóvel para a mão com uma noticia em aberto. Ela viu e cedeu.

“Bolas, mas tem de ser sempre assim. Então e tu chegas a estas horas e vens relaxar para a cozinha em vez de te despachar?”

Só então se lhe fez luz. A festa! “Bolas” pensou. De todos os dias, claro que tinha de ser hoje. Definitivamente, esta era uma sexta-feira que não lhe estava a correr de feição.

“Olha,” acabou por dizer “sinceramente não tenho vontade nenhuma de ir. Tive um dia de cão e ter que ir para uma dessas festas de gente rica só porque temos de aparecer… Não me apetece.”

“Nem penses. Sabes bem o quanto me esforcei para conseguir este convite. Sabias que quase ninguém é convidado que não pertença a um certo circulo social? E ser convidado… Tu não estragues isto para mim. Prometeste que vinhas.”

Ele olhou para ela. Era verdade que prometera. Resignou-se.

“Vai tratar de ti rápido. Eu estou quase pronta. Reservei o jantar naquele restaurante francês onde fomos no dia dos namorados e é quase hora. Tens a tua roupa em cima da cama.”

Acabou de beber a cerveja de um único trago. Perdera completamente o efeito que tivera antes da conversa.

Subiu as escadas e foi directo para a casa de banho. Despiu-se, olhou-se no espelho, e percebeu que parecia mesmo cansado. Suspirou. Entrou para o duche e a água morna caiu-lhe na pele como um balsamo. Deixou-se ficar debaixo do chuveiro só com a água a correr sobre si, tentando que ela lavasse o cansaço.

Saiu do duche, limpou-se e resolveu fazer a barba. Sabia, pela amostra que tinha tido, que esta noite a sua mulher ia caprichar. Era um evento de gala qualquer e toda a gente tinha de ir vestida de acordo. Acabou de fazer a barba e olhou-se atentamente. Secou o cabelo, pôs gel e penteou-o, para ficar com algum estilo, saiu do quarto, vestiu-se com a roupa que ela tinha tirado e olhou-se ao espelho. Quarenta e oito anos, mas estava mesmo muito bem para a idade. Normalmente sabia que atraia alguma atenção do sexo oposto, algo que reconhecia com humor, mas ao que não ligava. Desde que conhecera a sua mulher que todas as outras se tinham eclipsado. Claro que a sua boa aparência tinha dado frutos antes de a conhecer.

Tinha sido um miúdo introvertido e nunca tivera grande sorte com o sexo oposto. Foi já no final da universidade, quando resolveu entrar para um ginásio e começar a treinar que as coisas mudaram. A sua excelente forma física mudou drasticamente a maneira como era visto e, de repente, as mulheres que não lhe ligavam antes pareciam estar apostadas em estar com ele. E ele… Bem, ele tinha aproveitado a abundância que veio depois da escassez, se calhar até mais do que devia.

Mas depois conheceu-a e ninguém mais importou.

Vinte e quatro anos depois, dois filhos na universidade, e ainda aqui estavam os dois. E ele nunca perdera o vício de treinar, continuando a ter um corpo invejável e bem definido, para um homem da sua idade. E olhava-se ao espelho, com o seu smoking e pensou “pelo menos não a vou envergonhar” com um sorriso matreiro.

Saiu do quarto, desceu as escadas e encontrou-a já à sua espera na sala, algo inédito até então em todo o casamento. Nunca ela esperara por si, antes pelo contrário.

Quando ele a viu, podia jurar que o seu coração tinha saltado uma batida. Ela usava um vestido turquesa, sem alças, com um decote transparente que mostrava apenas o suficiente do seu busto para atrair o olhar de qualquer homem com sangue nas veias. O vestido abraçava-lhe o corpo com naturalidade, realçando as suas formas. Embora fosse comprido, até aos pés, uma abertura, apenas do lado direito, subia até à sua coxa, deixando ver claramente, quando ela se mexia, a sua perna bem torneada naquelas meias de seda e a liga que as segurava. O conjunto estava completo com uns sapatos Pump com um salto agulha altíssimo, que causava o efeito de lhe alongar ainda mais as pernas. Estava irresistível.

“Tens a certeza que queres sair?” perguntou ele com um tom malandro.

“Deixa-te disso, que estamos atrasados.” Respondeu ela com um tom que não deixava margem para discussão, mas com um brilho maroto no olhar, sinal de que tinha entendido e gostado da sua insinuação.

“Talvez esta sexta-feira não venha a ser assim tão má” pensou para si enquanto pegava nas chaves do carro e a seguia para a garagem.

Renascimento (XXXVIII de XL)

 Saiu da sala, trancou a porta e ia para entregar a chave a Miranda, mas ela recusou.

-Não. Essa chave é tua. Independentemente do que decidires, essa chave é tua. Podes chegar aqui e levar tudo, podes trazer o que tens na loja para aqui. Mas ninguém vai ter acesso a esta sala sem a tua permissão expressa.

-Porquê?

-Ora, acho que a resposta a essa pergunta é óbvia.

Ele sorriu.

-Não perguntava o porquê desta sala. Perguntava o porquê disto tudo.

Miranda ficou parada, a pensar como responder àquela questão.

-No dia em que sai daqui a única coisa que ocupava os meus pensamentos era vingança. Vim aqui à procura de respostas. E tive-as. Durante anos carreguei comigo medo e culpa pelo desaparecimento do meu marido. Tu não só me fizeste entender e disseste o porquê de forma clara, como também fizeste tudo para aliviar a minha culpa. Mas o saber porquê acendeu em mim um fogo, uma fúria…

-Sentiste-te traída!

