quarta-feira, 10 de abril de 2024

Conscientização - XXXVII

 

 

Sentou-se no sofá, em frente ao enorme ecrã de plasma, agarrou num comando, carregou num botão e esperou uns segundos enquanto o ecrã se iluminava. Apareceu a imagem de um homem, na casa dos quarenta com um ar cansado e nervoso.

- Fala. – limitou-se a dizer num tom frio e impessoal, embora a sua voz soasse melodiosa como sempre. O homem começou a debitar informação.

- Aquilo que consegui descobrir é que Andreia é, de facto, secretária pessoal de César. Falei com um senhor chamado Victor Antunes – apareceu uma foto do homem no canto do ecrã – que foi contactado há alguns meses para tratar de alguns assuntos para César.

- Que assuntos?

- A compra de um palacete em Sintra, que é uma localidade cerca de vinte milhas a oeste de Lisboa, – a imagem da propriedade substituiu a do homem e deixou-a impressionada com a beleza, quer do ambiente, quer do palacete em si – a compra de uma herdade, que é uma espécie de rancho mas em ponto pequeno, numa região chamada Alentejo, – uma sucessão de imagens da herdade foram aparecendo – a legalização do Corvette Stingray – ele tinha levado o seu carro preferido para lá?! – e, pelo que percebi, a contratação do staff para a casa e de uma secretária pessoal, com base nas exigências que foram previamente enviadas. O senhor Victor confidenciou-me que escolheu quatro candidatas, das quais escolheu a Andreia, sendo a sua escolha confirmada por César no dia em que chegou. Desde esse dia ela tem vindo a assumir cada vez mais responsabilidades em relação aos negócios de César, embora apenas a um nível doméstico, se bem que começa a iniciar agora contactos externos. Ela tem, até agora, cuidado sobretudo da herdade que está a ser toda recuperada.

- Alguma ideia do que planeiam fazer lá?

- Sim. Aparentemente estão a preparar-se para produzir vinho. O Alentejo é uma região vinícola por excelência. Já contrataram engenheiros agrónomos e estão a iniciar a plantação. Além disso, adquiriram uma das maiores distribuidoras de bebidas em Portugal o que lhes vai garantir a colocação quase imediata do produto no mercado interno.

- E que mais tem ele feito?

- Bem, tem frequentado muito um dos mais famosos e elegantes clubes de strip de Lisboa. Além de ter estabelecido lá uma rede de contactos importante, uma vez que o local é frequentado, sobretudo, por pessoas de classe monetária mais elevada, por políticos e empresários, ouve-se que ele tem uma relação com a bailarina mais cobiçada de lá.

A foto de Céu apareceu no ecrã e provocou-lhe um baque no coração. Os seus olhos encheram-se de ódio. Percebia perfeitamente o porquê daquele comportamento, que para ela era absolutamente lógico e linear, mas bastava olhar para a foto para saber que seria preciso ser um santo para resistir àquela mulher, e se havia uma coisa certa no mundo era que César de santo não tinha nada.

- E quais as certezas em relação a isso?

- Não há. A única coisa que consegui perceber é que ela anda com um carro de César, que ele comprou propositadamente e que vive na mansão de Sintra, tal como Andreia, embora tenha voltado para o seu próprio apartamento de há uns dias para cá.

- Desde que ele veio para cá?

- Sim.

Ficou num silêncio pensativo. Se quando viu a imagem o ciúme a consumiu, a verdade é que todas estas atitudes de César tinham coerência à luz do que ela conhecia dele. E se era verdade que ele não era nenhum santo, também o é que, mesmo antes de desaparecer sem mais nem menos, o seu comportamento se tinha alterado notoriamente, ao ponto de ela não conseguir perceber, até hoje, o que se passava com ele.

- Continue a investigar e informe-me sempre que souber de mais alguma coisa, por mais irrelevante que lhe pareça.

O homem assentiu e ela carregou o botão do comando fazendo com que a imagem se extinguisse de imediato e a sala mergulhasse na penumbra.

Deixou-se ficar sentada, imóvel, a tentar perceber o que se passava com César.

 

***

 

Julia nunca passara um dia de necessidade na sua vida. Nascera em famílias com dinheiro e poder. Se era possível dizê-lo, pertencia a uma espécie de realeza americana. Sempre tivera tudo o que queria, fora educada nas melhores escolas e universidades. Talvez por isso, quando acabou o curso, resolveu fazer algo para provar que era muito mais que uma miúda mimada com muito dinheiro. Entrou para uma empresa de consultadoria e subiu a pulso, fazendo tudo o que fosse necessário para conseguir realizar o negócio a seguir.

