segunda-feira, 1 de abril de 2024

Conscientização - XXVIII

  

Acordam horas mais tarde com o frio do ambiente a gelar-lhes a pele, ainda meio tontos pelo efeito do fumo que se havia já dissipado e da bebida.

Ele solta-a, ela levanta-se e abraça-o, beijam-se, mas não dizem uma palavra.

Ele sai, vai buscar as suas roupas enquanto ela se veste apanhando as suas do chão onde tinham ficado abandonadas.

Ele aparece já vestido, saem os dois, calmamente, de braço dado, entram no carro e seguem dali por um caminho de terra batida que os leva à casa que está perto, no cimo do monte que domina toda a paisagem circundante.

Entram na casa pelas traseiras, directamente para a cozinha e ele descobre algum pão alentejano, queijo e leite, o que ele não estranha visto que, apesar de ser a primeira vez que aqui está desde que fora com Andreia, ela tem vindo frequentemente.

Prepara um pequeno-almoço para ambos e vêm para fora. Sentam-se numas cadeiras de jardim a ver a luz difusa da aurora a transformar-se num magnífico amanhecer. Finalmente, depois de começarem a comer, as forças parecem voltar e ele quebra o silêncio.

- Então, gostaste da tua surpresa?

Ela não responde por palavras, mas o brilho nos seus olhos e o seu sorriso de miúda que fizera a maior das travessuras responde-lhe.

- O que é que estava naquela bebida? – Pergunta ela – Isto para além do Absinto, claro…

- Láudano.

Ela deu uma gargalhada.

- Querias que eu visse Deus?

- Queria.

- E achas que vi?

Ele olhou-a bem nos olhos brilhantes e radiantes com uma felicidade indesmentível.

- Acho…

Ela assentiu, concordando.

- Nunca passei por algo assim. Ainda estou…

- Extasiada?

- Sim, é essa a palavra. Extasiada!

- Estás feliz?

- Agora, aqui, neste momento, estou.

- Óptimo. – Disse ele, com um sorriso pleno de satisfação.

- Posso fazer-te uma pergunta?

- Como já te disse uma vez, podes sempre perguntar tudo. Quanto à resposta, logo se vê.

- Aqueles contactos todos que me mostraste no telemóvel… Conheces mesmo aquela gente toda?

- Sim, claro.

- E já… estiveste intimamente com algumas delas?

- Sim. Com bastantes, até. Porquê?

- Acho estranho…

- O quê?

- Que um tipo como tu, com algumas das mulheres mais desejadas do mundo à distância de um telefonema, esteja no meio de uma herdade num país periférico comigo…

Ele olhou-a e o seu ar tornou-se sério.

- Uma crise de identidade a uma hora destas, D. Céu?

- Não é isso… Tu sabes o que eu quero dizer…

Ele ficou em silêncio algum tempo, a observar a magnífica luz de um laranja intenso, quase encarnado, que começava a despontar no horizonte. Depois, falou, finalmente.

- Lembras-te do dia em que te conheci, no quarto do hotel? Ela assentiu.

- Nesse dia disse-te que estava farto de putas. Todas elas se julgam o máximo, a maior dádiva de Deus aos homens… Mas não são. Vivem nos seus castelos no ar e no seu mundo de faz de conta, com o glamour e com os excessos, mas depois há uma falta de valores, uma falta de dignidade… Essas são verdadeiras putas. Muitas vezes não querem vender o sexo, mas tentam vender uma ilusão de amor, o que é muito mais letal.

Ficaram ambos em silêncio, ele porque não lhe apetecia dizer mais e ela porque percebeu isso mesmo.

Ela olha em volta, observando a paisagem cada vez mais nítida à medida que o sol vai subindo no horizonte.

- Que sítio é este, afinal?

Ele sorriu.

- Estas a ver aquelas casas que estão em obras ali ao fundo? – Disse apontando. – Eu nasci na segunda casa, contando da esquerda para a direita e fui criado pela minha avó até aos seis na última casa da correnteza.

Ela olhou para ele, surpreendida.

- Jura!

- Mesmo.

- Tu és Alentejano? – Perguntou com uma gargalhada.

- De gema.

- E como é que te aconteceu… isto?! – Perguntou ela fazendo um gesto com as mãos na direcção dele que tentava abarcá-lo. Ele perdeu o olhar no sol que nascia, embora lhe parecesse a ela que não era para o sol que ele olhava, mas para um passado carregado de nostalgia.

- Sabes, quer os meus avós paternos, quer maternos eram trabalhadores desta herdade. Quando eu nasci, os meus avós paternos já tinham falecido. O meu pai tinha um irmão que tinha conseguido ir para os Estados Unidos e que o quis levar também, mas ele não quis. A minha avó dizia-me que ele tinha ficado só por causa da minha mãe e que desde miúdos eles eram inseparáveis. Mas a minha mãe faleceu ao dar-me à luz. O meu pai prometeu à minha mãe que faria tudo por mim. Mas ele sabia que se ficasse não poderia ter grande esperança. Acabou por ir atras do irmão e, como não tinha condições de me levar, deixou-me com a minha avó. Tenho poucas recordações da minha infância, mas lembro-me da minha avó. Eu adorava-a. Quando eu tinha seis anos o meu pai mandou chamar-me. Fiz a viagem de barco, sozinho. Não te passa pela cabeça o medo que tive. Mas lá cheguei, a New York, e tinha um desconhecido à minha espera, que por acaso era meu pai. Nunca consegui ter uma grande relação com ele. Era uma pessoa distante. Tinha dois empregos e acabava por não ter tempo para mim. Mas conseguiu dar-me uma educação. Acabei por trabalhar numa empresa de consultadoria financeira em Wall Street. Era porteiro do edifício. Mas como era simpático os chefões acabaram por gostar de mim e iam-me dando dicas. Até que houve alguém que me aconselhou a investir no mercado tecnológico. Investi nas empresas “dot com” e, de repente, sem saber como, estava cheio de dinheiro. O resto foi reinvestimentos e aumentar cuidadosamente o meu património. Nada mal para um miúdo nascido atrás-do-sol-posto-três-dias, não achas?

Ela ficou em silêncio. Percebeu que ele, provavelmente, teria vontade de dizer muito mais, mas não quis, e ela resolveu não insistir. Sentia-se triste por ele. Apetecia-lhe dizer o quanto sentia pela sua mãe, naquele momento. Mas achou melhor não o perturbar ao ver os olhos dele, vazios, distantes, negros…

- Vamos? – Perguntou ele de repente, como se tivesse despertado, com o sorriso a voltar-lhe ao rosto.

Ela limitou-se a assentir com a cabeça e agarrou a mão que ele lhe estendeu levantando-se e seguindo com ele para o carro. Sentia a sua voz embargada na garganta.

Entraram no carro e seguiram de volta para Lisboa.


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