-Sim. Traída. Mas depois, não só algumas coisas que aconteceram me começaram a pôr coisas em perspectiva, como comecei a pensar no que tu terias sentido. No direito que tinhas, também a reclamar a tua vingança. E no entanto, não o fizeste. E mesmo o teu desaparecimento teve a intenção de causar o menor impacto possível dentro de todas as circunstâncias. E conseguiste. No fundo, a única coisa que sobrava ainda era a minha certeza que o meu marido não tinha morrido e a minha teimosia em encontra-lo. E depois houve alguém que me perguntou se o que eu queria era justiça ou vingança. E eu decidi pela justiça. Não sei se tiveste conhecimento de alguma coisa.

-Leio o jornal todos os dias. – Respondeu ele com um sorriso.

-Então sabes o que aconteceu. O que provavelmente não sabes é que tudo aquilo aconteceu porque eu me mexi e ao descobrir que havia imensas vítimas da mesma pessoa, não podia continuar calada. Trazer tudo aquilo a lume, poder falar abertamente do que se passou, foi um balsamo. Mas, entretanto, consegui declarar o óbito de Robert MaCallum. Como calculas herdei tudo. Mas nada disto é meu. 

-Bem, agora é.

-Não Rob. Nada disto é meu. E eu sei que tu também não queres nada, não precisas de nada. E sei que não tens qualquer orgulho no trabalho que permitiu que tudo isto acontecesse. Há quanto tempo é que não ouves uma das músicas daqueles cinco álbuns?

-Para te ser franco, há cerca de nove anos. Não só não me revejo no nome, também não me revejo minimamente na música.

-Bem, Rob, eu não espero que te venhas a rever na música, ou que te venhas a rever no nome. Robert MaCallum está morto em definitivo. Mas quero que saibas que esse tempo e esse trabalho podem dar frutos. Que podem servir para materializar os sonhos e aspirações de uma nova geração. Que pode servir para proteger outros daquilo que lhe aconteceu.

Rob acenou, entendendo.

-E porquê aqui? 

-Porque tu estás aqui. Não te mudavas daqui para outro lado, pois não?

-Não.

-Então, tens aí a razão.

Entretanto Patrícia chegou, interrompendo a conversa.

Aproveitaram para dar mais uma volta pelo complexo, prestando especial atenção à área dos três estúdios.

-Porque é que queres que seja eu a escolher o material para aqui? – Perguntou Rob a Miranda, o que espevitou o ouvido de Patrícia. – Deves ter engenheiros de som que fariam este trabalho.

-Pois, mas tu tens outro tipo de conhecimento, mais no que um estúdio precisa, não só de um ponto de vista técnico, mas também do criativo. Acredito que a maneira como montares estes estúdios, desde o material que aqui puseres, até á disposição e áreas de trabalho, vão ajudar à criatividade.

-Só isso? Não me queres agarrar aqui, de alguma maneira?

-Patrícia, - disse Miranda, virando-se para ela – O que foi que te disse quando te pedi para ires falar com o Robert?

-Que eu não deveria tentar forçar nenhum envolvimento e que qualquer resposta dele deveria ser dada como definitiva. Se ele recusasse, eu não deveria insistir.

-E mais?

-Que deveria tornar claro que o envolvimento dele iria até ao nível que ele desejasse.

-Como assim? – Perguntou Rob a Patrícia.

Patrícia sentiu-se embaraçada por a pergunta lhe ser feita directamente, mas recompôs-se e respondeu.

-Estou habituada a levar as ordens de Miranda à letra, pelo que no meu entendimento, salvo o cargo de directora e de gestora, o Robert poderia tomar qualquer cargo que assim desejasse dentro da organização.

Rob ficou a olhar para Patrícia com um ar sério, enquanto remoía a sua resposta nos seus pensamentos. Miranda estava calma, mas Patrícia estava claramente nervosa.

-Ela sempre foi assim? – Perguntou Rob a Miranda, continuando a observar Patrícia.

-Sim. Eficientíssima e discreta. – Respondeu Miranda, algo divertida com a atitude de Rob, mas sem o deixar transparecer.

-Não sei se ela vai conseguir ficar discreta por aqui durante muito tempo. Não consegues que a moça descontraia?

Por esta altura já Miranda sorria e Patrícia corava.

-Eu tento. Aliás eu tinha esperança que nestes meses que passou aqui sem mim já tivesse descontraído um pouco.

-Nem por isso. Vê lá que a primeira vez que me dirigiu a palavra foi quando a mandaste falar comigo. Para te ser franco, acho que a única pessoa com quem ela falou na povoação toda foi o Zé. As velhotas chamam-lhe a-do-nariz-empinado.

Miranda não aguentou e desatou a rir enquanto Patrícia parecia querer que se abrisse um buraco por baixo dela. Miranda foi direita a ela e abraçou-a, gesto que a surpreendeu ainda mais.

-Não lhe ligues. Ele está só a brincar contigo.

Patrícia olhou para Rob e viu que ele já olhava para ela com um sorriso caloroso.

-Patrícia, - disse ele – tu és gestora de uma fundação. Já não és assistente pessoal. Pelo que eu vi, conseguiste manter uma obra nos eixos e lidar com aqueles trabalhadores todos. Sei que deves ser extremamente eficiente no que fazes. Mas já não estás nos estados unidos.

Patrícia acenou com a cabeça, entendendo e recompondo-se.

-O que é que achaste das ordens de Miranda?

-Estranhas. Mas depois lembrei-me, quando tive de ir a tua casa, que esta era a morada para onde eu tinha mandado a guitarra. Portanto tu eras claramente alguém que Miranda conhecia e não me cabe questionar os motivos dela.

-Boa resposta.

-Então Rob? O que dizes?

Rob olhou em volta.

-Vou montar os estúdios. Mas vai ser preciso uma equipa para montar isto tudo.

-Tens alguma sugestão?

-Sim. Há bastante desemprego por aqui, ou empregos sazonais. Acho que não deve ser difícil arranjar pessoal para trabalhar por aqui. Eu trato disso, se tu prometeres que lhes dás emprego fixo a seguir, e formação aos que precisarem, em vez de ir buscar pessoal de fora.

-Prometido. 

