Há já uma semana que César tinha ido para o Alentejo com Andreia para receberem e arrumarem os carros dele.
Quando foram ao porto de Sines
para ver os contentores ela tinha-se assustado.
- Mas tu já conduziste estes
carros todos?
- Todos. Pelo menos uma vez… Há
alguns que não são nada agradáveis de conduzir.
- Topos de gama destes e não
são agradáveis?
- Alguns deles são os piores
carros que já conduzi! Olha, por exemplo, o Countach. A melhor máquina do seu
tempo, feito para ultrapassar o Testarossa só por um bocadinho, mas horrível de
conduzir e nem vale a pena pensar em fazer manobras com ele.
- E o que é que vais fazer com
isto tudo?
- Um museu, na herdade. Isto a
par de um hotel e um Spa, um restaurante onde apenas podes comer a típica
comida Alentejana feita com produtos da região, preferencialmente produzidos
biologicamente por nós, e acabaremos por ser uma quinta turística e uma pequena
vila. Além disso, por causa dos carros, também pensei em fazer uma pista onde
se pode desfruta-los, e ter alguns outros propositadamente só para fazer uma
espécie de “track days” com carros alugados. Era giro com o Alentejo como pano
de fundo.
- E achas que a herdade tem
espaço para isso tudo?
- Pois, tenho pensado nisso. Se
calhar temos que nos expandir… Ela voltara para Lisboa e ele seguira com os
carros.
A semana anterior tinha sido
intensa. Ela sabia que César era um excelente amante, mas nunca o achara tão…
fogoso! E apaixonado! Surpreendente também pela assunção da relação de ambos
perante todos, sem uma única palavra, mas não o escondendo de ninguém. Mais
surpreendente ainda ao perceber que a mudada Andreia ficou feliz por isso,
demonstrando uma abertura com ela que um mês e meio antes teria sido
impossível. Por terem finalmente conversado e ela ter percebido que olhar
tímido de Andreia sempre tinha sido de admiração, ao contrário do que Céu
assumira, e acabaram por descobrir uma na outra a amiga que já há muitos anos
não tinham, ganhando intimidade e empatia muito rapidamente.
E depois desta revolução
rápida, uma semana de mais do mesmo, com o tempo a parecer arrastar-se
interminavelmente até àquele dia marcado, em que voltavam os dois do Alentejo.
Aproveitou o tempo a sós para preparar uma rotina diferente do habitual. Queria
impressioná-lo.
O dia chegou e com ele um
telefonema que anunciava que viriam tarde, por isso ele ia directamente para o
clube.
Neste momento ela estava já em
cima do palco, preparada, mas ele ainda não tinha chegado e isso estava a
deixar-lhe os nervos em franja. Ele tinha de estar ali.
Finalmente ele chegou, apressado,
e sentou-se. Ela sorriu, descomprimiu um pouco, respirou fundo, deu a deixa
para a música entrar. A música começou suave numa introdução longa em que ela
caminhou até ao varão com suavidade e segurança até a voz de Annie Lennox
começar a cantar:
Money can´t buy it… baby Sex
can´t buy it… baby Drugs can´t buy it… baby You can’t buy it… baby
Ela fez o playback a olhar
directamente para César e depois lançou o corpo pelo ar, fazendo um mortal
apenas com uma mão segura ao varão que a obrigava a movimentar em círculos e os
pés mal tocam no chão e ela eleva-se com leveza subindo o varão em espiral com
o corpo perfeitamente paralelo e as pernas em V, não tendo contacto com o varão
senão com as mãos, desafiando a gravidade de uma maneira quase mágica, chegando
ao cimo rapidamente e elevando o corpo tornando-o perpendicular, e depois
fazendo o pino e pondo os saltos no tecto, parecendo caminhar à volta do poste
e dando, por um momento, a ilusão à plateia de que esta é que estava de cabeça
para baixo, deixa-se precipitar com uma velocidade vertiginosa e, num movimento
rápido, agarra-se e enrola-se ao varão parando a queda e ficando a rodar junto
ao chão, num gesto que fez suspender a respiração a todos os que estavam presos
nela.
A música continuou, com a
conjugação de gestos e palavras a caírem bem fundo nele, a dizerem-lhe o que
ela nunca lhe tinha dito:
I believe that love alone
might do these things for you
I believe in love alone yeah
yeah
Take the power to set you free
Kick down the door and throw
away the key Give up your needs...
