–Mas tu achas que podes, simplesmente, desaparecer do mundo,
voltar uns meses depois com uma semi-virgem qualquer que encontraste na
Parvónia e que não se passa nada?
- E tu, por acaso, achas que te
devo alguma explicação? Quem é que te deu o direito de te meteres na minha
vida? E na vida dela?
- Fui eu que te fiz,
lembras-te? O que é que tu eras sem mim?
- Exactamente aquilo que sou,
mas mais são um bocadinho, provavelmente. O que é que te passou pela cabeça?
- Ora, limitei-me a dar-lhe um
incentivo. Estava para ali sozinha, sem saber o que fazer... Queria que ela se
soltasse.
- Bem, lá isso conseguiste. Mas
porquê? Isso é que eu não percebo…
- Porque te queria provar que a
tua semi-virgem não é assim tão inocente. Além disso, a culpa é tua. Tu é que a
deixaste sozinha.
- Isso é verdade. Claro que não
estava à espera que andasse por ali uma ave de rapina.
Julia ficou furiosa com o
comentário.
- És assim tão melhor que eu?
Ou será que os ares de Portugal te provocaram amnesia?
- Sei muito bem quem sou. Não
precisas de mo recordar.
Houve um silêncio, uma tensão
entre os dois. Julia conhecia César o suficiente para saber que, apesar da
aparente calma, estava a lidar com um vulcão prestes a explodir. Suavizou a sua
expressão e continuou a falar com uma doçura capaz de fazer derreter granito:
- César, tu sabes que nós
devemos estar juntos. Somos iguais. O que é que vês nessa rapariga?
- Vejo a minha secretária
pessoal e vejo que puseste em risco o negócio com o Levy. Graças a ti tive de
sair às pressas e tu conheces o Levy.
Julia ficou sem pinga de
sangue.
- Ela é a tua secretária? Desde
quando?
- Desde que cheguei a Portugal.
- Porque é que não me disseste?
- Porque não te devo qualquer
satisfação, como já disse antes, e chamei-te aqui apenas para te dizer que se
voltares a tomar alguma atitude em relação a seja quem for que esteja perto de
mim, acredita, vai haver consequências.
O tom de voz baixo e calmo de
César era ao mesmo tempo frio como o aço.
- Isso é uma ameaça?
- Não Julia. É uma certeza
absoluta. Agora desaparece daqui. Só olhar para ti dá-me nojo.
A fachada implacável e
impecável de Julia ameaçou estalar ali. No entanto dominou-se deixando apenas
uma sombra passar-lhe pelos olhos. Depois, ergueu o queixo, deu meia volta e
saiu.
César respirou fundo. Sabia o
quão perigosa aquela mulher podia ser. Como é que era o ditado? “Não há fúria
do Inferno maior que a de uma mulher desprezada”. Ele teria de ter extremo
cuidado. Sabia que a história não ficaria por aqui. Mas por hoje ficara e pelo
menos Andreia já não devia ter nada a recear dela. Isso deixava-o um pouco mais
descansado. Sentou-se no sofá, serviu-se de uma dose do seu Yamazaki de vinte
cinco anos, encostou-se para trás, relaxou, deu um trago e fechou os olhos.
Julia tinha o dom de o irritar a um ponto em que ele nem se sentia bem consigo
próprio.
***
Andreia abriu a porta,
finalmente, e entrou na sala. César deu por ela e prontamente abriu os olhos,
viu-a, ainda com o cabelo molhado do banho e sorriu.
- Boa noite. Seja bem-vinda de
volta.
Só então Andreia notou,
olhando pelas enormes vidraças, que era noite cerrada, embora desconfiasse que
mesmo que todas as luzes estivessem apagadas a sala continuaria iluminada pelas
luzes da cidade. O toque de formalidade na saudação de César indiciava que, se
calhar, tudo não passara mesmo de uma ilusão.
- Boa noite! – Disse com
esforço sentindo as cordas vocais a despertar – Dormi muito tempo?
- Digamos que ainda acordou a
tempo, mas já não é o mesmo dia em que se deitou. Mais ou menos trinta e seis
horas, mais coisa, menos coisa.