-Então, para já, fazemos isto, e depois vai-se vendo. – Disse o Rob.


segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Renascimento (XXXVII de XL)

 Passava pouco do meio-dia quando Rob, depois de um acordar tramado, chegou ao estabelecimento do Zé e encontrou-o ainda a ligar a máquina do café.

-Manhã dura? – Perguntou-lhe.

-Pá, a ressaca de ontem apanhou-me. Já não tenho vinte anos. Vais ter que esperar um bocadinho que a máquina aqueça.

-Tudo bem. Não devias estar já a preparar os almoços?

-A Patrícia disse-me que davam dia de hoje de folga ao pessoal, por isso só vem ela e a Miranda almoçar. Devem chegar daqui a pouco.

Rob sentou-se na sua mesa habitual e começou a ler o jornal. Daí a pouco o Zé pousou-lhe uma chávena de café na mesa e anunciou-lhe:

-Já agora, o almoço é migas e bacalhau assado.

Rob franziu um bocado o nariz.

-Se não gostas, vai comer a casa.

-Não é isso. É que parece que ainda estou cheio… Não faças uma posta inteira para mim.

-Percebo-te. Deixa

 estar, eu divido uma posta contigo.

O Zé foi tratar do almoço, até porque as reservas estavam quase a chegar. E Rob foi lendo o jornal, como de costume.

Miranda e Patrícia chegaram com um ar meio azamboado, consequência do dia anterior também, entraram e sentaram-se na mesa de Rob sem cerimónia, Miranda ao seu lado e Patrícia em frente a ele. Rob baixou um pouco o Jornal.

-Boa tarde. Estejam à vontade, instalem-se. Não incomodam nada.

Patrícia, que só tinha seguido a deixa de Miranda ficou de imediato embaraçada, mas Miranda só se voltou para ele e respondeu:

-Não sejas mau para a rapariga, que ela mal te conhece. E boa tarde para ti também.

-Pá, ó Zé, - gritou Rob – não sei se gosto muito das companhias por aqui.

-Já te disse, se não gostas, vai comer a casa. – Respondeu o Zé da cozinha.

Rob fez um ar derrotado e Miranda desatou a rir, no que foi seguida por Rob e finalmente Patrícia descontraiu e percebeu que ele estava só a brincar com elas.

De repente Miranda parou com um ar surpreendido.

-Rob, desde quando é que o Zé fala inglês?

Rob olhou para ela com um sorriso sacana.

-Dei-lhe umas aulas intensivas nos últimos meses. Já calculava que voltassem…

-Pois, estou a ver – respondeu Miranda olhando para Rob com o ar de quem não tinha acreditado numa palavra.

-Olha, mas ainda bem que vieram aqui. Eu levantei-me porque recebi uma mensagem. Parte do material que foi encomendado chega hoje.

-Já hoje? – Perguntou Patrícia – tão rápido?

-Sim. Pelo menos o que estava disponível cá, na Europa. O resto ainda deve demorar mais umas duas semanas. Mas o Zé disse-me que deram folga ao pessoal que lá está a trabalhar. Vai haver alguém lá para receber o material?

-Pois, não! Não contava com isso… - respondeu Patrícia.

-Não faz mal. – Respondeu Rob. Depois do Almoço arranco para lá, se não se importarem, e faço a recepção. Mas tens de me dizer onde as coisas podem ser descarregadas e armazenadas.

-Rob, nós vamos contigo. Aproveito e dou uma volta pelas instalações, que só vi tudo meio a correr no sábado à noite e estava cansada da viagem.

-Ok. Vamos todos para parecermos muitos.

Entretanto o Zé chegou com a comida para os três que pousou na mesa.

-Zé, também vais almoçar agora? – Perguntou Miranda.

-Sim.

-Então porque não te juntas a nós?

O Zé olhou para Rob e este acenou. Foi buscar o seu prato e sentou-se com eles.

-Com que então “no english”? – Perguntou Miranda.

-Bem,… - começou a responder o Zé, encavacado.

-Estou só a meter-me contigo. – Disse Miranda às gargalhadas.

Quando acabaram de comer o Zé anunciou:

-Só para saberem, o jantar mais logo é bacalhau à Gomes-de-Sá, mas fica por conta da casa. Custa-me mandar o bacalhau que sobrou fora.

-O que é isso?

-Acredita, - disse Rob – não vais querer perder o jantar.

Beberam o café, saíram e rumaram directamente ao pavilhão da herdade. Mais uma vez, Miranda pediu a Rob para que este levasse o seu carro. Rob sentou-se ao volante, ligou-o, olhou para o conta-quilómetros.

-Cinquenta quilómetros?

-É novo, não é alugado. Precisava de um carro que se desse bem por aqui e o todo o terreno que trouxe na ultima vez pareceu-me bem, mas este é o modelo mais novo.

-Vais mesmo mudar-te para cá?

-Já mudei em definitivo desde Sábado. Mas ainda tenho muita tralha para desembalar.

-E a casa de Nova-Iorque?

-Vendi-a.

Rob olhou para ela, admirado.

-Porquê?

-Porque não há absolutamente nada que me prenda lá. Por falar nisso, a Patrícia já falou contigo?

-Acerca do material?

-Não só. Ela pediu-te para usarmos os teus equipamentos e instrumentos, caso seja necessário e tu concordes?

-Sim, pediu, mas ainda não lhe dei uma resposta, não chegamos a falar mais disso. Falámos mais do material que era preciso rapidamente para equipar o espaço.

-Tudo bem. Quando chegarmos quero que vejas uma sala que só ficou pronta no Sábado, quando cheguei. Tem a ver com o que ela te pediu.

Rob olhou para ela com alguma curiosidade, mas limitou-se a responder – OK. – E fizeram o resto do caminho. Estacionavam à porta quando Rob recebeu uma chamada avisando-o da chegada eminente do Camião que trazia as encomendas. Rob pediu de imediato a Patrícia para lhe indicar onde ficava o cais de descargas que dava directo para os armazéns por baixo do auditório, direccionando para lá o camião.