Foi aí que conheceu César. Um jovem humilde mas inteligente a iniciar a sua ascensão no mundo dos negócios. Ambicioso. Muito. Com ideias muito arrojadas e arriscadas sobre o que queria fazer com aquilo que já tinha conseguido.

César era muito tímido, tinha poucos contactos, pelo menos contactos que lhe dessem acesso a um outro nível. Julia foi trabalhar com ele.

A rede de contactos de Julia e a agressividade negocial que ela lhe foi incutindo, à medida que lhe mostrava o mundo real e aquilo em que ele se estava a meter, transformaram as ideias arriscadas em projectos concretos. E César cresceu, nunca lhe negando o crédito. E ela fez tudo o necessário para garantir que ele continuava a trabalhar com ela.

Dona de um corpo ginasticado e bem torneado, um rosto e uns olhos de anjo e não tendo qualquer escrúpulo em usar os seus dotes para atingir os seus fins, não teve qualquer dificuldade em enlear um César mais ingénuo do que pensava ser.

Numa noite de celebração por um negócio bilionário que correra acima das espectativas e que, de um dia para o outro transformara César num peso pesado das bolsas negociais, por entre muito álcool e drogas, em Las Vegas, casaram-se.

Transformaram-se na dupla perfeita, pelo menos por algum tempo. César perdera por completo a ingenuidade e tornou-se um jogador de peso. Ainda assim, sempre insistiu em não andar nas luzes da ribalta. Apenas uma certa elite, a que ele teve acesso através de Julia, sabia na verdade a extensão do seu poder económico e o quanto ele começava e influenciar as politicas económicas através da especulação. Nada mau para um garoto de um país que mal constava no mapa…

Há três anos atrás, abruptamente, tudo tinha mudado. Como se, de um dia para o outro um interruptor se tivesse acendido. Não que os sinais não estivessem lá antes, mas eram pequenos nadas que Julia atribuía ao cansaço. Um dia ele simplesmente chegou ao pé dela, deu-lhe os papéis do divórcio para as mãos, afastou-se de todos os negócios especulativos e fechou-se numa torre de vidro.

Apesar de ter saído muito bem do divórcio, a nível financeiro, Julia acabou por perder milhões graças à saída abrupta de César de algumas negociações que estavam a decorrer. Mas, pior que isso, a verdade é que Julia se sentiu posta de lado. Não que alguma vez o casamento tivesse tido uma grande profundidade emocional. Mas eram iguais e percebiam-se. E, de repente, Julia ficou sozinha.

O casamento não tinha tido preocupações com coisas fúteis, como a moralidade, por exemplo. Ambos sabiam que o sexo era uma arma que podia ser usada, e usavam-na sempre que necessário… e algumas vezes que não o era também. Mesmo entre os dois, aquilo que sempre houvera não passava de uma satisfação da própria vontade e um desfrutar de prazer. Ambos se tinham tornado mestres nisso. Mas, fora isto, era abençoadamente livre de emoções e gerido por uma lógica negocial que tinha apenas uma regra: não se prejudicarem mutuamente. Era, do ponto de vista de Julia, o casamento ideal. Não havia falsidades, não havia traições e a confiança tinha de ser total, caso contrário afundar-se-iam ambos.

Fora César quem quebrara esta dinâmica, sem alguma vez Julia tivesse percebido porquê.

A princípio ainda pensou que César se tivesse embeiçado por alguma miúda uns anos mais nova, mas mesmo isso não tinha grande lógica. Ele tinha as mulheres que queria com o seu beneplácito, assim como ela tinha, também, quem queria (e não eram só homens, diga-se de passagem). Alem disso, os anos tinham-lhe sido generosos… Com a ajuda de muito exercício e alguma cirurgia plástica, mas parecia, a esta altura, ter menos uns dez anos que na realidade tinha. A única coisa que a denunciava era a postura, que nenhuma mulher dez anos mais nova conseguiria ter.

Na realidade, foi vendo o tempo passar e César ficar teimosamente isolado e sozinho. Cortou contacto com quase toda a gente, passou a viver para a sua colecção de carros, manteve o seu dinheiro a multiplicar-se sem estratégias agressivas e salvou mesmo algumas empresas que estavam à beira da falência, ou de serem absorvidas e desmembradas pela concorrência, voltando a torna-las rentáveis, por vezes investindo bastante e tendo pouco retorno.

Esta atitude baralhava Julia por completo. Mas o pior mesmo foi o facto de ele ter feito algo que nunca ninguém tinha feito: votara-a ao desprezo!


 

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