quinta-feira, 4 de abril de 2024

Conscientização - XXXIII

 Ao fim de mais de hora e meia de caminho, bem depois de terem deixado a auto-estrada e terem seguido por estradas secundárias que recortavam o deserto de uma planura quase absurda, chegaram finalmente a um portão que fez lembrar a Andreia, sem qualquer sombra de dúvida, a típica imagem que se tem através dos filmes da entrada de um rancho, encaixada numa cerca de madeira branca que se prolongava ao longo da estrada por quilómetros. Ao chegarem foram recebidos ao portão por dois homens com máscaras de ski e fortemente armados. César baixou o vidro do carro e entregou-lhes o envelope que Julia tinha deixado em cima do piano. O homem abriu o envelope, tirou um cartão de plástico parecido com um vulgar cartão de crédito e introduziu-o numa máquina, obviamente alguma espécie de leitor, devolvendo-o a seguir e fazendo sinal para avançarem.

César arrancou devagar.

- Andreia, quero que tenha noção de uma coisa: a partir do momento em que entrarmos na casa a nossa relação laboral acabou, não tem qualquer responsabilidade para comigo nem eu para consigo. Somos apenas iguais entre iguais.

Andreia ficou a olhar para César, apreensiva.

- Mas o que é que eu vou encontrar lá dentro?

- Apenas o que procurar. Lá dentro há uma liberdade absoluta. Lembre-se de que nada do que veja, seja o que for, é censurável ou reprovável. Estará num sítio que não é regido por nada mais que a liberdade individual e as suas únicas barreiras são a sua vontade e a vontades dos que a rodeiam. Nada é reprovável, incluindo recusar. Entende?

Ela assentiu.

Óptimo. Quando sairmos, voltaremos a ser as pessoas que somos e a reatar todas as relações. Isto quer dizer que se tiver desejo de tomar alguma atitude não se deve reprimir por pensar que eu poderia acha-la reprovável. Não acharei.

- Entendo.

Chegavam entretanto à entrada de uma enorme mansão que parecia uma amálgama de estilos arquitectónicos, em frente à qual havia um grande jardim pejado de carros topo de gama. No entanto a chegada no Bugatti, tal como César previra, não passava despercebida. Quando pararam o carro, à porta da mansão, César disse-lhe – Ponha a máscara. – E pôs a sua, que fazia lembrar a do mascarilha, saindo em seguida dando a volta ao carro para a ajudar a sair. Ela pôs a sua, dourada e que lhe cobria todo o rosto até à altura do nariz, ornamentada com plumas, e deu a mão a César, que a ajudou a sair do carro, levando-a em seguida pela mão para a porta da mansão enquanto lhe levavam o carro para ser estacionado, seguidos pelo olhar admirado de todos quantos estavam ali, embora Andreia não soubesse se essa admiração se devia ao facto de ninguém calcular quem ela era, se por ir a acompanhar César ou por terem chegado num carro completamente fora de série.

Entraram e Andreia ficou abismada com o hall, que perecia uma qualquer sala num castelo medieval, todo em pedra de granito irregular, decorado por panos de veludo azul orlado por fitas douradas e iluminado por um massivo candelabro de cristal que devia ter pelo menos uma centena de velas com a sua luz bruxuleante, o que dava um aspecto surreal a toda a composição, com as sombras a dançarem nas paredes e no chão, embaladas pelas leves correntes de ar.

Avançaram e passaram a um salão onde uma enorme mesa estava posta sendo os convidados levados a lugares específicos da mesa após mostrarem os mesmos cartões lhes tinham permitido entrar no rancho.

Todos os convidados foram entrando e tomando os seus lugares à mesa, naquilo que parecia um desfile de passadeira encarnada para um qualquer evento luxuoso e cheio de glamour, todos os homens de smoking e camisa branca com um laço, embora um ou outro usasse uma gravata texana, e todas as senhoras com vestidos de alta-costura.

No entanto, apesar de toda a movimentação, não se ouviam vozes, nem sequer murmúrios. As refeições, de cozinha de design mas frugais, de paladar deliciosamente requintado, foram sendo servidas e consumidas neste ambiente estranho em que o silêncio só era quebrado pelo som dos talheres. Não havia qualquer conversa de circunstância, como se aquele silêncio fosse imposto.

