–Esta música aplicava-se na perfeição à noite de ontem… -
disse ela de uma forma perfeitamente casual mas deliberadamente provocadora.
Ele deu atenção à letra, sendo que até às palavras dela estava completamente
alheio à música e perdido no horizonte enquanto lançava o SLS em alta
velocidade pela auto-estrada numa espécie de meditação.
“(…)Kill the lights, shut 'em
off You're electric
Devil eyes telling me come and
get it I have you like ooh Baby baby
Ooh baby baby Ah-ooh baby baby
Ooh baby baby
Girl tonight you're the prey
I'm the hunter
Take you here, take you there
Take you wonder
Imagine me whispering in your
ear Then I wanna,
Take off your clothes and put
something on ya”
Ele sorri…
“And I ain't trying to fight
it, to fight it But you're so magnetic, magnetic”
– Indeed you are… – confirma
ele olhando-a de lado. Ela sorri e começa levemente a abanar o corpo na dança
possível no espaço em que estavam…
“Got one life, just live it,
just live it Now relax, sing it on your back
If you wanna scream, yeah
Let me know and I'll take you
there Get you going like ah-ooh Baby baby Ooh baby baby”
- Não fizeste só “ohh baby
baby”. Foste um bocado mais longe… – ela sorri e canta de uma forma provocadora
para ele por cima da música:
– Ah-ooh baby baby ooh baby If
you wanna turn right
Hope you're ready to go all
night Get you going like ah-ooh Baby baby Ooh baby baby
Ah-ooh baby baby Ooh baby
I’m a make ya scream…
E ficou parada a olhar para
ele com um ar sedutor de uma ferocidade tal que ele sentiu o magnetismo que o
atraia a ela e, pelo tempo a que a sua razão permitiu que a sua visão ficasse
afastada da estrada sem risco à velocidade em que iam, ficou preso naquele
olhar e mesmo quando o desviou continuava a ter aquele olhar gravado na sua
mente enquanto a música seguia…
“Out, louder, scream louder
Louder, louder, louder
Hey, tonight I scream, I'm on
need”
- Quem é este rapaz?
- Chama-se Usher. Aqui há uns
tempos usei esta música… – e não acabou a frase, como se não quisesse
recordar-se de quem era neste momento. Ele percebeu.
- Gostava de ter visto. Esta
música tem força.
- Chama-se “Scream”. – E fez
uma pausa – Gostavas mesmo de ter visto?
- Claro que sim.
- Porquê?
- Porque aquilo que tu fazes em
cima de um palco faz com que se torne secundário o facto de te despires, sendo
que o importante é a maneira artística com executas os movimentos e a tua
progressiva nudez apenas realça a beleza do número no seu todo. Não o ofusca.
Aquilo que acabas por fazer é um nu artístico em movimento fluído.
Tendo em conta o que ela já ia
conhecendo dele, a resposta não foi surpreendente.
- Mas, quando me vez sentes
desejo?
- Não. – Ela olhou para ele
curiosa. “Não?!” – Tu tornas impossível que eu sinta desejo! – “Como?!” –
Extasias-me com beleza! – E ela passou de repente do intrigado ao precisar de
um momento para registar o que ele tinha dito para ter a certeza de que tinha
percebido bem.
- Extasio-te…?
- Sim. Se me deixas em êxtase não
podes esperar que eu te deseje. Tornas-te intangível e objecto de adoração pela
beleza que transmites.
E ela percebeu que ele via
nela tudo aquilo que sempre quisera transmitir com a sua dança e teve a certeza
que, pelo menos, uma pessoa no mundo a percebia e via como ela queria ser vista
em palco e sentiu-se realizada de uma maneira que não achava possível, como se
uma dúvida que sempre a ensombrara lhe saísse de cima dos ombros.
- Não fazia a menor ideia de
que me vias assim…
- Nunca me perguntaste antes.
- Tens noção de que me fizeste
um enorme elogio, não tens?
- Tenho a noção de que me
limitei a constatar algo que para mim é facto. Pode não o ser para mais
ninguém, mas para mim é. Não o disse com a intenção de ser um elogio.
- Eu sei, e isso torna o que
disseste muito mais… Precioso! Obrigada! – E ela sentiu-se próxima dele de uma
maneira que sabia ser impossível, e num momento afastou qualquer pensamento da
sua mente, mas a curiosidade foi mais forte e antes que o tivesse pensado deu
consigo a perguntar – Porque é que tens tantas muralhas à tua volta?
E a pergunta fez com que, numa
batida de coração, tanta coisa lhe tenha vindo à mente.
- Sabes a história dos três
porquinhos? – Ela acenou em assentimento – Já fui uma casa de palha, mas fui
abaixo ao primeiro embate. Quando me reconstrui, refiz-me em madeira, resisti
mais, mas fui abaixo e quando me reconstrui novamente, refiz-me de tijolo… Cada
vez que caio chego à conclusão de que tenho de ser mais forte e vou construindo
mais camadas para poder aguentar os embates e olha que eu já caí muitas vezes…
- És irritante!
- Posso saber porquê?
