Não há aqui absolutamente nada que valha a pena. Nem sequer o autor. O Autor desresponsabiliza-se por quaisquer danos psíquicos que a leitura disto possa causar.
quinta-feira, 25 de abril de 2024
quinta-feira, 18 de abril de 2024
Conscientização - Epílogo
–Mãe, mãe, mãe, posso ir com o pai para a garagem, posso?
“Tal pai, tal filho!” pensou a
Céu.
- Já fizeste os trabalhos de
casa?
- Sim.
- Todos, todos? – Perguntou ela
com um ar sério de quem sabia mais do que lhe era dito.
- Bem, quase todos. Só falta a
matemática, mas o pai vai para lá agora…
César entrou na cozinha,
passou a mão pelo cabelo do miúdo deu um beijo a Céu.
- Prometo que o trago a horas
de fazer os trabalhos que faltam, antes do jantar.
- Promessas, promessas…
Entreténs-te para lá a desmanchar motores e esqueces que o resto do mundo
existe…
- Mãe, se o pai se esquecer eu
lembro-o… boa?
- Ok, pronto, venceram. Vão lá.
- Bora campeão, antes que a tua
mãe se arrependa… – e saíram porta fora, entrando no carro e arrancando pela
colina abaixo.
Céu ficou a vê-los ir da
porta, de onde podia ver a herdade, outrora abandonada e agora plena de vida,
com o verde das vinhas a perder de vista e com uma azáfama constante.
Em breve seria a altura das
vindimas…
...era feliz!
Conscientização - XLVII
Voltara de imediato para o hospital, de onde não saiu mais.
Andreia
ia e vinha, sempre agarrada ao telemóvel.
No
final desse dia transferiram César para um quarto
privado, uma vez que a situação dele estabilizara. Céu foi autorizada a
ficar no quarto e não saiu mais de lá. Andreia, nas suas andanças, lá ia
trazendo alguma comida em que ela apenas tocava com algum esforço.
No dia seguinte as manchetes
dos jornais falavam da multimilionária que se tinha suicidado num hotel de luxo
em Lisboa depois de ter perdido toda a sua fortuna. Andreia entrou com o jornal
no quarto. Entregou-o a Céu, com um olhar inquiridor. Céu respondeu também
somente com o olhar, ambas decidiram tacitamente que não era boa ideia falar no
assunto e, para todos os efeitos, nada se tinha passado senão o que vinha na
notícia.
Ao fim de três dias César foi
desentubado e cortaram a medicação que o mantinha em coma. Restava esperar.
Algumas horas depois Céu, que dormitava sentada, debruçada para cima da cama de
César, sentiu um leve aperto na sua mão, despertando de imediato. Levantou a
face e viu os olhos vivos de César a olhar para ela.
- Olá – disse ele a custo.
- Olá – disse ela com a voz
embargada pelas lagrimas de felicidade que começavam a escorrer-lhe pela face.
- O que é que aconteceu? –
Perguntou ele, ofegante pelo esforço de falar.
- Não tentes falar. Descansa. –
Disse ela enquanto se levantava e lhe dava um leve beijo nos lábios – Estiveste
quase a partir, mas ainda não foi desta.
- Só os bons é que morrem
novos, portanto… – respondeu ele, com uma sombra de sorriso no rosto.
Ela sorriu. Depois começou a
contar-lhe tudo o que se passara. Ele ficou com um olhar estranho quando viu a
manchete no jornal e mais ainda enquanto Céu lhe lia a notícia. Ainda assim,
não fez qualquer comentário.
***
O jovem estava ali, nervoso,
algemado à mesa. Tinham-no trazido para ali, fora das horas normais de visitas,
algemaram-no e saíram, deixando-o sozinho na enorme sala. Sentia-se assustado.
Um homem entrou por uma porta
ao fundo, caminhando na sua direcção lentamente e com alguma dificuldade.
Chegado à sua frente, puxou a cadeira, sentou-se e olhou-o directamente nos
olhos. Ele encolheu-se.
- Sabes quem eu sou? –
perguntou o homem.
Ele limitou-se a assentir. Não
encontrava palavras para dizer no meio de tudo o que estava a sentir, a culpa,
o remorso…
- Sabes qual é a tua sorte?