A descarga demorou ainda algum tempo, mesmo com uma empilhadora e Rob foi verificando o manifesto de carga para conferir que estava tudo em ordem. Depois de assinar a recepção, o camião arrancou enquanto eles fechavam as portas do armazém repleto de paletes de material de som, luzes e multimédia.

-Vai ser o diabo montar isto tudo. – Comentou Rob.

-Rob, sei que ainda não falámos, mas estamos aqui e eu tenho de te perguntar, Não queres ser tu a tratar de toda essa parte. Percebo perfeitamente se disseres que não, mas…

Rob olhou para ela, sério, meio perdido nos seus pensamentos.

-Sei que deves ter alguma pressa, pelo que percebi da Patrícia, mas para te ser franco, não sei o que pensar disto tudo. Por falar nisso, a Patrícia sabe?

-Não. Tanto quanto eu sei, só nos, a Cassandra e o Tobias.

-Bem, e o Zé… Ele não é parvo. É bruto, mas não é parvo. Ainda bem que ela não sabe.

-Ela ficou chocada ontem.

-A sério? Com quê?

-Com o beijo que demos.

-Chocada?

-Sim. Ela foi minha assistente pessoal nestes últimos sete anos e nunca me tinha visto próxima de ninguém. Ver assim um beijo chocou-a.

Rob riu-se, mas absteve-se de responder. Entretanto ela notou e mudou de assunto.

-Anda, quero mostrar-te a tal sala.

Rob seguiu-a pelo complexo. À porta de uma sala que estava próxima do estúdio principal ela parou, tirou uma chave do bolso do casaco, deu-a a Rob.

-Podes abrir e entrar.

-Não abres tu?

-Eu não vou entrar. – Disse ela com um sorriso.

Ele olhou para ela com uma expressão inquiridora na face, mas colocou a chave na fechadura, destrancou-a abriu a sala e entrou. A porta fechou-se sozinha atrás de si. E Rob ficou perante os instrumentos e amplificadores que lhe disseram tanto numa outra vida e que ficaram para trás. Sorriu para si próprio. Distanciara-se tanto, estava tão longe de quem foi e ainda assim esta mulher continuava a conhecer-lhe a alma. Mas a pergunta maior é se ela se conhecia a si própria.


sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Svetlana Loboda - Cherno Belaya Zima

Renascimento (XXXVI de XL)

 Miranda entrou na igreja num passo apressado, mas sem parecer que tinha pressa. Rob ficou espantado ao vê-la. Esperava que ela viesse altamente produzida, mas, em vez disso, vinha vestida com um vestido simples, azul, a acabar quase aos seus pés, mas que lhe abraçava o corpo e além de o realçar, fluía com o seu andar. A maquilhagem e o penteado, também simples, davam enfase à sua beleza natural. Rob não pode deixar de a admirar enquanto ela percorria a igreja para tomar o seu lugar no altar, no lado oposto a ele.

Já Miranda, ao entrar, tinha ficado encandeada com o contraste entre o sol forte e a escuridão da igreja. Os seus olhos demoraram um pouco a ambientar-se, mas a primeira pessoa que ela distinguiu foi Rob, elegantemente vestido e apresentado, e ela não pode conter um sorriso, que lhe iluminou o rosto e os olhos. Ocupou o seu lugar no altar, mas os seus olhos não largavam Rob. Rob sorriu-lhe e piscou-lhe o olho à distância.

-Pá, mas é para fazermos um casamento duplo hoje, ou quê? – Perguntou Tobias ao ouvido de Rob.

-Deixa-te disso.

Nisto começou a tocar a marcha nupcial. De imediato toda a igreja voltou a sua atenção para a entrada, por onde entram as netas de Tobias, a mais velha à frente, com um cesto com pétalas de flores que ia largando ao longo do caminho, e a mais nova atrás com uma almofada com as alianças.

Atrás delas entrou Cassandra, absolutamente deslumbrante no seu vestido de noiva e com um sorriso que, sozinho, iluminava toda a igreja. Cassandra desfilou devagar ao longo da nave da igreja, ou pelo menos assim parecia a Tobias. Ela finalmente subiu as escadas para o altar, ficando frente a frente com Tobias pela primeira vez desde que tinha partido há já muitos meses atrás. O olhar de felicidade de ambos enquanto mergulhavam nos olhos um do outro fazia aquele momento fazer sentido. 

O casamento decorreu sem qualquer problema, os noivos levaram o costumeiro banho de arroz quando saíram da igreja e dirigiram-se todos para o local onde seria o banquete, uma quinta próxima. Nos jardins, os fotógrafos começaram a árdua tarefa de fotografar toda a gente com os noivos, enquanto os convidados iam petiscando para atenuar o apetite até as portas do salão abrirem e o banquete começar.

E foi aí que Miranda e Rob ficaram sozinhos pela primeira vez, logo a seguir a tirarem uma foto com os noivos. O fotógrafo puxou-os para o lado:

-Agora uma foto dos padrinhos de casamento.

Posaram os dois, lado a lado, mas o fotógrafo não parecia satisfeito.

-Podem dar as mãos por favor?

Olharam um para o outro, meio encavacados, mas deram as mãos e o fotógrafo pareceu ficar mais contente. Foi Miranda quem falou primeiro.

-Estou mesmo muito surpreendida.

-Estás? – Perguntou Rob intrigado - Com quê?

-Bem, contigo. Quase pareces um cavalheiro.

-Quase! Mas não exageres. Só vim assim porque fui ameaçado e temi pela minha vida. Nunca queiras ver o Tobias furioso…

Ela riu.

-Ainda bem que ele te ameaçou. Estás muito elegante.

-Bem, tu também. Esses trapinhos assentam-te muito bem.

-Obrigada. – Respondeu ela corando. Depois continuou:

-Ouve, Rob, eu…

-Schhh! – Silenciou-a ele – Temos muito para falar, eu sei. Mas hoje não é o dia nem o local.