Your poisoned seeds
Find yourself elected to a
different kind of creed
I believe that love alone
might do these things for you
I believe that love alone
might do these things for you
I believe in the power of
creation
I believe in the good
vibration
I believe in love alone yeah
yeah
Won't somebody tell me what
we're coming to
It might take forever till we
watch those dreams come true
All the money in the world
won't buy you peace of mind
You can have it all but you
still won't be satisfied
Money can't buy it... baby
Sex can't buy it... baby
Drugs can't buy it... baby
You can't buy it... baby
O corpo dela contorcia-se,
enrolava-se, lançava-se, sempre em movimentos fluídos e contínuos, sem quebras,
numa coreografia que complementava as palavras e que estava a deixá-lo sem
respiração. A beleza do conjunto era inspiradora e na sala o silêncio que se
fez sublimava o momento que se vivia.
Repentinamente a batida muda,
junto com a música, um ritmo mais sexy, mais arrojado, como os movimentos se
tornaram de repente. Mais uma vez uma música com uma letra que César sabia ter
sido escolhida para si, cantada pela Kylie Minogue:
Count backwards, 5 4 3 2 1,
Before you get too heated and
turned on,
You should have learned your
lessons all them times before,
You’ve been bruised you’ve
been broken,
Then theres my mind sayin
think before you go,
Through that door it could
lead you nowhere,
This guy
Has got you all romantic,
crazy in your head,
Do you think id listen, no i
dont care,
Cause I can't focus,
I can't stop,
You got me spinning round,
round, round, round
Like a record,
I can't focus it's too hot
Inside,
You'll never get to Heaven
If you're scared of getting
high,
Boy, boy,
Let me keep freakin around, I
wanna get down,
I'm a red blooded woman,
What's the point in hanging
round,
Don't wanna keep turning it
down,
When this girl wants to rock
with you
A nudez surgiu com uma
suavidade inesperada e completamente encaixada no ritmo. O silêncio era tal que
até o próprio staff do clube parou para ver o que Céu lhes apresentava.
O número acabou com ela
deitada na horizontal no chão e com o olhar fixo nos olhos de César. O silêncio
fez-se sentir por mais alguns instantes e de repente parecia que todos tinham
emergido de um sonho e a sala irrompeu em aplausos. Se naquela noite havia um
homem invejado no mundo, esse homem era César, sem dúvida.
Ela retirou-se, cansada mas
plenamente realizada. Fizera arte, na sua forma mais pura, e sabia-o. Não
interessava o que mais alguém pensasse.
Foi de imediato para o
camarim, e quis rapidamente tomar um duche. Enquanto sentia a água a arrastar
algum do cansaço do corpo, junto com a transpiração da actividade intensa,
perguntava-se o que teria achado o destinatário.
Estava a acabar de se
desmaquilhar quando ele entrou pelo camarim.
- Oi. – Disse, resistindo ao
impulso de se atirar a ele por ainda não ter acabado.
- Olá.
Ele ficou a vê-la, a limpar-se
o mais depressa que podia com um sorriso sacana, aquele sorriso que ela tanto
apreciava e ao qual retribuía no espelho. Quando ela estava quase pronta ele
disse:
- Não tenho medo das alturas.
Ela sorriu.
- Então é provável que chegues
ao Céu.
- Talvez preferisse chegar à
Céu… – respondeu ele.
Ela acaba entretanto, vira-se
para ele com um olhar de gata em pleno cio.
- Isso talvez se possa
arranjar… – e lança-se a ele, os seus lábios contra os dele, os braços dele a
receberem-na e a envolveram-na, correspondendo ao beijo.
Quando finalmente se separam
ele fica simplesmente a contemplá-la com uma expressão nos olhos que ela nunca
lhe vira e que por momentos não soube decifrar. Sentiu que ele olhava para ela,
realmente para ela, para lá de todas as aparências e gostou de ser vista assim.
- Sabes, – disse ele – tenho
pensado um bocado desde a conversa que tive com a Julia, e cheguei a uma
conclusão.
- Diz – disse ela, sem saber o
que esperar.
- Estás despedida.
Ela ficou atónita a olhar para
ele.
- Como…?!
- Estás despedida.
Ela ficou em silêncio.
Esperava tudo, mesmo tudo, menos aquilo. Finalmente lá se atreveu a perguntar:
- E o que é que isso quer dizer
ao certo?
- Bem, quer dizer que eu vou
prescindir dos teus serviços e não vamos ter mais nenhuma relação laboral.
Ela sentia o coração apertado,
sem saber o que dizer.
- Também que dizer, – continuou
ele – que te posso dar isto sem ser acusado de assédio a uma funcionária. – e
tirou uma pequena caixa preta do bolso do casaco, oferecendo-lha. Ela percebeu
de imediato o que a caixa era e ficou em pânico. Não! Não, não! Se o ser
despedida não lhe passara pela cabeça, disto nunca fizera sequer uma
conjectura. Olhou para a caixa, na sua mão. Sem saber o que fazer. Ele fez.
