terça-feira, 2 de abril de 2024

Conscientização - XXX

 

Ele limitava-se a aguardar. Olhava em frente concentrado na estrada e esperava.

Ela sabia que teria que lhe dar uma resposta, eventualmente. Não gostava de falar de si própria nem dos seus motivos.

- Acho que no fundo não somos assim tão diferentes. Tu tens uma sombra atrás de ti que é o teu dinheiro. Eu tenho o meu corpo…

Ele assentiu.

- Sim, eu sei. Não é difícil de perceber… E percebi isso logo no dia em que te conheci.

- Percebeste?

- Claro. Assumiste que eu tinha entrado no teu camarim pelo mesmo motivo que todos os outros o fazem e só te apercebeste que não no quarto do hotel.

- Baralhaste-me. Não esperava que me dissesses tudo aquilo de uma forma tão… crua!

Ele soltou uma gargalhada.

- Estás habituada a ser bajulada. Eu já passei essa fase…

- Fizeste-me pensar, e muito.

- Acredito.

- Fizeste-me sentir… reles!

- Não era essa a minha intenção, garanto-te. Mas tinha de te explicar que o meu objectivo não era ir contigo para a cama. Além disso ainda estava com os horários trocados e não muito bem-disposto…

Ela ficou mais um pouco em silêncio, sem saber se queria continuar a conversa ou não.

- Mas não te tratei mal, pois não?

- Trataste-me pelo papel que eu estava a ter ali, naquela altura. Mas fiquei com a impressão de que simplesmente desprezavas até a ideia de estar comigo.

- Como te disse já várias vezes, nunca paguei por sexo. Não me choca que seja visto como uma comodidade. Simplesmente, para mim, não o é.

- Pode custar-te a acreditar, mas para mim também não.

- Não?!

- Não. Apesar de me submeter a receber dinheiro por sexo, nunca fui para a cama com alguém que não me dissesse qualquer coisa, nem que fosse apenas a nível físico. Além disso, em algumas vezes também usava isso como uma espécie de vingança…

- Vingança? Explica lá isso.

- Eles desejavam o meu corpo. Nunca me quiseram conhecer ou falar comigo. Eu não sou só o meu corpo. Como tal, eles que o usassem, se isso me permitia manter um certo nível de vida.

- O que, ao fim ao cabo, é o que toda a gente no mundo faz. Toda a gente se vende.

Ela sorriu, embora a tristeza não lhe tivesse abandonado os olhos.

- Sim, acho que é isso. Toda a gente se vende.

César entrou numa área de serviço, perto de Palmela, para abastecer o carro, cortando involuntariamente a conversa.

- Queres alguma coisa da estação? – Perguntou ele antes de sair do carro.

- Só se for uma garrafa de água.

Ele abasteceu, dirigiu-se à caixa para pagar e voltou com a garrafa de água que lhe entregou quando entrou para o carro. Arrancaram.

- Porque é que fizeste isto tudo? – Perguntou ela, num repente.

- Isto o quê?

- Esta noite…

Ele respirou fundo.

- Não fazes ideia?

Ela limitou-se a abanar a cabeça num sinal de negação.

- É complicado explicar-te sem cair nos lugares comuns. No fundo acho que nem eu sei muito bem.

- Tenta.

- Quando te vi, pela primeira vez, na noite em que cheguei a Portugal, fiquei… abismado contigo. A minha primeira impressão foi, como deves calcular, qualquer coisa na linha de “que fêmea magnífica”, se bem que em inglês e não tão edificante. – Olhou para ela para ver a sua reacção e recebeu um sorriso em troca. Continuou – Claro que tinha os meus motivos para ali ter ido, e acho que hoje em dia os percebes bem, e esses eram o que me interessava. E tu eras um meio. Daí a minha abordagem. Ofereci-te aquele dinheiro todo porque tinhas de aceitar sair dali comigo.

- Só para que conste, não foi o dinheiro que me convenceu.

- Não?!

- Bem,… também… mas foi a atitude. Não escamoteaste, não te escondeste atrás de propósitos falsos… Caramba, foste completamente seco e directo ao assunto. Estritamente negócios e com uma confiança que eu estranhei. Fiquei curiosa…

- Então, ainda bem que despertei a tua curiosidade. Percebi-te mais um pouco no hotel. Um pouco do teu caracter e personalidade. E percebi que poderias ser útil como funcionária minha.

- E foi só isso?