Andreia nem queria acreditar e
colou os olhos ao chão, com vergonha.
- Não fique assim. Afinal a
culpa não foi sua. Aliás, até foi, mas por pura ingenuidade, e não levo isso a
mal. Tem comida e um suplemento vitamínico na mesa da cozinha. Há comida leve
no frigorífico. Coma qualquer coisa e tome o suplemento.
Ela dirigiu-se cabisbaixa à
cozinha, abriu o frigorifico tirou qualquer coisa ao acaso para comer e uma
garrafa de água fresca e sentou-se na mesa sentindo o estomago dar voltas
somente por olhar para a comida. César entrou na cozinha, sentou-se à sua
frente. Ela encolheu-se, esperando ser repreendida. Nem se atrevia a encará-lo.
- Acordámo-la com a conversa?
- Não. Já estava acordada e fui
tomar um duche. Só me apercebi que estava aqui alguém quando ia para sair do
quarto e ouvi vozes, mas já só me apercebi que alguém estava de saída.
- Mas ainda ouviu alguma coisa?
- Sim, mas pouco.
- Também não houve muito que
ouvir. Ela só esteve cá uns dez minutos. De qualquer forma, tem a noção do que
se passou consigo?
- Sim. Extasy, não foi? César
assentiu.
- Que lhe sirva de lição.
Nunca, seja onde for, aceite uma bebida de alguém que não seja de absoluta
confiança, nem nunca deixe o seu copo abandonado.
Andreia corou de vergonha.
- Não me vou esquecer.
- Óptimo.
Deu uma dentada na comida e
mastigou lentamente, sem vontade de engolir. Como se não bastasse, sentia-se
intimidada com a presença dele. Trazia-lhe de volta todas aquelas… Recordações?
Alucinações? Fossem o que fossem, faziam-lhe o coração acelerar. Acabou por
engolir e o seu estomago acordou de repente e agradeceu.
- E afinal, como é que correram
as coisas com o… Levy? – Perguntou, tentando forçar o seu cérebro a focar a
atenção em algo diferente.
- Correu bem, apesar dos
pesares. Teremos uma reunião amanhã para acertar os pormenores, mas temos um
acordo de princípio. Trate de se pôr em condições que temos de rever as pastas
e tenho de a pôr ao corrente de tudo.
Agora que o estomago tinha
acordado, o apetite aparecia voraz, e ela até se esquecia das suas maneiras e
comia como… Bem, como se não comesse há dois dias, o que aparentemente era o
caso, sob a expressão séria de César, mas onde estava aquele olhar que quase
parecia divertido.
Quando acabou de comer pegou
na garrafa de água para beber, mas César interrompeu-a, agarrou o frasco de
comprimidos, tirou um e deu-lho.
- Já agora, aproveite…
Ela engoliu-o e bebeu a
garrafa de litro de água de seguida. Finalmente a sede começava a ficar
saciada.
Com isto, o corpo parecia
começar a recuperar alguma energia, a cabeça mais clara, e foi percebendo que
mais tarde ou mais cedo seria inevitável dar atenção ao elefante que estava
sentado na mesa entre eles. Mas não sabia como começar.
- César, ontem,… quer dizer,
anteontem…
César olhou-a nos olhos,
sorriu, o que lhe deixou as palavras entaladas na garganta.
- Lembra-se do que eu lhe disse
quando íamos para lá? Que nada era censurável ou reprovável?
- Sim…
- Nada o é e nada o foi. Além
do mais, não só fui eu que o coloquei naquela situação, como foi, contra a sua
vontade, drogada. Não tem de ter qualquer problema.
Andreia assentiu, mas
continuava sem se sentir bem em relação ao que se tinha passado na mansão.
- César, posso falar
francamente em relação ao que se passou lá?
- Sim, claro!
Andreia parou, tentando
organizar as ideias e as palavras.
- Vi lá algumas coisas que me
deixaram sem saber como reagir…
- Apenas tinha de reagir
respeitando a liberdade dos outros, tal como eles respeitariam a sua liberdade.
Acredite que, se não fosse o incidente de Julia ninguém a importunaria, visto
que essa parecia ser a sua vontade.