Ela acenou com a cabeça em assentimento.

-Olha, sabes que eu não vim com companhia. Tu aparentemente também não. Além da Patrícia e do pessoal da tua banda – bem, e dos noivos, claro – não conheço aqui mais ninguém. Importas-te de ser o meu acompanhante por hoje.

Rob sorriu.

-Desde que não esperes que eu me comporte sempre como um cavalheiro…

-Não, Rob. Basta que sejas quem és.

Ele sorriu.

Entretanto as portas do salão abriram e eles esperaram que os restantes convidados entrassem antes de entrarem eles e ocuparem os seus lugares na mesa principal, junto aos noivos.

Por fim os noivos entraram e ocuparam os seus lugares. A comida começou a ser servida e, de repente, do nada, alguém começou a bater com um talher num prato e a gritar “os noivos”, ao que se juntaram mais pessoas, até ao ponto de estar toda a gente a bater com os talheres nos pratos.

-O que se passa? – Perguntou Cassandra admirada.

-É um costume de cá. Os convidados começam a bater com os talheres nos pratos até que as pessoas referidas, neste caso nós, se beijem. – Respondeu o Tobias. Dito isto, levantou-se e fez menção a Cassandra para fazer o mesmo. Deram um beijo e a sala irrompeu em aplausos, acalmando logo em seguida.

-Gosto deste costume! – Disse a Cassandra com um sorriso quando se sentou novamente.

O Tobias sorriu, piscou-lhe o olho e depois olhou para a filha, que estava na mesa em frente, fez-lhe um pequeno aceno com a cabeça. Marlene sorriu, começou a bater com um talher novamente e gritou:

-Agora é aos padrinhos.

Rapidamente a sala voltou a ser uma cacofonia de talheres a bater em louças enquanto todos os olhos se punham em Rob e Miranda, sentados, um de cada lado do casal de noivos. Miranda estava corada, vermelha que nem um tomate e Rob claramente embaraçado, mas lá se levantou e chegou ao pé de Miranda, estendeu-lhe a mão, que ela agarrou enquanto se levantava também. Ficaram de frente um para o outro, olhos nos olhos e, de repente a cacofonia desapareceu, o lugar desapareceu, o casamento inteiro desapareceu, apenas existiam os olhos um do outro. E foi assim que mergulharam num inesperado beijo apaixonado, efusivamente aplaudido por toda a assistência, até mesmo por Patrícia, que conhecendo a sua empregadora há tanto tempo, nunca pensara assistir a algo assim, no meio de lado nenhum. E de repente ela percebeu a insistência por aquele local.

O resto do dia foi passado alegremente, sem incidentes. Mas depois chegou a altura dos discursos e Rob teve de subir a um palanque improvisado:

-Peço que me dêem atenção, por favor. – Disse ao microfone – Chegou aquela altura de eu vos pedir para fazermos mais um brinde aos noivos. Peço desculpa por falar em inglês, mas é a língua da noiva e eu não quero desrespeitá-la. Para os que não falam inglês, vai haver uma tradução disponível à saída por uma módica quantia.

A sala irrompeu em risos enquanto Tobias explicava a Cassandra, Miranda e Patrícia o que Rob tinha dito. Rob continuou já em inglês:

-Cassandra,… - disse Rob, elevando o copo a ela - …não posso falar muito acerca de ti, não nos conhecemos há assim tanto tempo, e o mais embaraçoso que posso revelar sobre ti é que quando comes carne de porco à Alentejana até chupas os dedos para não perderes nada do molho. – A sala riu novamente – Tenho de confessar que, quando te vi pela primeira vez parecias uma típica dondoca da cidade que vem até ao meio do campo. Alguém em cujo julgamento eu até confio… - piscou o olho a Miranda - …disse-me que não eras assim. E estou feliz por constatar que não és. E estou feliz por teres escolhido o meu amigo Tobias para partilhar a vida. E estou feliz que tenhas escolhido fazê-lo aqui. Sê bem-vinda.

A sala virou-se para Cassandra, aplaudindo, e esta, emocionada, agradeceu, e sentiu-se verdadeiramente bem-vinda naquele sítio.

-Já o Tobias, bem… As coisas que eu vos podia contar… - houve um burburinho de risadas pela sala – Por exemplo, a ultima é que ele teve uma lap-dance na sexta-feira. – Cassandra olhou de repente para o Tobias, que estava vermelho que nem um tomate – Mas Cassandra, a culpa foi inteiramente minha. E podes ficar descansada que foi em cima de um palco com cinco mil pessoas a ver. Sabes, fomos tocar a uma concentração motard e eles torturam sempre alguém e eu posso ter, inadvertidamente, deixado escapar que ele se casava hoje, e ele foi escolhido para ser torturado. Por falar nisso, há filmagens, portanto, não só podes envergonhá-lo para o resto da vida, como poderás ver que ele não foi muito cooperativo. Aliás, dá para reparar que foi, mas coagido!

Cassandra desatou a rir, bem como o resto dos presentes, enquanto Tobias gritava:

-Se é assim que és meu amigo, imagina se fosses meu inimigo…

Rob continuou.

-Mas fora estes apartes, conhecemo-nos há quase sete anos, mas para mim é como se fosse uma vida. O Tobias é o meu irmão mais velho, foi a primeira pessoa a acolher-me verdadeiramente quando aqui cheguei, foi ele que me arrastou para tocar com uma banda outra vez. Irmão, tu tens sido muitas vezes a minha voz da razão. Não podia gostar mais de alguém do que gosto de ti. Este dia é teu e tu mereces. E tu e ela merecem toda a felicidade do mundo.

