terça-feira, 16 de abril de 2024

Conscientização - XLIV

 Há uma semana que César tinha ido para o Alentejo com Andreia para receberem e arrumarem os carros dele.

Quando foram ao porto de Sines para ver os contentores ela tinha-se assustado.

- Mas tu já conduziste estes carros todos?

- Todos. Pelo menos uma vez… Há alguns que não são nada agradáveis de conduzir.

- Topos de gama destes e não são agradáveis?

- Alguns deles são os piores carros que já conduzi! Olha, por exemplo, o Countach. A melhor máquina do seu tempo, feito para ultrapassar o Testarossa só por um bocadinho, mas horrível de conduzir e nem vale a pena pensar em fazer manobras com ele.

- E o que é que vais fazer com isto tudo?

- Um museu, na herdade. Isto a par de um hotel e um Spa, um restaurante onde apenas podes comer a típica comida Alentejana feita com produtos da região, preferencialmente produzidos biologicamente por nós, e acabaremos por ser uma quinta turística e uma pequena vila. Além disso, por causa dos carros, também pensei em fazer uma pista onde se pode desfruta-los, e ter alguns outros propositadamente só para fazer uma espécie de “track days” com carros alugados. Era giro com o Alentejo como pano de fundo.

- E achas que a herdade tem espaço para isso tudo?

- Pois, tenho pensado nisso. Se calhar temos que nos expandir… Ela voltara para Lisboa e ele seguira com os carros.

A semana anterior tinha sido intensa. Ela sabia que César era um excelente amante, mas nunca o achara tão… fogoso! E apaixonado! Surpreendente também pela assunção da relação de ambos perante todos, sem uma única palavra, mas não o escondendo de ninguém. Mais surpreendente ainda ao perceber que a mudada Andreia ficou feliz por isso, demonstrando uma abertura com ela que um mês e meio antes teria sido impossível. Por terem finalmente conversado e ela ter percebido que olhar tímido de Andreia sempre tinha sido de admiração, ao contrário do que Céu assumira, e acabaram por descobrir uma na outra a amiga que já há muitos anos não tinham, ganhando intimidade e empatia muito rapidamente.

E depois desta revolução rápida, uma semana de mais do mesmo, com o tempo a parecer arrastar-se interminavelmente até àquele dia marcado, em que voltavam os dois do Alentejo. Aproveitou o tempo a sós para preparar uma rotina diferente do habitual. Queria impressioná-lo.

O dia chegou e com ele um telefonema que anunciava que viriam tarde, por isso ele ia directamente para o clube.

Neste momento ela estava já em cima do palco, preparada, mas ele ainda não tinha chegado e isso estava a deixar-lhe os nervos em franja. Ele tinha de estar ali.

Finalmente ele chegou, apressado, e sentou-se. Ela sorriu, descomprimiu um pouco, respirou fundo, deu a deixa para a música entrar. A música começou suave numa introdução longa em que ela caminhou até ao varão com suavidade e segurança até a voz de Annie Lennox começar a cantar:

 

Money can´t buy it… baby Sex can´t buy it… baby Drugs can´t buy it… baby You can’t buy it… baby

 

Ela fez o playback a olhar directamente para César e depois lançou o corpo pelo ar, fazendo um mortal apenas com uma mão segura ao varão que a obrigava a movimentar em círculos e os pés mal tocam no chão e ela eleva-se com leveza subindo o varão em espiral com o corpo perfeitamente paralelo e as pernas em V, não tendo contacto com o varão senão com as mãos, desafiando a gravidade de uma maneira quase mágica, chegando ao cimo rapidamente e elevando o corpo tornando-o perpendicular, e depois fazendo o pino e pondo os saltos no tecto, parecendo caminhar à volta do poste e dando, por um momento, a ilusão à plateia de que esta é que estava de cabeça para baixo, deixa-se precipitar com uma velocidade vertiginosa e, num movimento rápido, agarra-se e enrola-se ao varão parando a queda e ficando a rodar junto ao chão, num gesto que fez suspender a respiração a todos os que estavam presos nela.

A música continuou, com a conjugação de gestos e palavras a caírem bem fundo nele, a dizerem-lhe o que ela nunca lhe tinha dito:

 

I believe that love alone might do these things for you

I believe in love alone yeah yeah

Take the power to set you free

Kick down the door and throw away the key Give up your needs...