- Porque consegues dar
respostas concretas que dizem tudo sem revelar nada.
- E isso é irritante?
- É. Chego ao fim a saber o
mesmo, mas esclarecida. Ele respirou fundo.
- Pois. Acho que às vezes
consigo ser um bocado irritante, nesse sentido. Mas se não fosse não me tinhas
feito esta pergunta e não tinhas obtido esta resposta.
- Estava menos esclarecida mas
a saber o mesmo.
- Pois… – deixou-se ficar um
pouco em silêncio, como que a organizar ideias e a revisitar algumas
recordações. Depois continuou – Sabes, enquanto eu crescia, e apesar de o meu
pai ter dois empregos, a verdade é que tínhamos muito pouco. Mesmo as minhas
roupas eram, muitas vezes, em segunda mão. Como podes calcular não fui um sucesso
entre as miúdas durante o… “high School”?
- Liceu.
- Liceu! Como se não bastasse,
era frequentemente gozado. Os miúdos conseguem mesmo ser cruéis uns com os
outros. Depois fui para a universidade, mas continuei quase em reclusão, uma
vez que não tinha dinheiro para ir a festas e não era propriamente muito
popular. Além disso, tinha o trabalho como porteiro, o que queria dizer que
quando não estava a estudar, estava a trabalhar.
- Cresceste muito solitário…
- Sim. Mesmo muito. Entretanto
comecei com os meus modestos investimentos, arriscando algumas economias que
tinha e, de repente, sem saber como, comecei a ver dinheiro a sério na minha
conta bancária. Se calhar por causa da maneira como cresci não me deixei
deslumbrar e achei que era melhor fazer algo para que o dinheiro que tinha
crescesse ainda mais. Ainda assim, como é óbvio, resolvi dar-me algumas
prendas. Comprei o meu primeiro carro, um Mercedes SL 500 descapotável. Não era
novo, mas era qualquer coisa. Para te ser franco, a par com o Corvette, é o carro
que mais gosto.
- Ainda o tens?
- Sim, esta na minha garagem de
L.A. Estou à espera que acabem de construir a garagem da herdade para mandar
vir os meus carros.
- Os teus carros?
- Sim, tenho uns quantos… Mas
adiante, comprei o Mercedes, comprei algumas roupas novas, de marca, e de
repente era como se eu tivesse passado a ser uma pessoa diferente da que era
antes e comecei a ver-me rodeado de amigos e mulheres. Estranho o que uns
trapos e um pedaço de lata podem fazer… Claro que eu me aproveitei da situação,
sobretudo das mulheres. De repente parecia ter chegado à terra da abundância. E
por algum tempo, muito pouco, perdi completamente a noção das coisas. E depois
apaixonei-me pelo protótipo da mulher americana, a rapariguinha da porta ao
lado com as medidas perfeitas… E durante uma paixão assolapada, descobri que
não devia confiar em ninguém. Afinal ela gostava dos meus fatos e do Mercedes e
eu era apenas um acessório que ela tinha de aturar. Curiosamente, o tipo que se
auto-intitulava de “o meu melhor amigo” era um acessório que ela gostava de
usar sem roupas nem latas agarradas.
- Partiu-te o coração…
- Sim, mas os dois deram-me a
maior das lições.
- Que foi…?
- Que apenas devo confiar no
meu julgamento. Entretanto acabei o meu curso de gestão e os investimentos que
tinha feito estavam a dar dividendos altíssimos. Como os meus investimentos
estavam todos em Silicon Valley resolvi deixar New York para trás e fixei-me em
Los Angeles. Compreendi que a chave para ser bem-sucedido era perceber as
pessoas e resolvi tirar um curso de psicologia.
- Isso explica muita coisa… –
disse ela, como se comentasse para si própria.
- Explica? – Perguntou ele
admirado.
- Claro que explica. Nunca
conheci um psicólogo que não fosse algo “estranho”!
- Isso que dizer que eu sou
algo… “estranho”?! – Perguntou ele com um ar divertido.
- E não és?
Ele soltou uma gargalhada.
- Provavelmente sou um bocado
“freak”!
- Um bocado… Mas, e depois?
- Depois era um tipo solteiro
com muito dinheiro na terra dos sonhos. Mas nunca mais me permiti sofrer
desilusões. Passei a perceber muito bem as pessoas e sempre soube o que elas
queriam de mim. Limitei-me a começar a gerir expectativas e descartei qualquer
hipótese de relações sérias.
- Não consegues confiar nas
pessoas?
- Consigo, claro que consigo.
Confio em ti, por exemplo, senão não te tinha dito isto tudo. Só não confio a
nível sentimental. Tenho uma sombra demasiado grande atrás de mim. O meu
dinheiro.
- E é por isso que és um
solitário…
- Sim. Ao fim ao cabo, é um
motivo como outro qualquer…
- Mas não deixa de ser algo
triste…
- É. Mas e o teu motivo, qual
é?
A pergunta apanhou-a
completamente de surpresa e, de repente, sentiu que se tinha de afundar no
banco e ficar em silêncio…
Sem comentários:
Enviar um comentário
O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!