Rob pousou o microfone e atravessou a sala com o copo na mão, erguido em direcção aos emocionados noivos e sob o aplauso da sala. Lá chegado gritou – Aos Noivo! – Ergueu o copo e bebeu, gesto em que foi acompanhado por toda a sala, pousou o copo deu um abraço sentido ao amigo, que o abraçou de volta da mesma maneira. Tobias aproveitou para se chegar ao ouvido de Rob e dizer:

-Não te esqueças aquela cena que dizias da vingança… 

Rob riu-se e respondeu:

-Não esqueço. Isto já foi a vingança pelo aceno que fizeste à Marlene, ou julgas que eu não vi?

-És um sacana.

-Eu sei.

Depois Rob abraçou a noiva, que lhe agradeceu o discurso.

O resto do dia foi passado em boa disposição, até à hora em que os noivos finalmente partiram em lua-de-mel e os convidados dispersaram.


quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Renascimento (XXXV de XL)

 Marlene, a filha do Tobias abriu a porta toda sorridente.

-Olha, olha! O padrinho chegou.

-Olá, Marlene. – Respondeu Rob com um sorriso, cumprimentando-a. Cumprimentou também o Rui, o marido dela e de repente tinha duas criaturinhas agarradas às suas pernas, a Ana e a Teresa, filhas do casal e netas de Tobias.

-Queres comer qualquer coisa? – Perguntou o Rui. – Já sabes que isto de casamentos, só vais almoçar quando Deus Quiser, por isso, e melhor abasteceres.

-E o que é que há?

-Tens aí uns pasteis de bacalhau feitos pela Marlene… Nem te digo. E os croquetes também estão muito bons.

Rob tirou um pastel de bacalhau da mesa que provou e ficou surpreendido.

-Parabéns, Marlene. Isto é mesmo muito bom.

-Receita especial da família… Acho que vou ter de a ensinar à Cassandra. – Respondeu ela a rir.

-E onde é que está o noivo?

-Ainda está lá em cima a vestir-se. Acho que não dormiu muito bem… - respondeu o Rui.

-Deve ser dos nervos. Se calhar ainda se arrepende! – disse o Rob.

-É melhor ires lá para termos a certeza que ele não foge. – Apressou-se a dizer Marlene.

Rob subiu a escada enquanto comia o pastel e foi encontrar Tobias a vestir as calças. Este olhou para ele assim que ele entrou e exclamou:

-Porra, pá!

-Que foi?

-Ó Rui, - gritou o Tobias para o resto da casa – tu já me viste este gajo?

O Rui e a Marlene aparecem à porta do quarto e perguntam quase em uníssono:

-O que foi?

-Vocês já viram bem este cromo. Anda sempre por aí parece um roqueiro acabado, mas depois hoje aparece aqui, engomadinho, penteadinho, barba aparada, lavadinho? Foste à cabeleireira tratar do cabelo, foi?

A Marlene pareceu olhar bem para Rob pela primeira vez desde manhã e só depois se pronunciou. 

-Não estou a ver onde está o problema. Aliás, para um cota, está bem jeitoso.

-Marlene, então? Não te estiques… - disse o Rui num tom brincalhão.

-O problema, - respondeu Tobias – é que está mais bonito que o noivo.

-Isso também já não era difícil, portanto não há problema nenhum. – Respondeu Marlene – Tenho a certeza que a Cassandra não se vai casar contigo pela tua beleza.

-Vocês estão a ver isto? – Disse o Tobias – desrespeitado ainda antes de me casar…

-Pff! Teve de ser ela a pedir-te em casamento e ainda falas em respeito… - respingou Marlene -É para te ires habituando. – Continuou ela, enquanto saia do quarto. – Vê lá é se não te armas em prima-dona e te despachas, que o fotógrafo deve estar a chegar.

E desataram todos a rir. O Rui seguiu Marlene deixando os dois amigos sozinhos.

-Sempre caprichaste… - disse o Tobias com um sorriso.

-Deve ser o único casamento teu a que vou assistir. Mais vale a pena ficar bem na foto.

-Pois… Tens a certeza que não é mais por causa de uma certa viúva? – Perguntou Tobias, piscando o olho.

-Não, é mais porque estragava as fotos no altar. – Respondeu Rob, não que o Tobias tenha acreditado.

Foi chegando mais família e amigos, até que chegou a hora de saírem de casa e seguirem em cortejo até à igreja, cortejo esse que não foi longo, visto que a casa de Tobias era do outro lado da praça. A igreja encheu-se com os convidados e ficaram a aguardar a chegada da noiva. Rob reparou, sem surpresa, que Patrícia estava na primeira fila, do lado da noiva, se bem que além de dela e Miranda, não parecia haver mais ninguém de fora.

-Tens a certeza que ela cá está? – Perguntou o Rob ao ouvido de Tobias, enquanto aguardavam no altar.

-Tenho. Falámos ontem. Não a vi, mas falamos.

-Ok. Só para ter a certeza, não quero que fiques nervoso.

-Nervoso? Eu? Porquê?

-Bem, ela ainda pode mudar de ideias. – Disse Rob com um sorriso malicioso.

-Pá… Cala-te!

Rob olhou para a fila da frente de onde Marlene lhe lançava um olhar reprovador e resolveu acatar a ordem.


quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Renascimento (XXXIV de XL)

 Sexta-feira. Quatro da tarde e a cerca de quarenta e três horas do casamento. Algures no Algarve, no recinto de uma concentração de um pequeno grupo motard onde iam tocar nessa noite.

Tinham acabado de montar o palco e fazer som e Rob aproveitou a oportunidade de finalmente falar com o Tobias.

-Olha lá, tu por acaso sabias?

-Sabia o quê?

-Que a Herdade do Monte foi comprada pela Miranda.

-Desculpa?

-Estas desculpado. A herdade do monte é da Miranda, ou para ser mais preciso da fundação MaCallum.

O Tobias ficou em silêncio.

-Pá, eu sabia que a Miranda tencionava comprar alguma coisa por cá, mas pensei que fosse tipo uma casa de férias ou assim…

-Pois, mas em vez disso é praticamente minha vizinha e vem com uma fundação que também é uma academia e um polo universitário.

-Porra! Não fazia ideia! Como é que soubeste disso?