Your poisoned seeds

Find yourself elected to a different kind of creed

 

I believe that love alone might do these things for you

I believe that love alone might do these things for you

I believe in the power of creation

I believe in the good vibration

I believe in love alone yeah yeah

 

Won't somebody tell me what we're coming to

It might take forever till we watch those dreams come true

All the money in the world won't buy you peace of mind

You can have it all but you still won't be satisfied

 

Money can't buy it... baby

Sex can't buy it... baby

Drugs can't buy it... baby

You can't buy it... baby

 

O corpo dela contorcia-se, enrolava-se, lançava-se, sempre em movimentos fluídos e contínuos, sem quebras, numa coreografia que complementava as palavras e que estava a deixá-lo sem respiração. A beleza do conjunto era inspiradora e na sala o silêncio que se fez sublimava o momento que se vivia.

Repentinamente a batida muda, junto com a música, um ritmo mais sexy, mais arrojado, como os movimentos se tornaram de repente. Mais uma vez uma música com uma letra que César sabia ter sido escolhida para si, cantada pela Kylie Minogue:

 

Count backwards, 5 4 3 2 1,

Before you get too heated and turned on,

You should have learned your lessons all them times before,

You’ve been bruised you’ve been broken,

Then theres my mind sayin think before you go,

Through that door it could lead you nowhere,

This guy

Has got you all romantic, crazy in your head,

Do you think id listen, no i dont care,

 

Cause I can't focus,

I can't stop,

You got me spinning round, round, round, round

Like a record,

I can't focus it's too hot

Inside,

You'll never get to Heaven

If you're scared of getting high,

 

Boy, boy,

Let me keep freakin around, I wanna get down,

I'm a red blooded woman,

What's the point in hanging round,

Don't wanna keep turning it down,

When this girl wants to rock with you

 

A nudez surgiu com uma suavidade inesperada e completamente encaixada no ritmo. O silêncio era tal que até o próprio staff do clube parou para ver o que Céu lhes apresentava.

O número acabou com ela deitada na horizontal no chão e com o olhar fixo nos olhos de César. O silêncio fez-se sentir por mais alguns instantes e de repente parecia que todos tinham emergido de um sonho e a sala irrompeu em aplausos. Se naquela noite havia um homem invejado no mundo, esse homem era César, sem dúvida.

Ela retirou-se, cansada mas plenamente realizada. Fizera arte, na sua forma mais pura, e sabia-o. Não interessava o que mais alguém pensasse.

Foi de imediato para o camarim, e quis rapidamente tomar um duche. Enquanto sentia a água a arrastar algum do cansaço do corpo, junto com a transpiração da actividade intensa, perguntava-se o que teria achado o destinatário.

Estava a acabar de se desmaquilhar quando ele entrou pelo camarim.

- Oi. – Disse, resistindo ao impulso de se atirar a ele por ainda não ter acabado.

- Olá.

Ele ficou a vê-la, a limpar-se o mais depressa que podia com um sorriso sacana, aquele sorriso que ela tanto apreciava e ao qual retribuía no espelho. Quando ela estava quase pronta ele disse:

- Não tenho medo das alturas. Ela sorriu.

- Então é provável que chegues ao Céu.

- Talvez preferisse chegar à Céu… – respondeu ele.

Ela acaba entretanto, vira-se para ele com um olhar de gata em pleno cio.

- Isso talvez se possa arranjar… – e lança-se a ele, os seus lábios contra os dele, os braços dele a receberem-na e a envolveram-na, correspondendo ao beijo.

Quando finalmente se separam ele fica simplesmente a contemplá-la com uma expressão nos olhos que ela nunca lhe vira e que por momentos não soube decifrar. Sentiu que ele olhava para ela, realmente para ela, para lá de todas as aparências e gostou de ser vista assim.

- Sabes, – disse ele – tenho pensado um bocado desde a conversa que tive com a Julia, e cheguei a uma conclusão.

- Diz – disse ela, sem saber o que esperar.

- Estás despedida.

Ela ficou atónita a olhar para ele.

- Como…?!

- Estás despedida.

Ela ficou em silêncio. Esperava tudo, mesmo tudo, menos aquilo. Finalmente lá se atreveu a perguntar:

- E o que é que isso quer dizer ao certo?

- Bem, quer dizer que eu vou prescindir dos teus serviços e não vamos ter mais nenhuma relação laboral.

Ela sentia o coração apertado, sem saber o que dizer.

- Também que dizer, – continuou ele – que te posso dar isto sem ser acusado de assédio a uma funcionária. – e tirou uma pequena caixa preta do bolso do casaco, oferecendo-lha. Ela percebeu de imediato o que a caixa era e ficou em pânico. Não! Não, não! Se o ser despedida não lhe passara pela cabeça, disto nunca fizera sequer uma conjectura. Olhou para a caixa, na sua mão. Sem saber o que fazer. Ele fez.

