Ele limitava-se a aguardar. Olhava em
frente concentrado na estrada e esperava.
Ela sabia que teria que lhe
dar uma resposta, eventualmente. Não gostava de falar de si própria nem dos
seus motivos.
- Acho que no fundo não somos
assim tão diferentes. Tu tens uma sombra atrás de ti que é o teu dinheiro. Eu
tenho o meu corpo…
Ele assentiu.
- Sim, eu sei. Não é difícil de
perceber… E percebi isso logo no dia em que te conheci.
- Percebeste?
- Claro. Assumiste que eu tinha
entrado no teu camarim pelo mesmo motivo que todos os outros o fazem e só te
apercebeste que não no quarto do hotel.
- Baralhaste-me. Não esperava
que me dissesses tudo aquilo de uma forma tão… crua!
Ele soltou uma gargalhada.
- Estás habituada a ser
bajulada. Eu já passei essa fase…
- Fizeste-me pensar, e muito.
- Acredito.
- Fizeste-me sentir… reles!
- Não era essa a minha
intenção, garanto-te. Mas tinha de te explicar que o meu objectivo não era ir
contigo para a cama. Além disso ainda estava com os horários trocados e não
muito bem-disposto…
Ela ficou mais um pouco em
silêncio, sem saber se queria continuar a conversa ou não.
- Mas não te tratei mal, pois
não?
- Trataste-me pelo papel que eu
estava a ter ali, naquela altura. Mas fiquei com a impressão de que
simplesmente desprezavas até a ideia de estar comigo.
- Como te disse já várias
vezes, nunca paguei por sexo. Não me choca que seja visto como uma comodidade.
Simplesmente, para mim, não o é.
- Pode custar-te a acreditar,
mas para mim também não.
- Não?!
- Não. Apesar de me submeter a
receber dinheiro por sexo, nunca fui para a cama com alguém que não me dissesse
qualquer coisa, nem que fosse apenas a nível físico. Além disso, em algumas
vezes também usava isso como uma espécie de vingança…
- Vingança? Explica lá isso.
- Eles desejavam o meu corpo.
Nunca me quiseram conhecer ou falar comigo. Eu não sou só o meu corpo. Como
tal, eles que o usassem, se isso me permitia manter um certo nível de vida.
- O que, ao fim ao cabo, é o
que toda a gente no mundo faz. Toda a gente se vende.
Ela sorriu, embora a tristeza
não lhe tivesse abandonado os olhos.
- Sim, acho que é isso. Toda a
gente se vende.
César entrou numa área de
serviço, perto de Palmela, para abastecer o carro, cortando involuntariamente a
conversa.
- Queres alguma coisa da
estação? – Perguntou ele antes de sair do carro.
- Só se for uma garrafa de
água.
Ele abasteceu, dirigiu-se à
caixa para pagar e voltou com a garrafa de água que lhe entregou quando entrou
para o carro. Arrancaram.
- Porque é que fizeste isto
tudo? – Perguntou ela, num repente.
- Isto o quê?
- Esta noite…
Ele respirou fundo.
- Não fazes ideia?
Ela limitou-se a abanar a
cabeça num sinal de negação.
- É complicado explicar-te sem
cair nos lugares comuns. No fundo acho que nem eu sei muito bem.
- Tenta.
- Quando te vi, pela primeira
vez, na noite em que cheguei a Portugal, fiquei… abismado contigo. A minha
primeira impressão foi, como deves calcular, qualquer coisa na linha de “que
fêmea magnífica”, se bem que em inglês e não tão edificante. – Olhou para ela
para ver a sua reacção e recebeu um sorriso em troca. Continuou – Claro que
tinha os meus motivos para ali ter ido, e acho que hoje em dia os percebes bem,
e esses eram o que me interessava. E tu eras um meio. Daí a minha abordagem.
Ofereci-te aquele dinheiro todo porque tinhas de aceitar sair dali comigo.
- Só para que conste, não foi o
dinheiro que me convenceu.
- Não?!
- Bem,… também… mas foi a
atitude. Não escamoteaste, não te escondeste atrás de propósitos falsos…
Caramba, foste completamente seco e directo ao assunto. Estritamente negócios e
com uma confiança que eu estranhei. Fiquei curiosa…
- Então, ainda bem que
despertei a tua curiosidade. Percebi-te mais um pouco no hotel. Um pouco do teu
caracter e personalidade. E percebi que poderias ser útil como funcionária
minha.
- E foi só isso?