-Sabes aquela gringa jeitosa que anda por aqui há uns meses, a tratar das obras?

-Sim.

-Bem, vai ser a directora daquilo e era a assistente pessoal da Miranda.

O ar de Tobias tornou-se mais sério de repente.

-Achas que ela sabe…

-Não, acho que não. Pelo menos pela maneira como falou comigo e como me apresentou a fundação.

-Porque é que ela fez isso? Afinal já anda por aqui há meses e nunca te disse nada…

-Nada! E cruzávamo-nos quase todos os dias no Zé. Mas aparentemente foi a Miranda que lhe deu ordens para falar comigo. Ela quer a minha colaboração…

-E tu? O que pensas disso?

-Se queres que te diga, não sei. Pelo que percebi era a Miranda que iria falar comigo, mas tem alguma urgência em algum do material, embora não tenham especificado o porquê,…

-Então, mas se tem urgência não conseguiam isso com facilidade directamente?

-Sim, mas a Miranda disse que algum do material deve ser escolhido por mim. E todo o material deve ser comprado através da minha loja.

-E é muita coisa?

-Não fazes ideia. Sabes aquele pavilhão enorme que estavam a construir?

-Sim.

-Se eu te disser que aquilo tem um auditório para quatrocentas pessoas, três estúdios de gravação diferentes, umas quantas salas de trabalho, salas de ensaio, uma área de refeitório, e uma quantidade enorme de quartos…

-Bem, lá que o pavilhão é enorme…

-E ela quer que eu equipe aquilo tudo. Mas quer que seja eu a escolher o material dos três estúdios.

-E tu?

-Bem, eu tenho uma loja. Vou fazer o que as lojas fazem.

-Fazes bem. Claro que entretanto já percebeste que não te vais livrar dela com facilidade. Se bem que me parece que não te queres livrar dela… ou queres?

-Não sei. Aquilo que sei é que tu sabias que ela ia comprar cá qualquer coisa e não me disseste nada.

-Desculpa, mas a Cassandra pediu-me segredo…

Rob sorriu maliciosamente e disse-lhe.

-Nunca te esqueças: A vingança nem sempre se serve fria. Às vezes pode ser um prato muito quente.

Tobias ficou a olhar para Rob, enquanto pensava “Estou tramado”. Juntaram-se aos outros, que por esta altura estavam já a comer entremeadas e a beber umas cervejinhas. O resto da tarde e da noite decorreu sem grandes sobressaltos.

Quando acabaram de tocar, como era costume nas concentrações, começou o espectáculo de Strip-tease. A primeira bailarina veio, fez a sua actuação e saiu. Conforme ela saiu, alguém da organização trouxe uma cadeira para o palco. Rob tinha acabado de arrumar as suas coisas, ao fundo do palco, quando o Tobias se juntou a ele, na altura em que a segunda bailarina entrava.

Ela ia desfilando pelo palco.

-Quem será a vítima desta vez? – Perguntou Tobias, olhando para a cadeira e rindo, pensando no desgraçado que teria de se sentar ali, em frente a cinco mil pessoas. Rob olhou para a cadeira, olhou para a bailarina e, como se houvesse ali uma deixa escondida, ela dirige-se ao fundo do palco e estende a mão para o Tobias, que ficou atónito e pálido a olhar para ela.

-Lembras-te de eu te dizer que a vingança às vezes se serve quente? Bem, esta vem a escaldar. Disse à malta da organização que te ias casar no domingo. Eles acharam que merecias uma despedida de solteiro.

-Estás maluco?

-Não, e anda lá, que está a estragar o numero à moça.

Resignado, o Tobias lá se deixou levar, tendo sido sentado na cadeira.

A bailarina senta-se no colo dele, tira o já diminuto soutien agarra na cabeça do Tobias e enfia a cara dele no meio dos seus peitos, não só para gaudio da assistência, mas também dos companheiros de banda que simplesmente se desmanchavam a rir…




N.R. - Qualquer semelhança entre entre os factos relatados no final e acontecimentos no palco da concentração motard da Vidigueira há 19 anos atrás não são mera coincidência...

terça-feira, 22 de outubro de 2024

Rock'n'Roll, Baby! Yeah!

Renascimento (XXXIII de XL)

 Regressava Rob de Évora, onde tinha ido à prova final do seu fato, quando encontrou o já familiar todo o terreno de Patrícia parado à porta da sua loja, o que o surpreendeu.

Sabia que ela era, mas não falara com ela minimamente. Aparentemente a única pessoa da terra que tinha falado com ela era o Zé. Entrou pela loja, para deixar sacos que trazia consigo em casa, e viu Patrícia a sair do estabelecimento do Zé, apressadamente, e dirigir-se a si. Entrou na loja logo a seguir a ele.

-Senhor Rob Mitchell? – Perguntou assim que entrou.

-Em carne e osso.

-O meu nome é Patrícia Simons e precisava falar consigo.

-E o que posso fazer por si senhora Simons?

-É senhorita, por acaso.

-Tudo bem. – Respondeu Rob, repetindo em seguida a pergunta – O que posso fazer por si, senhorita Simons?

-Trate-me por Patrícia, por favor. Deve ter uma ideia de quem sou…?

-Sei que tem algo a ver com a Herdade do Monte.

-Sim. Represento a fundação que adquiriu a herdade.

-Uma fundação?

-Sim. Tencionamos manter a herdade produtiva, com aquilo que já tem, a vinha e o azeite, mas o nosso objectivo é outro. Criámos um complexo que terá alojamentos, salas de ensaio, vários estúdios pequenos, um estúdio principal e um auditório.

-Interessante. E o que precisa de mim?

-Bem, tive instruções para falar consigo acerca da possível utilização dos seus instrumentos, que tem aqui em exposição, bem como outro material mais vintage e único num contexto de utilização de estúdio e completamente assegurado por nós.

Rob olhou em volta.