Acenou negativamente com a
cabeça.
- A tua sorte é que eu conhecia
bem demais a Julia. Sei perfeitamente do que ela era capaz e tenho a certeza de
que te fez a cabeça.
Enfiou os olhos no chão e
tentava esconder as lágrimas que lhe escorriam pelo rosto.
- Também sei que um gajo, na
tua idade, só pensa com uma cabeça, e normalmente não com a que devia pensar…
Continuou em silêncio. Aquele
homem que estava à sua frente era quem ele tinha tentado matar a sangue frio.
Esperava tudo o que pudesse vir.
- Olha para mim. – ordenou-lhe
o homem. Ele levantou a cabeça
- Achas que aprendeste alguma
coisa com isto?
Continuou em silêncio.
Apetecia-lhe prostrar-se aos pés daquele homem e pedir-lhe perdão pelo que
tinha feito. Mas não conseguia falar. Limitou-se a olhar para ele e a assentir.
César sorriu. O sorriso de
César foi o catalisador final e o jovem rompeu num pranto.
- Desculpe – dizia – Eu não
sei….
César assentiu. Levantou-se e
virou-lhe as costas, caminhando para a saída. Lá chegado virou-se para trás e
disse-lhe:
- Rapaz, ainda vais passar aqui
algum tempo. Não por minha vontade, garanto-te. Por mim tirava-te daqui hoje,
mas sabes como é… Processos de tribunal, polícia e coisas afins. No entanto, a
partir de hoje vais ter um advogado novo e acredito que ele arranje maneira de
te tirar daqui em pouco tempo.
O rapaz ficou atónito a olhar
para ele.
- Mas digo-te já: O pouco tempo
vai ser mais ou menos o mesmo que demorares a tirar um curso superior. Tens a
escolaridade mínima?
Ele assentiu.
- Menos mal. Significa que
ficarás aqui menos tempo. Vou tentar arranjar-te privilégios especiais para
poderes assistir às aulas normalmente.
Não sabia o que mais dizer por
isso limitou-se a um verdadeiro e sincero – Obrigado!
- Nos próximos dias virá alguém
ter contigo. Se queres um conselho meu: aplica-te. Se não fores tu a fazer por
ti, ninguém vai fazer.
César voltou-se, abriu a porta
e ia já a sair quando se voltou e disse:
- Entretanto, até o curso
acabar, vê se aprendes a pensar só com a cabeça de cima… É o mínimo que eu peço
aos meus empregados. No dia em que saíres daqui quero ver-te à minha frente.
Não esperou por uma resposta e
saiu fechando a porta atrás de si. Os guardas entraram, desalgemaram-no e
levaram-no de volta para a cela. Só ali ele foi pensando em tudo o que se tinha
passado. Dentro de si uma pequena luz pareceu acender-se cheia de esperança e
sentiu-se imensamente grato à vida por lhe estar a conceder o que ele não
merecia.
quarta-feira, 17 de abril de 2024
Conscientização - XLVI
Julia estava nervosa.
Tentava concentrar-se nas
flutuações da bolsa, mas não conseguia.
Esperava por um telefonema,
“O” telefonema, que iria mudar toda a sua vida.
Tinha pena de as coisas terem
de ser assim. Teria sido escusado, se César não fosse tão teimosamente
casmurro. Será que ele não percebia que estaria melhor com ela? Os dois teriam
implementado aquele plano genial e podiam ter-se tornado maiores que os
maiores.
De qualquer forma, agora era
tarde. Ele achava que ela se contentaria com um papel marginal, quieta e calada
num canto enquanto o veria subir aos píncaros. Jamais! Ela é que o tinha feito,
ela é que o tinha trazido para um mundo onde ele dificilmente teria acesso. Era
dela, por direito, tudo aquilo que ele estava a construir.
O dia já tinha amanhecido,
depois de uma noite em claro e o telefonema teimava em não chegar. Ele apenas
ligaria quando tivesse concluído a tarefa e, dentro em pouco o telefonema
chegaria. Era só uma questão de paciência. Uma vez que ele não ia entrar na
mansão de Sintra, tinha de esperar que ela saísse.