- Realmente, que pouco
cavalheiro da minha parte. – disse, tirando-lhe a caixa. Abriu-a, voltada para
ela, mostrando-lhe de imediato um magnífico diamante engastado num anel de ouro
branco e perguntou:
- Dar-me-ias a honra de ser
minha mulher?
Se alguma vez um ser humano
ficou sem palavras foi naquele momento. Estava perfeitamente em choque, sem
reacção, sem lhe ocorrer sequer um pensamento, e depois veio o medo, veio o
diabinho escuro do fundo da sua alma que lhe dizia quem ela era e ela abanou a
cabeça, as lagrimas assomaram-lhe aos olhos, olhou para ele e tentou falar.
- César, tu… eu… sabes bem o
que eu sou! Ele olhou-a, a sua expressão ficou séria.
- Até sei mais que isso. Sei
quem tu és. E tu sabes quem eu sou, nenhum dos dois é flor que se cheire, por
isso, só estragamos uma família… – ela não conseguiu conter uma gargalhada
perante aquela lógica impenetrável que só ele tinha, mas que fazia sempre pleno
sentido.
- Vá lá, miúda, o que é que
dizes?
Ela olhou para ele com os
olhos mareados de uma felicidade imensa, como se este momento fosse a redenção,
como se finalmente descobrisse que merecia estar com alguém, merecia alguém do
seu lado.
- Sim! – acabou por dizer num
pranto, e abraçou-se a ele, que a recebeu nos seus braços e a levantou do chão
– Sim, sim, sim, sim! – continuava a dizer baixinho a chorar, como se se
sentisse num sonho e estivesse próximo a abrir os olhos e a ver desvanecer-se
aquele momento.
Ele finalmente pousa-a, larga-a,
agarra-lhe na mão e faz deslizar o anel no seu dedo.
- Espero que gostes… – disse
ele.
- Estás a brincar? Podia ser
uma argola de uma lata de Coca-Cola e era lindo na mesma…
- Pena não ter falado contigo
antes. – disse ele, rindo-se – Tinha poupado uma batelada de dinheiro.
- Sempre dava para comprares
mais um carro…
- Pois… – disse ele rindo. – Já
agora, não queres ir… celebrar?
- Quero! – Disse ela num
repente, tornando-se prática, largando-o e começando a vestir-se.
- Olha, não quero ser um noivo
chato, mas…
- Sim?
- Vais continuar a dançar aqui?
Ela parou. Nem tinha pensado
nisso.
- Pois… – disse ela,
subitamente sentindo-se dividida. Não que sentisse a falta do espaço, do local,
mas a dança, a exibição de arte… A dança tal como a música ou qualquer outra
arte só tem um sentido maior, enquanto expressão, de uma forma partilhada.
- Tenho uma proposta para ti.
Porque não criar uma academia de dança onde possas ensinar a tua arte?
- Ensinar?
- Sim. Porque não? Fizeste isso
com a Andreia e não te deste nada mal. Sempre podes dar um bocadinho da tua
visão às tuas alunas. E podes continuar a dar espectáculos… Até mesmo aqui… Não
numa base regular, mas… uma vez por outra! Com os devidos limites claro.
- Limites?
- Claro. Para te despires para
alguém, despes-te para mim. – Disse ele com “o tal” sorriso sacana.
Ela entretanto acabou de se
vestir.
- Amanhã falo com eles. Hoje
tenho coisas mais urgentes para fazer. Mas sim, tens razão.
- Também não tens de sair já
amanhã…
- Não, mas dou-lhes algum
aviso. Eles sempre foram correctíssimos comigo portanto não tenho razão nenhuma
para sair em maus termos.
Saíram do camarim, percorreram
o corredor para a porta de serviço, o segurança abriu-lhes a porta e caminharam
para o carro de César que estava quase em frente, do outro lado da rua,
bloqueado por um outro no qual estava alguém. Cesar destrancou o carro com o
comando e, não vendo qualquer movimento por parte do outro carro disse a Céu –
Vai entrando que eu vou pedir para tirarem o carro – e ela avançou, largando-o,
enquanto ele chegava à janela do outro carro – Desculpe, – disse – não se
importa… – a janela abriu-se e ele viu um clarão, sentiu um impacto no peito
que o projectou para trás e já estava em queda quando ouviu um estrondo e já
nem chegou a ouvir os subsequentes nem se sentiu a cair no chão, apenas ouviu,
muito ao longe a voz de Céu a gritar o seu nome…
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