-Tenho a certeza que uma fundação poderia facilmente ter acesso a este tipo de material…

-Sim, mas também tive instruções para lhe perguntar se não quer assumir um papel consultivo em relação a montagem quer dos estúdios pequenos, quer do principal.

-Eu? Porquê?

-Bem, disseram-me que devia consultá-lo, sendo que até já tem em sua posse, por empréstimo, uma das guitarras da fundação…

Rob parou a olhar para ela, que mantinha um ar sério e impávido. 

-Qual o nome da fundação, se não se importa que eu pergunte?

-Fundação MaCallum para promoção de novos músicos.

Rob ficou estático e mudo durante algum tempo antes de conseguir falar:

-Nunca ouvi falar nessa fundação.

-Não admira. Foi recém-estabelecida pela viúva de Robert MaCallum e visa criar um ambiente onde jovens músicos podem desenvolver vários aspectos da criação musical, falando em particular da herdade. Mas num aspecto mais global dedica-se a permitir que as famílias de jovens dotados para a música mas que não podem suportar os encargos de uma educação, sejam subsidiados na totalidade para que essa educação não falte. 

-Recém estabelecida?

-Sim, logo a seguir à morte de Robert MaCallum ter sido oficialmente declarada. A viúva estabeleceu esta fundação que é financiada na sua totalidade pelos ganhos do património que ele deixou.

Rob ficou sem saber o que pensar.

-E porque veio falar comigo agora? Já se cruza comigo aqui há meses…

-Bem, a directora da fundação queria falar consigo pessoalmente, mas alguns aspectos urgentes impõem que equipemos as salas de gravação o mais rapidamente possível e disseram-me que teria de falar consigo e que a aquisição de material seria também através da sua loja.

Rob pensou um pouco.

-Antes de lhe dar uma resposta, posso ver os locais?

-Absolutamente. Aliás tenho estado à sua espera para, caso queira, o poder acompanhar numa visita e se possível tratar já dos equipamentos a adquirir.

-Agora?

-Se assim o desejar…

Rob levou os sacos que trazia para o interior da casa, voltou em seguida e saíram ambos. Foram no carro de Patrícia, que o levou directo à herdade. Passaram pela casa onde pareciam já não decorrer trabalhos, mas não pararam.

-Não fizeram nada à mansão?

-Sim, alguns trabalhos de modernização, mas não muito grandes. A Mansão não fará parte do complexo.

-Percebo.

Andaram mais um pouco até chegarem a um enorme pavilhão. Entraram e Rob ficou surpreendido. Estavam num anfiteatro com capacidade para cerca de quatrocentas pessoas.

-Tencionamos dar concertos aqui. Vai haver pessoal a ter formação técnica, como técnicos de luz, som, imagem e temos este auditório que servirá também para eventos protocolados com a câmara municipal. Além disso, se quisermos, podemos gravar uma orquestra inteira aqui. Portanto pode também servir como sala de gravação. Por baixo há uma cave que é mais ou menos do tamanho da sala para arrumos e com elevadores para o palco.

-Impressionante.

Continuaram a caminhar e entraram na sala da régie do anfiteatro.

-Aqui vamos precisar e mesas de mistura e som automatizadas. O fundo do palco é um ecrã enorme pelo que podemos projectar o que quisermos no fundo.

Saíram da sala e foram caminhando por corredores onde havia algumas salas de trabalho, salas de ensaio que precisariam de equipamentos, e mais três estúdios diferentes, que iam desde uma régie e uma pequena sala de captação, outro que era uma sala de ensaio com uma sala isolada e uma régie, E outro composto por uma régie e uma série de salas isoladas. Depois passaram a uma área que parecia um refeitório e sala de estar. E finalmente chegaram a uma área que mais parecia corredores de um qualquer hotel, com filas de quartos simples de dimensões semelhantes.

-Isto é algo deveras impressionante! – Exclamou Rob no fim da visita. Patrícia sorriu.

-A Senhora Directora tem sido incansável. Conseguiu estabelecer um protocolo com a Universidade de Évora e será dado aqui um curso de superior de música, bem como cursos de produção multimédia. Eles cedem os professores, nós cedemos as instalações, mas temos direito a um certo número de vagas para as bolsas que atribuímos a jovens do mundo inteiro.

-Vai haver aqui um polo universitário?

-Sim.

-Bem, a quantidade de equipamento…

-Calculei que isso o preocupasse, por isso temos já uma lista com os requisitos para a maior parte das coisas. Mas, no estúdio intermédio e no grande, a Directora especificou que, caso o senhor Mitchell aceitasse, deveria ser ele a escolher todo o material, levando em atenção que o estúdio grande têm também ligação ao anfiteatro. Além disso queremos também atrair músicos e bandas para usarem os nossos estúdios, junto com produtores de renome. Daí o pedirmos para, em raras ocasiões, podermos usar os seus equipamentos e instrumentos que tem na loja, o que ficará completamente à sua descrição. O facto de nós pedirmos não o obrigaria a ceder.

Rob acenou, compreendendo. Saíram do pavilhão enorme pela entrada dos alunos e Rob, ao olhar para cima e ver escrito “Fundação MaCallum”, não pode deixar de se rir para si próprio, com a ironia.

-Reparei que não há qualquer imagem da pessoa que deu o nome à fundação… - disse Rob.

-Não. A Senhora Directora quer que se lembrem do nome, do espirito, do legado que também fica aqui patente, pois ela acha que ele ficaria satisfeito ao ver que o seu legado é usado para algo construtivo.

Rob sorriu. “Miranda espertinha” pensou.

-Devo dizer-lhe que é uma excelente embaixadora para a sua Directora.

-Não acho que precise de o ser. Afinal, o senhor Mitchell já a conhece…

-E o que vai acontecer à mansão?

-Bem, a Senhora Directora deverá mudar-se em definitivo no próximo Sábado, na véspera do casamento de Cassandra.

De repente apeteceu a Rob um daqueles bagaços caseiros do Zé…