Sorriu de si para si. Pobre
moço… Seria apenas mais uma vítima casual, uma ponta solta para resolver no fim
daquilo tudo. Mas também, depois de ter estado com ela, dificilmente teria
alguém que lhe desse aquilo que ela lhe deu. Fê-lo subir às alturas, deu-lhe a
provar prazeres proibidos… Era melhor assim! Como é que dizia o Jim Morrison?
“It’s better to burn than to fade away!”. Ele tinha queimado intensamente.
Extinguir-se-ia com a mesma facilidade.
A espera era necessária, mas
deixava-a ansiosa. Já passava das dez da manhã e o telefonema não vinha.
Decidiu que precisava de relaxar. Foi até à casa de banho, pôs a água a correr
para a banheira e espalhou uns sais e umas pétalas de rosa, voltou para o
quarto, fez algum tempo para a banheira encher enquanto se despia, agarrou no
telemóvel, voltou a entrar na casa de banho, verificou a temperatura da água,
arrastou um banco de apoio para o pé da banheira, onde pousou o telemóvel de
forma a poder agarrá-lo rapidamente, entrou para dentro da banheira, deixou o
corpo submergir na água, ficando deitada com a cabeça apoiada no rebordo,
fechou os olhos, sentiu a sensação de leveza provocada pela água, sentiu-se a
relaxar e deixou-se ficar, com o cansaço da noite não dormida a pesar e a
deixá-la num estado dormente.
Sentiu uma sombra a passar-lhe
diante dos olhos e abriu-os ao mesmo tempo que sentia uma mão a tapar-lhe a
boca e um objecto frio e metálico a encostar-se à sua testa. À sua frente
estava Céu. Os olhos dela estavam em chamas, pareciam arder, a sua face,
obviamente transformada pela dor estava diferente. Teve medo.
- Sabes que estes quartos são
insonorizados, não sabes? Seria muito desagradável pagar o que se paga aqui e
ter o vizinho do lado a ouvir aquilo que se faz em privado. Isto só para te dizer
que não te adianta de nada fazer barulho, porque ninguém vai ouvir. Portanto
vou tirar a mão da tua boca.
Ela assentiu, a mão foi
retirada mas o silenciador da pequena pistola que ela empunhava continuava
firme contra a sua testa.
- Como é que entraste aqui?
- Sabes, já estive aqui muitas
vezes, inclusive neste mesmo quarto. Aprendi a entrar com descrição. Além
disso, estas portas não são assim tão difíceis de abrir, sobretudo quando se
conhece as pessoas certas…
- O que é que queres?
- Erradicar um problema da
minha vida. E esse problema, neste momento, és tu.
- E o que é que eu tenho a ver
contigo?
Céu levantou a mão esquerda,
mostrando-lhe o anel.
- Sabes, tenho este anel só há
umas horas, mas acho que não me desfarei dele por nada deste mundo, pelo menos
até ser substituído. Infelizmente, dez minutos depois de me ter sido oferecido,
a pessoa que mo ofereceu levou um tiro no peito, no meio da rua. Como calculas,
é caso para chatear uma pessoa.
- E o que é que eu tenho a ver
com isso? – Perguntou ela, já bastante nervosa e a tentar ver as saídas
possíveis. Olhava para o telemóvel que estava tão perto, à distância da sua
mão, e ao mesmo tempo lhe parecia tão longe.
- Tudo! Sabes o problema dos
rapazes? É que mulheres como nós conseguem fazer deles o que quisermos. Conseguimos
controlá-los, manipulá-los, sabemos perfeitamente quais os botões que devemos
apertar e quando… E um contentor de hormonas masculinas completamente
apaixonado faz tudo o que for preciso para manter a paixão. O problema é que
também quebram com facilidade!
O miúdo tinha sido apanhado!
E, aparentemente, tinha falado!
- Acho que já percebeste o que
aconteceu, não?
Ela assentiu, a sua cabeça a
dar voltas em busca de uma fuga, algo que pudesse usar em seu favor.
- Queres saber o que é que me
intriga mais? Tu já tens tanto. Se tivesses ficado quieta verias a tua fortuna
aumentar ainda mais… Porquê?