Acho que no fundo não. Ainda que não pensasse em acontecer algo entre nós, não me era desagradável a ideia de te ter a passear por minha casa ou poder usufruir da tua companhia. Pensando bem, dei-me ao luxo de ser um pouco auto-indulgente. Depois veio a nossa conversa naquela noite e percebi ali algo…

- Bem, posso dizer-te que a tua exigência contractual me estava a deixar completamente com os nervos em franja. Acho que desde que perdi a virgindade que não estava tanto tempo sem sexo. E nessa noite até me sentia sufocar.

- Pois, notava-se.

- Era assim tão evidente?

- Completamente. Mas, sou-te franco, surpreendeu-me o facto de tu corares.

E ela não disse nada, mas corou novamente. Ele olhou para ela, levantou o sobrolho, sorriu e olhou pra a estrada. Ela esperou um pouco e acabou por lhe interromper os pensamentos.

- Mas ainda não disseste o porquê…

- Claro! – Respondeu ele com um sorriso largo – No meio disto tudo, acabei por me perder… Onde é que eu ia? Ah! Já sei. Dizia que apesar daquela noite atípica, também te disse a verdade quando confidenciei que te achava bastante sensual. Entretanto, depois disso passaste a trabalhar para mim e eu não queria, de maneira nenhuma, impor-te a minha presença fora daquilo que eram as nossas obrigações contractuais. Lá por trabalhares para mim não tinhas necessariamente de me aturar. Além disso há o tal espectro do dinheiro, sempre atrás de mim a segredar-me ao ouvido. Mas, não consegui resistir a fazer-te aquilo lá no ginásio…

- Irritaste-me tanto…

- Acredito. Mas foi aí que pensei que se era para fazer algo contigo, teria de ser algo especial. E lembrei-me disto. Algo que, se alguém me dissesse que o tinha feito eu duvidaria. Portanto, quais seriam as hipóteses de teres passado por algo semelhante?

Ela olhou-o, quase comovida.

- Foi… Especial!

Ele sorriu, com um toque de melancolia nos olhos.

- Sabes… não tenho nenhuma ilusão e sei que tu também não, verdade?

Ela assentiu.

- Carpe Diem.

E ele voltou novamente a sua atenção para a estrada quando chegavam à praça da portagem da ponte sobre o tejo, prestes a iniciar a travessia para Lisboa. Ficaram toda a extensão da ponte em silêncio, ele com atenção ao trânsito, ela a ver o rio e Lisboa, que se aproximava. Estavam já na A5, a subir Monsanto, quando ela interrompeu o silêncio.

- Sabes que, mais especial do que lugares e circunstâncias, são as pessoas.

Ele encarou-a como que a tentar lê-la, com atenção, sorriu e os seus olhos tornaram-se límpidos e brilhantes com uma expressão que ela não esperava ver. Fez apenas um ligeiro assentimento com a cabeça e voltou a pôr a sua atenção na estrada, sem que a expressão de felicidade lhe tivesse abandonado o rosto.

- Fui uma criança feliz.

Os olhos dele não saíram da estrada, mas foi notável a maneira como a sua atenção mudou. Ela, sem ter a certeza do que estava prestes a fazer, continuou.

- Os meus pais pertenciam à classe média alta. Eram filhos únicos que estudaram e dedicaram muito tempo às suas carreiras, pondo em segundo plano a vida familiar. Alias, não sei se alguma vez sentiram alguma coisa um pelo outro, mas aquilo que eu recordo, era a vivência de duas pessoas que se davam razoavelmente bem e que, por acaso, coabitavam debaixo do mesmo tecto. Creio que devem ter chegado a uma altura em que pensaram que deviam ter descendência e apareci eu, já tarde na vida deles. No entanto, tive uma educação sempre nas melhores escolas, tinha actividades extra curriculares.

A minha mão inscreveu-me no Ballet clássico quando eu tinha quatro anos. Aos nove, a minha professora sugeriu aos meus pais que tentassem inscrever-me no conservatório. E lá fui eu, fazendo lá a preparatória e o secundário, até aos dezoito anos. Escusado será dizer-te que me apaixonei pela dança. Entretanto, quando estava para entrar para a universidade, um acidente de automóvel levou-os. E eu fiquei sem ninguém neste mundo. Nem sabia sequer se tinha família, embora soubesse que os meus avós já tinham morrido e que não tinha tios. Só não fiquei na rua porque a casa passou directamente para mim.

- É a mesma casa onde ainda moras?