Acho que no fundo não. Ainda
que não pensasse em acontecer algo entre nós, não me era desagradável a ideia
de te ter a passear por minha casa ou poder usufruir da tua companhia. Pensando
bem, dei-me ao luxo de ser um pouco auto-indulgente. Depois veio a nossa
conversa naquela noite e percebi ali algo…
- Bem, posso dizer-te que a tua
exigência contractual me estava a deixar completamente com os nervos em franja.
Acho que desde que perdi a virgindade que não estava tanto tempo sem sexo. E
nessa noite até me sentia sufocar.
- Pois, notava-se.
- Era assim tão evidente?
- Completamente. Mas, sou-te
franco, surpreendeu-me o facto de tu corares.
E ela não disse nada, mas
corou novamente. Ele olhou para ela, levantou o sobrolho, sorriu e olhou pra a
estrada. Ela esperou um pouco e acabou por lhe interromper os pensamentos.
- Mas ainda não disseste o
porquê…
- Claro! – Respondeu ele com um
sorriso largo – No meio disto tudo, acabei por me perder… Onde é que eu ia? Ah!
Já sei. Dizia que apesar daquela noite atípica, também te disse a verdade
quando confidenciei que te achava bastante sensual. Entretanto, depois disso
passaste a trabalhar para mim e eu não queria, de maneira nenhuma, impor-te a
minha presença fora daquilo que eram as nossas obrigações contractuais. Lá por
trabalhares para mim não tinhas necessariamente de me aturar. Além disso há o
tal espectro do dinheiro, sempre atrás de mim a segredar-me ao ouvido. Mas, não
consegui resistir a fazer-te aquilo lá no ginásio…
- Irritaste-me tanto…
- Acredito. Mas foi aí que
pensei que se era para fazer algo contigo, teria de ser algo especial. E
lembrei-me disto. Algo que, se alguém me dissesse que o tinha feito eu
duvidaria. Portanto, quais seriam as hipóteses de teres passado por algo
semelhante?
Ela olhou-o, quase comovida.
- Foi… Especial!
Ele sorriu, com um toque de
melancolia nos olhos.
- Sabes… não tenho nenhuma
ilusão e sei que tu também não, verdade?
Ela assentiu.
- Carpe Diem.
E ele voltou novamente a sua
atenção para a estrada quando chegavam à praça da portagem da ponte sobre o
tejo, prestes a iniciar a travessia para Lisboa. Ficaram toda a extensão da
ponte em silêncio, ele com atenção ao trânsito, ela a ver o rio e Lisboa, que
se aproximava. Estavam já na A5, a subir Monsanto, quando ela interrompeu o
silêncio.
- Sabes que, mais especial do
que lugares e circunstâncias, são as pessoas.
Ele encarou-a como que a
tentar lê-la, com atenção, sorriu e os seus olhos tornaram-se límpidos e
brilhantes com uma expressão que ela não esperava ver. Fez apenas um ligeiro
assentimento com a cabeça e voltou a pôr a sua atenção na estrada, sem que a
expressão de felicidade lhe tivesse abandonado o rosto.
- Fui uma criança feliz.
Os olhos dele não saíram da
estrada, mas foi notável a maneira como a sua atenção mudou. Ela, sem ter a
certeza do que estava prestes a fazer, continuou.
- Os meus pais pertenciam à
classe média alta. Eram filhos únicos que estudaram e dedicaram muito tempo às
suas carreiras, pondo em segundo plano a vida familiar. Alias, não sei se
alguma vez sentiram alguma coisa um pelo outro, mas aquilo que eu recordo, era
a vivência de duas pessoas que se davam razoavelmente bem e que, por acaso,
coabitavam debaixo do mesmo tecto. Creio que devem ter chegado a uma altura em
que pensaram que deviam ter descendência e apareci eu, já tarde na vida deles.
No entanto, tive uma educação sempre nas melhores escolas, tinha actividades
extra curriculares.
A minha mão inscreveu-me no
Ballet clássico quando eu tinha quatro anos. Aos nove, a minha professora
sugeriu aos meus pais que tentassem inscrever-me no conservatório. E lá fui eu,
fazendo lá a preparatória e o secundário, até aos dezoito anos. Escusado será
dizer-te que me apaixonei pela dança. Entretanto, quando estava para entrar
para a universidade, um acidente de automóvel levou-os. E eu fiquei sem ninguém
neste mundo. Nem sabia sequer se tinha família, embora soubesse que os meus
avós já tinham morrido e que não tinha tios. Só não fiquei na rua porque a casa
passou directamente para mim.
- É a mesma casa onde ainda
moras?
- Sim, é a mesma. Entretanto,
como calculas, vi-me sem dinheiro, e estava habituada a que não me faltasse
nada. Fui-me aguentando, algum tempo, com a ajuda de vizinhos e conhecidos, mas
esses não podiam continuar a suportar-me para sempre. Até que comecei a passar
fome. Foi aí que recebi uma proposta muito pouco digna de um amigo do meu pai.