Ela olhou para Céu e viu que a
pergunta era tão genuína quanto a sua resolução.
- Porque ele é meu! Porque me
desprezou e ninguém me despreza. Porque fui eu que o fiz, por isso também posso
destruí-lo. Porque o que ele está a fazer é meu por direito. E eu quero tudo.
Tudo!
Céu olhou para ela, olhar
fixo, sério, como se quisesse percebê-la.
- Diz-me uma coisa: alguma vez
o amaste?
Não fora pela arma encostada à
sua testa e teria largado uma gargalhada. Limitou-se a dizer:
- O amor é para os fracos de
espirito!
Céu assentiu. Baixou-se, sem
tirar os olhos dela, apanhou algo de dentro de um saco pousado no chão, um
pequeno “tablet” e passou-lho para as mãos.
- O miúdo baleou o César, mas
foi apanhado quando tentava chegar à Andreia. Vê.
Ela desbloqueou o “tablet”,
começou a ler o que estava no ecrã. Páginas após página, todas diziam a mesma
coisa. Tudo o que ela tinha estava literalmente a esfumar-se diante dos seus
olhos.
- O dinheiro é uma treta, não
é? Tão depressa se tem tudo, como de repente não se tem nada… Sobretudo nestes
mercados especulativos… Ela olhava, com o pânico espelhado no rosto, enquanto
se via, de repente, a braços com dívidas de milhões.
- Mas, como se diz por cá por
Portugal, quem tudo quer… tudo perde!
Ficou em silêncio. Se os
olhares matassem, Céu teria caído ali, morta.
- Deixa-me explicar-te bem as
coisas: neste momento não tens absolutamente nada e estás a dever milhões às
pessoas mais poderosas do planeta. Todo o poder que poderias ter esfumou-se.
Ninguém te virá ajudar. Os teus pretensos amigos são predadores, como tu, e
neste momento o cheiro a sangue que lhes chega às narinas é o teu. Em suma, nem
sequer tens dinheiro para contratar um advogado decente. Em cima disto tens uma
acusação por tentativa de homicídio. Daqui a pouco vais ter a polícia
Portuguesa a bater à porta do quarto. Vão levar-te algemada e vão enfiar-te
numa cela de uma prisão. Mais tarde ou mais cedo alguém vai chegar até ti. Este
é o panorama que te resta.
Os olhos dela destilavam ódio
em direcção a Céu. Mas aquilo que ela dizia era verdade. A vida dela tinha
acabado.
- Ainda assim, – continuou Céu
– apesar de tudo sinto-me generosa para contigo.
Baixou-se novamente para o
saco, tirou uma garrafa de champagne Pernod-Ricard Perrier-Jouët que lhe passou
para as mãos.
- Abre – disse secamente. Ela
obedeceu, fazendo a rolha saltar com aquele som tão característico. Algum do
precioso líquido perdeu-se dissolvido na água da banheira. Depois Céu passou-lhe
uma flute. Ela derramou o líquido da garrafa para a flute. Entretanto Céu
baixou-se novamente, passando-lhe um pequeno frasco de comprimidos para a mão.
- E agora, a tua escolha.
Ela sabia que estava
encurralada. Sabia que a sua vida estava por um fio e que ninguém daria nada
por ela. Os seus conhecimentos tinham acabado junto com o seu dinheiro. As
dívidas fariam muitos virem atrás de si. Alguém a apanharia. Mas antes disso
viria toda a humiliação…
Olhou para Céu, com o coração
a destilar ódio.
- Ele morreu? – Atreveu-se
ainda a perguntar.
- Não. – Respondeu Céu sem dar
mais pormenores. Respirou fundo.
Agarrou no frasco, abriu-o,
levou-o à boca despejando o conteúdo e, engolindo, mandou o frasco fora, pegou
na flute, empurrou os comprimidos com o champagne, mandou a flute contra a
parede, estilhaçando-a em mil pedaços pelo chão, agarrou na garrafa, levou-a à
boca e despejou-a em dois ou três fôlegos.