- Realmente, que pouco cavalheiro da minha parte. – disse, tirando-lhe a caixa. Abriu-a, voltada para ela, mostrando-lhe de imediato um magnífico diamante engastado num anel de ouro branco e perguntou:

- Dar-me-ias a honra de ser minha mulher?

Se alguma vez um ser humano ficou sem palavras foi naquele momento. Estava perfeitamente em choque, sem reacção, sem lhe ocorrer sequer um pensamento, e depois veio o medo, veio o diabinho escuro do fundo da sua alma que lhe dizia quem ela era e ela abanou a cabeça, as lagrimas assomaram-lhe aos olhos, olhou para ele e tentou falar.

- César, tu… eu… sabes bem o que eu sou! Ele olhou-a, a sua expressão ficou séria.

- Até sei mais que isso. Sei quem tu és. E tu sabes quem eu sou, nenhum dos dois é flor que se cheire, por isso, só estragamos uma família… – ela não conseguiu conter uma gargalhada perante aquela lógica impenetrável que só ele tinha, mas que fazia sempre pleno sentido.

- Vá lá, miúda, o que é que dizes?

Ela olhou para ele com os olhos mareados de uma felicidade imensa, como se este momento fosse a redenção, como se finalmente descobrisse que merecia estar com alguém, merecia alguém do seu lado.

- Sim! – acabou por dizer num pranto, e abraçou-se a ele, que a recebeu nos seus braços e a levantou do chão – Sim, sim, sim, sim! – continuava a dizer baixinho a chorar, como se se sentisse num sonho e estivesse próximo a abrir os olhos e a ver desvanecer-se aquele momento.

Ele finalmente pousa-a, larga-a, agarra-lhe na mão e faz deslizar o anel no seu dedo.

- Espero que gostes… – disse ele.

- Estás a brincar? Podia ser uma argola de uma lata de Coca-Cola e era lindo na mesma…

- Pena não ter falado contigo antes. – disse ele, rindo-se – Tinha poupado uma batelada de dinheiro.

- Sempre dava para comprares mais um carro…

- Pois… – disse ele rindo. – Já agora, não queres ir… celebrar?

- Quero! – Disse ela num repente, tornando-se prática, largando-o e começando a vestir-se.

- Olha, não quero ser um noivo chato, mas…

- Sim?

- Vais continuar a dançar aqui?

Ela parou. Nem tinha pensado nisso.

- Pois… – disse ela, subitamente sentindo-se dividida. Não que sentisse a falta do espaço, do local, mas a dança, a exibição de arte… A dança tal como a música ou qualquer outra arte só tem um sentido maior, enquanto expressão, de uma forma partilhada.

- Tenho uma proposta para ti. Porque não criar uma academia de dança onde possas ensinar a tua arte?

- Ensinar?

- Sim. Porque não? Fizeste isso com a Andreia e não te deste nada mal. Sempre podes dar um bocadinho da tua visão às tuas alunas. E podes continuar a dar espectáculos… Até mesmo aqui… Não numa base regular, mas… uma vez por outra! Com os devidos limites claro.

- Limites?

- Claro. Para te despires para alguém, despes-te para mim. – Disse ele com “o tal” sorriso sacana.

Ela entretanto acabou de se vestir.

- Amanhã falo com eles. Hoje tenho coisas mais urgentes para fazer. Mas sim, tens razão.

- Também não tens de sair já amanhã…

- Não, mas dou-lhes algum aviso. Eles sempre foram correctíssimos comigo portanto não tenho razão nenhuma para sair em maus termos.

Saíram do camarim, percorreram o corredor para a porta de serviço, o segurança abriu-lhes a porta e caminharam para o carro de César que estava quase em frente, do outro lado da rua, bloqueado por um outro no qual estava alguém. Cesar destrancou o carro com o comando e, não vendo qualquer movimento por parte do outro carro disse a Céu – Vai entrando que eu vou pedir para tirarem o carro – e ela avançou, largando-o, enquanto ele chegava à janela do outro carro – Desculpe, – disse – não se importa… – a janela abriu-se e ele viu um clarão, sentiu um impacto no peito que o projectou para trás e já estava em queda quando ouviu um estrondo e já nem chegou a ouvir os subsequentes nem se sentiu a cair no chão, apenas ouviu, muito ao longe a voz de Céu a gritar o seu nome…


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