- Sim, é a mesma. Entretanto, como calculas, vi-me sem dinheiro, e estava habituada a que não me faltasse nada. Fui-me aguentando, algum tempo, com a ajuda de vizinhos e conhecidos, mas esses não podiam continuar a suportar-me para sempre. Até que comecei a passar fome. Foi aí que recebi uma proposta muito pouco digna de um amigo do meu pai. Fiquei enojada, revoltada. Disse-lhe para desaparecer da minha frente. Mas a verdade é que quando já não aguentava mais, acabei por aceder, isto depois de ter andado a mendigar pelas ruas. Eu sei, podia ter tentado fazer outras coisas, mas a minha experiência de vida era muito limitada e, além de dançar, não sabia fazer mais nada. Era só uma fedelha mimada. Fazer aquilo revoltava-me. Mas eu tinha consciência do efeito do meu corpo nos homens. Procurei e acabei por encontrar um tipo que trabalhava com Strippers para concentrações motard. Isso já me permitiu começar a sobreviver sem ninguém. E como bailarina que já era, não foi nada difícil começar a ganhar nome. Depois vieram alguns clubes que me quiseram contratar e depois outros com mais nome… Chegou a uma altura em que trabalhava em vários, ao longo da semana. Até que cheguei aos clubes de luxo. Foi aí que comecei a ver algum dinheiro, em troca de exclusividade. E foi aí que começaram a chover propostas e promessas…

- Deixaste-te ir?

- Sabes, estava habituada a um luxo relativo. A minha primeira experiência no sexo foi com alguém que praticamente me violou e isso fez-me retrair. Por outro lado, sentia-me muito só. Comecei a aceitar algumas propostas, consoante quem as fazia, e acredita que nunca foram as mais altas que tive. Foi com um frequentador de um clube que eu considero ter tido a minha primeira verdadeira experiencia no sexo. Foi meigo, gentil e estava tão ou mais nervoso que eu.

- Não me admira.

Ela sorriu com o comentário.

- De qualquer forma, fui percebendo o poder que conseguia ter sobre os homens, mas sempre tive a perfeita noção de que só duraria enquanto eu mantivesse uma ilusão. A ilusão de ser inatingível.

- O fruto proibido…

- …É sempre o mais apetecido.

- E nunca tiveste um relacionamento?

- Digno desse nome, não. Havia o dono do ginásio onde eu treinava… Ele olhou para ela com o sobrolho levantado.

- Não é nada do que possas pensar. Tornamo-nos amigos. Afinal eu ia para lá todos os dias. Eu até julgava que ele era “gay”…

- Mas pelos vistos não era.

- Não. Era “bi”. Eu cada vez passava lá mais tempo, ao ponto de ele acabar por me dar a chave par eu poder usar o espaço quando estava fechado ao público em geral e uma coisa levou à outra…

- Acredito que mesmo que ele não fosse “bi” se tornou por causa de ti!

- Caramba! Isso é que é um elogio!

- Mera constatação. – Levantou o braço, passando a mão na face dela, num gesto de carinho inesperado

- Mas a questão é que eu não tinha clientes todos os dias e o meu trabalho,… Nem calculas o quanto é afrodisíaco. Sentia as minhas necessidades e com ele não havia envolvimento romântico. Se havia vontade e oportunidade, fodiamos e pronto.

- Presumo que só esse jovem com quem estiveste se tenha tornado inesquecível…

Não. Por acaso não. A situação foi, mas ele não. Não era ninguém por quem eu nutrisse sentimentos. Era um miúdo de famílias ricas e eu fui quase como uma prenda. No entanto ele foi carinhoso e atencioso e a maneira como ele estava nervoso, quase como que em adoração, fez-me perceber definitivamente o que os homens queriam de mim e o quanto esse desejo podia ser, do meu lado, uma vantagem. Acho que essa consciência fez com que a maneira como eu dançava evoluísse definitivamente para o patamar onde eu tinha verdadeiro prazer em provocar esse desejo. Comecei a adorar sentir-me desejada. E sempre soube que isso não é eterno, por isso, cada actuação conta.

Ficaram os dois em silêncio com a consciência de que fora dito tudo o que havia para ser dito. Com a consciência de que tinham ouvido do outro as razões para levarem as existências que levavam e a confidência dos caminhos que os tinham, de uma forma ou de outra, levado a estar ali naquele carro. Tornaram-se amigos improváveis. E ainda que apenas pelo tempo que ele fitou os olhos dela de frente com uma expressão de entendimento absoluto, o tempo que o portão da quinta de Sintra demorava a abrir, antes de arrancar novamente com o carro para entrar, ambos tiveram a consciência de que não estavam sós.


 

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