Encostou-se novamente na
banheira sentindo-se tonta, não sabia se só do álcool ou também já do efeito
dos comprimidos. Já Céu continuava sentada, observando-a, sempre de arma
apontada. Ao fim de uns minutos o champagne, os comprimidos e a noite sem
dormir começaram a fazer efeito, os olhos começaram a pesar-lhe, sentia-os a
fechar-se contra a sua vontade e sentia-se a deslizar para dentro da banheira,
sendo a falta de respiração, quando submergia a despertá-la parcialmente.
Viu Céu a levantar-se, chegar
bem perto de si e dizer-lhe ao ouvido:
- Podias ser a maior cabra do
pedaço, mas a única puta aqui sou eu! – e sentiu a sua consciência a apagar-se
e viu num instante a sua vida à sua frente em flashes rápidos, embora lhe
parecesse que tinha todo o tempo do mundo para ver cada uma das suas
recordações, reviu toda a sua vida, sentiu-se cair num vazio e, de repente,
estava a ver-se, como num espelho, mas este espelho não reflectia apenas a sua
imagem, reflectia a sua alma, e percebeu naquele momento tudo, sentiu horror e
repulsa de si própria, sentiu que tinha desperdiçado tudo o que lhe fora dado
e…
Conscientização XLV
Andreia encontrou Céu
numa
cadeira
da
sala
de
espera
do
hospital,
como
nunca
a
tinha
visto,
os
olhos
inchados
das
lágrimas
e
um
ar
do
mais
absoluto
desespero.
Assim
que a viu, levantou-se
e abraçou-se a ela a chorar.
Andreia abraçou-a por um
pouco, até ela se recompor o suficiente e finalmente perguntou:
- Como é que ele está?
- Está em estado crítico.
Levaram-no de urgência para o bloco e está a ser operado. Não consegui saber
mais nada… não sou familiar…
Andreia assentiu.
- Anda, vamos ver se
conseguimos saber mais alguma coisa. Como é que isto aconteceu?
- Íamos a sair do clube, estava
um carro estacionado atrás do dele, ele foi pedir para o afastarem e quando dei
por isso ouvi tiros e ele estava no chão.
- Tiros?
Sim dispararam três tiros. Um
não lhe acertou, o outro apanhou-o de raspão num braço, mas o outro foi no
peito. Acho que só não foi pior porque os seguranças ouviram e vieram logo, e o
carro arrancou disparado.
Chegaram à recepção e Andreia
pediu informações, que não foram dadas pela funcionária, visto que não tinha
autorização. Andreia pegou no telemóvel, e fez uma chamada. Daí a pouco a
funcionária recebia outra no telefone de serviço, olhou para ambas com um ar
furioso, mas não fez comentários e levou-as por um corredor. Aí chegadas
ficaram à espera à porta do bloco. Não tiveram de esperar muito. Saiu um médico
que as informou do estado actual de César, dizendo-lhes o quanto era grave. A
operação estava a correr bem, mas ele tinha perdido muito sangue e era
impossível fazer qualquer tipo de previsão. De qualquer forma, pediu-lhes para
aguardarem na sala que quando acabasse a operação iria ter com elas.
Céu estava espantada com o
pragmatismo de Andreia, que rapidamente começou a fazer telefonemas, uns atras
dos outros, quer para evitar que alguma notícia acerca do assunto passasse para
algum lado, como para recolher os carros de César e de Céu e levá-los para
Sintra. Por fim voltou-se para ela.
- Já comeste alguma coisa?
- Não me apetece.
Tens de comer qualquer coisa.
Podes não ter apetite, mas não vai ser o facto de não comeres que vai alterar
alguma coisa. Além disso é-se muito mais optimista com o estomago recheado.
- A sério, não me apetece.
- Então faz-me companhia.
Foram à recepção e deixaram o
número de telefone de Andreia pedindo para a avisarem de imediato caso o médico
viesse para ter com elas e depois foram até ao bar do hospital.
Céu sentou-se e Andreia foi
buscar comida. Trouxe dois copos de sumo de laranja e dois croissants mistos.
- Oh! Andreia, eu disse-te que
não queria nada…
- Bem agora já queres. Come.
Céu começou a comer a
contragosto, e só aí Andreia se apercebeu do anel de noivado.
- Ele já to deu?
Céu olhou para o anel e teve
de lutar para conter novamente as lagrimas.