Fiquei enojada, revoltada. Disse-lhe para desaparecer da minha frente. Mas a
verdade é que quando já não aguentava mais, acabei por aceder, isto depois de
ter andado a mendigar pelas ruas. Eu sei, podia ter tentado fazer outras
coisas, mas a minha experiência de vida era muito limitada e, além de dançar,
não sabia fazer mais nada. Era só uma fedelha mimada. Fazer aquilo
revoltava-me. Mas eu tinha consciência do efeito do meu corpo nos homens.
Procurei e acabei por encontrar um tipo que trabalhava com Strippers para
concentrações motard. Isso já me permitiu começar a sobreviver sem ninguém. E
como bailarina que já era, não foi nada difícil começar a ganhar nome. Depois
vieram alguns clubes que me quiseram contratar e depois outros com mais nome…
Chegou a uma altura em que trabalhava em vários, ao longo da semana. Até que
cheguei aos clubes de luxo. Foi aí que comecei a ver algum dinheiro, em troca
de exclusividade. E foi aí que começaram a chover propostas e promessas…
- Deixaste-te ir?
- Sabes, estava habituada a um
luxo relativo. A minha primeira experiência no sexo foi com alguém que
praticamente me violou e isso fez-me retrair. Por outro lado, sentia-me muito
só. Comecei a aceitar algumas propostas, consoante quem as fazia, e acredita
que nunca foram as mais altas que tive. Foi com um frequentador de um clube que
eu considero ter tido a minha primeira verdadeira experiencia no sexo. Foi
meigo, gentil e estava tão ou mais nervoso que eu.
- Não me admira.
Ela sorriu com o comentário.
- De qualquer forma, fui
percebendo o poder que conseguia ter sobre os homens, mas sempre tive a
perfeita noção de que só duraria enquanto eu mantivesse uma ilusão. A ilusão de
ser inatingível.
- O fruto proibido…
- …É sempre o mais apetecido.
- E nunca tiveste um
relacionamento?
- Digno desse nome, não. Havia
o dono do ginásio onde eu treinava… Ele olhou para ela com o sobrolho levantado.
- Não é nada do que possas
pensar. Tornamo-nos amigos. Afinal eu ia para lá todos os dias. Eu até julgava
que ele era “gay”…
- Mas pelos vistos não era.
- Não. Era “bi”. Eu cada vez
passava lá mais tempo, ao ponto de ele acabar por me dar a chave par eu poder
usar o espaço quando estava fechado ao público em geral e uma coisa levou à
outra…
- Acredito que mesmo que ele
não fosse “bi” se tornou por causa de ti!
- Caramba! Isso é que é um
elogio!
- Mera constatação. – Levantou
o braço, passando a mão na face dela, num gesto de carinho inesperado
- Mas a questão é que eu não
tinha clientes todos os dias e o meu trabalho,… Nem calculas o quanto é
afrodisíaco. Sentia as minhas necessidades e com ele não havia envolvimento
romântico. Se havia vontade e oportunidade, fodiamos e pronto.
- Presumo que só esse jovem com
quem estiveste se tenha tornado inesquecível…
Não. Por acaso não. A situação
foi, mas ele não. Não era ninguém por quem eu nutrisse sentimentos. Era um
miúdo de famílias ricas e eu fui quase como uma prenda. No entanto ele foi
carinhoso e atencioso e a maneira como ele estava nervoso, quase como que em
adoração, fez-me perceber definitivamente o que os homens queriam de mim e o
quanto esse desejo podia ser, do meu lado, uma vantagem. Acho que essa
consciência fez com que a maneira como eu dançava evoluísse definitivamente
para o patamar onde eu tinha verdadeiro prazer em provocar esse desejo. Comecei
a adorar sentir-me desejada. E sempre soube que isso não é eterno, por isso,
cada actuação conta.
Ficaram os dois em silêncio
com a consciência de que fora dito tudo o que havia para ser dito. Com a
consciência de que tinham ouvido do outro as razões para levarem as existências
que levavam e a confidência dos caminhos que os tinham, de uma forma ou de
outra, levado a estar ali naquele carro. Tornaram-se amigos improváveis. E
ainda que apenas pelo tempo que ele fitou os olhos dela de frente com uma
expressão de entendimento absoluto, o tempo que o portão da quinta de Sintra
demorava a abrir, antes de arrancar novamente com o carro para entrar, ambos
tiveram a consciência de que não estavam sós.
Sem comentários:
Enviar um comentário
O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!