Acabada a refeição, a mesa foi levantada com uma eficiência e rapidez como Andreia nunca tinha visto, ficando exposto o tampo de jade. Quatro empregados trouxeram duas escadas com degraus do mesmo tipo de pedra, que colocaram em lados opostos da mesa, exactamente ao centro, em sítios que tinham ficado desocupados e que se ajustavam perfeitamente, sendo que, assim que foram colocadas, todos os empregados desapareceram e aí então, sim, a sala ficou mergulhada num silêncio quase cerimonial.

Algures de um ponto indefinível na sala, começa a brotar o som de “o dueto das flores”, da ópera Lakmé, o que apanhou Andreia completamente desprevenida, quase a assustando, e duas mulheres entram na sala de lados opostos, envergando somente as suas máscaras venezianas e sapatos de salto alto estilo italiano, exibindo gloriosamente os seus magníficos corpos nus em movimentos de perfeita simetria sincronizados com a música, sobem os degraus e ficam frente a frente no centro da mesa, continuando a desenvolver uma dança simétrica, como se estivessem em frente a um espelho a observar o seu reflexo e os movimentos vão ganhando amplitude e sensualidade, quase se tocando mas nunca o fazendo e Andreia deu por si a apreciar esta dança e a lembrar-se de Céu, perguntando-se qual o efeito que ela teria na assistência se aqui estivesse, mas foi arrebatada dos seus pensamentos pela parte final da música quando as duas mulheres se tocam finalmente, unindo-se num abraço e num beijo absolutamente apaixonado, ficando assim unidas qual estátua viva de sensualidade que a arrepiou de uma maneira que ela não tinha ainda experimentado, sendo esta sensação adensada pela entrada subtil da suite nº3 para orquestra, de Bach, enquanto vê as duas mulheres envolverem-se ainda mais, acariciando-se e tocando-se de uma forma que a música apenas torna ainda mais sensual, como sensual e fluído é o movimento com que uma deita a outra em cima da mesa de pedra e se deita depois a seu lado, envolvendo-a, beijando-a, tocando-a nos seus pontos mais íntimos, descendo pelo seu corpo em beijos leves mas que pela reacção do corpo da outra provavam ser letais, sendo que a música acaba precisamente quando a boca se cola ao sexo provocando um gemido de prazer que dá a entrada para “Il dolce suono” da ópera Lúcia de Lammermoor, marcando a música a cadência para a maneira suave como fazem amor, completando um quadro erótico extremamente poderoso fazendo um calor subir à face de Andreia que não consegue descolar os olhos, à medida que a subida da intensidade dramática da música trás também uma escalada no prazer sentido pela mulher que está deitada, sem duvida provocada pelos movimentos da que se ajoelha entre as suas pernas que escala para um orgasmo intenso no fim da área, que culmina no fim de um acorde de passagem e entrada de uma batida techno para “The diva dance” que Andreia reconhece do filme “O quinto Elemento”, sendo o espaço, nesse momento invadido por luzes e flashes que mudam por completo o ambiente e a mulher que está deitada levanta-se, subjugando a que lhe ofereceu prazer e a deita, penetrando-a, primeiro com um dedo, depois com dois, finalmente com três, de forma profunda e propositadamente forte que leva a que a outra solte todos os seus fluídos de uma forma intensa em cima da pedra da mesa em sincronia com o final da música.

As luzes apagam-se, ficando todo o ambiente novamente à luz de velas, ambas as mulheres se levantam e ficam de pé, costas com costas, cada uma virada para um topo da mesa e agradecem com um ligeiro aceno de cabeça. Os convivas levantam-se em silêncio e agradecem-lhes os momentos que elas proporcionaram com ligeiros acenos de aprovação. Elas descem as escadas e afastam-se em direcções opostas, saindo da sala. Assim que elas saem, os convivas começam a dispersar e ela apenas ouve o sussurro de César ao seu ouvido:

- E agora está por sua conta. Vou procurar o Levy. Não se esqueça do que lhe disse.

Andreia assentiu com a cabeça e sentou-se mais um pouco enquanto o via afastar e tentava compreender como se sentia após o que acabara de ver.


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