- Sim. Uns dez minutos antes…
disto!
Andreia deixou-se ficar em
silêncio, percebendo tudo o que devia estar a passar pela cabeça dela. Também
passava pela sua, mas, neste momento, havia coisas mais prementes a serem
tratadas.
- Céu, desculpa perguntar-te
isto, mas viste quem é que estava dentro do carro?
- Não, foi tudo tão rápido…
- E que carro era?
- Era um carro velho… Sei lá…
Andreia assentiu.
- Sabes, acho que isto não
aconteceu por acaso.
- O que é que queres dizer com
isso?
- O César falou-te da conversa
que teve com Julia?
- Por alto… Disse-me que achava
que a questão estava resolvida e que ela ia ficar quieta.
- Pois… Sabes, o César tem
vindo a implementar um plano…
- Sim, ele falou-me nisso.
- Ele expôs o plano à Julia.
Mostrou-lhe que estava numa posição de força e que a podia fazer perder tudo
num piscar de olhos. Não acredito que ela tenha ficado contente. Portanto acho
que das duas uma: ou ela revelou o plano a alguém e nesse caso,
independentemente do que se passar na sala de operações ele vai estar morto e
eu também, ou então ela achou que tirando o César do caminho poderia
apoderar-se do plano e levá-lo ela a cabo. Nesse caso é uma sorte ainda não
terem tentado nada contra mim também. Ela calculará que eu sei, portanto também
teria de desaparecer. Inclino-me mais para a segunda hipótese…
- Porquê?
- Porque ela iria
subestimar-me, de certeza. Na primeira hipótese as coisas seriam mais bem
orquestradas e já nem eu nem o César cá estaríamos, de certeza.
- Mas… Nesse caso, quando ela
souber que ele não morreu vai voltar a tentar!
- Mas para já vai tentar
apanhar-me. E, uma vez que ainda não conseguiu, vamos fazer os possíveis para
que apanhe… Deixa-me fazer uns telefonemas…
Fez meia dúzia de chamadas
rápidas, enquanto acabavam as duas de comer. Dentro de Céu crescia uma fúria
enorme e um ódio direccionado à mulher que num momento, tinha posto em risco a
pessoa que ela sabia agora, tinha a absoluta certeza, era o ser que ela amava.
Voltaram à sala de espera
tentando saber mais notícias, mas a operação ainda decorria. Andreia pediu a
Céu para se manter por ali e partiu.
Céu ficou sozinha a rezar,
pela primeira vez na sua vida a rezar a um Deus que, se estava lá, sabia que o
seu coração estava a ser absolutamente sincero, e rezou, por muito tempo até
ser interrompida pelo médico que veio ter com ela.
- Queria dizer-lhe que a
operação correu bem e ele parece estável, mas ainda é cedo para termos alguma
certeza. Já saiu da sala de operações e está no recobro. Vão passar-se horas
até lhe podermos dizer alguma coisa ou de poder vê-lo. Se quiser ir para casa…
Prometo que a avisamos se alguma coisa acontecer.
- Não. Eu fico.
O médico sorriu-lhe,
simpatético, e afastou-se, deixando-a mergulhar de novo nas suas preces.
***
Andreia chegava à mansão de
Sintra e dava a última curva antes do portão quando viu um carro pequeno,
preto, num estado não muito bom, de vidros fumados, parado em frente ao portão.
Abrandou e aproximou-se
devagar, tentando ver se havia alguém la dentro. Verificou que aparentemente
não havia enquanto passava devagar, sem parar. Foi parar um pouco mais à
frente, no meio da estrada e esperou.
Viu um vulto a levantar-se
dentro do carro e arrancar com ele. Andreia acelerou, arrancando rapidamente
pelas ruas estreitas e sinuosas demais para a velocidade que ela queria
imprimir ao carro. O carro pequeno seguia-a, mas param ambos de repente, a
seguir a uma curva apertada, numa barreira de carros de polícia que fechava a
rua.
O carro pequeno inverteu de
imediato a marcha, mas pouco andou, travado por mais carros de polícia. O
ocupante saiu disparado do carro, tentando saltar a vedação ao lado, mas foi
prontamente apanhado por agentes que o agarraram. Tentou resistir mas foi
subjugado.