- Sim, percebo isso. Mas ainda
não entendi o que era que se passava ali…
- Uma festa, uma celebração,
mas sobretudo uma fuga à realidade. Onde cada um, independentemente daquilo que
é no seu dia-a-dia tem a hipótese de se despir de todas as responsabilidades e
papeis e usufruir de uma verdadeira liberdade. No dia a seguir todos voltam às
suas vidas sabendo que aquela noite simplesmente não contou.
- E como é que se consegue?
- Facilmente, até. Basta ter
essa mesma noção.
- Mas acaba sempre por culminar
numa orgia?
Andreia, se há uma coisa que é
básica e primária é o desejo. Imagine a liberdade de realizar as suas fantasias
por uma noite… – e olhou-a de uma maneira que pareceu entrar além dos seus
olhos e ler-lhe a alma – Consegue imaginar, não consegue?
Andreia estremeceu, sem saber
se por culpa ou porque um lado escondido de si respondeu afirmativamente com
deleite.
- Acho que acabou por ser isso
o que aconteceu… – acabou por responder, desafiadora, procurando uma sombra de
reconhecimento nele. Não a encontrou.
- Estava drogada!
- Creio que, ainda que não
estivesse, depois de ter visto o que vi e com o clima que estava na sala, era o
que me apetecia ter coragem para fazer.
César sorriu.
- Não me surpreende.
- Não?
- Não. Qualquer homem com dois
dedos de testa tem noção de que em cada mulher há uma santa, uma lady e uma…
- …Puta?
- …Devassa! Há uma enorme
diferença nos termos. O que define cada mulher é onde o equilíbrio se
estabelece entre estes três ingredientes, mas eles estão sempre lá.
Andreia pensou nas suas
anteriores relações.
- Há muitos homens com dois
dedos de testa?
- Não muitos… – respondeu
César, quase com uma gargalhada.
- Mas porque é que as pessoas
fazem isto?
- Andreia, as pessoas não fazem
isto. Umas quantas pessoas fazem isto!
- Mas porquê?
- Porque podem.
Andreia fixou o olhar em César.
- É dos que podem?
- Sou. E agora a Andreia
também. Tem de perceber de uma vez por todas que está a nadar num aquário
limitado. Aqueles com que já lida em Portugal e que lá são tubarões, aqui são
um mero aperitivo. E a Andreia vai nadar com eles. Tem de perceber aquilo que
por vezes é preciso fazer para fechar um negócio. Daquilo que vão ser capazes
de lhe propor em algumas ocasiões no futuro. Portanto, está na hora de crescer.
Acredite, tudo o que se passou é “peanuts” por comparação. Além disso,… – fez o
sorriso mais sacana de que Andreia se lembrava de ver a alguém – …até gostei de
a ver dançar…
E Andreia corou, provocando
uma gargalhada em César. O elefante tinha saído da sala.
- Posso saber só mais uma
coisa?
- Claro.
- Porquê todo aquele
cerimonial? Algum motivo em especial? Algum culto?
- Não, nada de tão sinistro.
Apenas porque cria um ambiente diferente e intensifica tudo o que se passa no
resto da noite. Cria um outro sabor…
Andreia olhava para ele
tentando entender, em concreto, o que ele lhe tentava explicar.
- Andreia, qualquer cerimónia
tem por fim realçar algo. Pense, por exemplo na entrega dos Óscares. Se pensar
bem, a academia podia, simplesmente, libertar um comunicado a dizer quem eram
os vencedores. O objectivo era atingido. Mas o facto de haver toda aquela
encenação e “glamour” faz com que se acendam espectativas. Ali é a mesma coisa.
A cerimónia cria um ambiente que deixa a atmosfera completamente eléctrica.
Depois daquilo, todos sabem que algo se irá passar e preparam-se para isso. Não
sentiu isso?
- Sim. Não tinha noção do quê,
mas sabia que algo se iria passar.
- E gostou da cerimónia?
- Sim, gostei!
- E que tal um café para acabar
de acordar essa cabeça? Temos muito que trabalhar até amanhã.
- Obrigada, aceito. – Respondeu
com um sorriso, finalmente, no rosto. A culpa abandonara-a e estava preparada
para mais um dia.
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