Um homem, na casa dos seus
cinquentas, sai de um dos carros de polícia e aproxima-se de Andreia,
fazendo-lhe sinal de que pode sair também, o que ela faz.
- Inspector Silva? – Perguntou
Andreia. O homem assentiu com um ar sério – O comandante Lopes falou-me de si…
***
O médico apareceu novamente.
- Queria só dizer-lhe que ele
já saiu do recobro mas ainda não está fora de perigo. Temo-lo num coma induzido
e ainda há muito que esperar.
Céu assentiu, mas tencionava
não arredar pé. O telemóvel tocou. Atendeu.
- Sim?
- Céu, foi ela.
- Tens a certeza? Como é que
sabes?
Andreia contou-lhe a pequena
aventura que tinha tido.
- Vê lá, era um rapaz de
dezanove anos. Ela deu-lhe a volta à cabeça.
- O quê?
- Usou um miúdo a quem deu a
volta. Acreditas nisto?
Céu sabia bem o que uma mulher
conseguia fazer à cabeça de um rapaz.
- Acredito. – Dentro de si
nascia algo de muito negro – Andreia, eu trato disto.
- Que é que vais fazer, Céu?
- Não te preocupes.
- Céu… – desligou.
Nos seus pensamentos pediu
desculpa a César por o deixar, mas voltaria muito em breve. Pediu a Deus que
mandasse um anjo para olhar por ele. Depois levantou-se e saiu.
terça-feira, 16 de abril de 2024
Conscientização - XLIV
Há já uma semana que César tinha ido para o Alentejo com Andreia para receberem e arrumarem os carros dele.
Quando foram ao porto de Sines
para ver os contentores ela tinha-se assustado.
- Mas tu já conduziste estes
carros todos?
- Todos. Pelo menos uma vez… Há
alguns que não são nada agradáveis de conduzir.
- Topos de gama destes e não
são agradáveis?
- Alguns deles são os piores
carros que já conduzi! Olha, por exemplo, o Countach. A melhor máquina do seu
tempo, feito para ultrapassar o Testarossa só por um bocadinho, mas horrível de
conduzir e nem vale a pena pensar em fazer manobras com ele.
- E o que é que vais fazer com
isto tudo?
- Um museu, na herdade. Isto a
par de um hotel e um Spa, um restaurante onde apenas podes comer a típica
comida Alentejana feita com produtos da região, preferencialmente produzidos
biologicamente por nós, e acabaremos por ser uma quinta turística e uma pequena
vila. Além disso, por causa dos carros, também pensei em fazer uma pista onde
se pode desfruta-los, e ter alguns outros propositadamente só para fazer uma
espécie de “track days” com carros alugados. Era giro com o Alentejo como pano
de fundo.
- E achas que a herdade tem
espaço para isso tudo?
- Pois, tenho pensado nisso. Se
calhar temos que nos expandir… Ela voltara para Lisboa e ele seguira com os
carros.
A semana anterior tinha sido
intensa. Ela sabia que César era um excelente amante, mas nunca o achara tão…
fogoso! E apaixonado! Surpreendente também pela assunção da relação de ambos
perante todos, sem uma única palavra, mas não o escondendo de ninguém. Mais
surpreendente ainda ao perceber que a mudada Andreia ficou feliz por isso,
demonstrando uma abertura com ela que um mês e meio antes teria sido
impossível. Por terem finalmente conversado e ela ter percebido que olhar
tímido de Andreia sempre tinha sido de admiração, ao contrário do que Céu
assumira, e acabaram por descobrir uma na outra a amiga que já há muitos anos
não tinham, ganhando intimidade e empatia muito rapidamente.
E depois desta revolução
rápida, uma semana de mais do mesmo, com o tempo a parecer arrastar-se
interminavelmente até àquele dia marcado, em que voltavam os dois do Alentejo.
Aproveitou o tempo a sós para preparar uma rotina diferente do habitual. Queria
impressioná-lo.
O dia chegou e com ele um
telefonema que anunciava que viriam tarde, por isso ele ia directamente para o
clube.
Neste momento ela estava já em
cima do palco, preparada, mas ele ainda não tinha chegado e isso estava a
deixar-lhe os nervos em franja. Ele tinha de estar ali.
Finalmente ele chegou, apressado,
e sentou-se. Ela sorriu, descomprimiu um pouco, respirou fundo, deu a deixa
para a música entrar. A música começou suave numa introdução longa em que ela
caminhou até ao varão com suavidade e segurança até a voz de Annie Lennox
começar a cantar:
Money can´t buy it… baby Sex
can´t buy it… baby Drugs can´t buy it… baby You can’t buy it… baby
Ela fez o playback a olhar
directamente para César e depois lançou o corpo pelo ar, fazendo um mortal
apenas com uma mão segura ao varão que a obrigava a movimentar em círculos e os
pés mal tocam no chão e ela eleva-se com leveza subindo o varão em espiral com
o corpo perfeitamente paralelo e as pernas em V, não tendo contacto com o varão
senão com as mãos, desafiando a gravidade de uma maneira quase mágica, chegando
ao cimo rapidamente e elevando o corpo tornando-o perpendicular, e depois
fazendo o pino e pondo os saltos no tecto, parecendo caminhar à volta do poste
e dando, por um momento, a ilusão à plateia de que esta é que estava de cabeça
para baixo, deixa-se precipitar com uma velocidade vertiginosa e, num movimento
rápido, agarra-se e enrola-se ao varão parando a queda e ficando a rodar junto
ao chão, num gesto que fez suspender a respiração a todos os que estavam presos
nela.
A música continuou, com a
conjugação de gestos e palavras a caírem bem fundo nele, a dizerem-lhe o que
ela nunca lhe tinha dito:
I believe that love alone
might do these things for you
I believe in love alone yeah
yeah
Take the power to set you free
Kick down the door and throw
away the key Give up your needs...
Your poisoned seeds
Find yourself elected to a
different kind of creed
I believe that love alone
might do these things for you
I believe that love alone
might do these things for you
I believe in the power of
creation
I believe in the good
vibration
I believe in love alone yeah
yeah
Won't somebody tell me what
we're coming to
It might take forever till we
watch those dreams come true
All the money in the world
won't buy you peace of mind
You can have it all but you
still won't be satisfied
Money can't buy it... baby
Sex can't buy it... baby
Drugs can't buy it... baby
You can't buy it... baby
O corpo dela contorcia-se,
enrolava-se, lançava-se, sempre em movimentos fluídos e contínuos, sem quebras,
numa coreografia que complementava as palavras e que estava a deixá-lo sem
respiração. A beleza do conjunto era inspiradora e na sala o silêncio que se
fez sublimava o momento que se vivia.
Repentinamente a batida muda,
junto com a música, um ritmo mais sexy, mais arrojado, como os movimentos se
tornaram de repente. Mais uma vez uma música com uma letra que César sabia ter
sido escolhida para si, cantada pela Kylie Minogue:
Count backwards, 5 4 3 2 1,
Before you get too heated and
turned on,
You should have learned your
lessons all them times before,
You’ve been bruised you’ve
been broken,
Then theres my mind sayin
think before you go,
Through that door it could
lead you nowhere,
This guy
Has got you all romantic,
crazy in your head,
Do you think id listen, no i
dont care,
Cause I can't focus,
I can't stop,
You got me spinning round,
round, round, round
Like a record,
I can't focus it's too hot
Inside,
You'll never get to Heaven
If you're scared of getting
high,
Boy, boy,
Let me keep freakin around, I
wanna get down,
I'm a red blooded woman,
What's the point in hanging
round,
Don't wanna keep turning it
down,
When this girl wants to rock
with you
A nudez surgiu com uma
suavidade inesperada e completamente encaixada no ritmo. O silêncio era tal que
até o próprio staff do clube parou para ver o que Céu lhes apresentava.
O número acabou com ela
deitada na horizontal no chão e com o olhar fixo nos olhos de César. O silêncio
fez-se sentir por mais alguns instantes e de repente parecia que todos tinham
emergido de um sonho e a sala irrompeu em aplausos. Se naquela noite havia um
homem invejado no mundo, esse homem era César, sem dúvida.
Ela retirou-se, cansada mas
plenamente realizada. Fizera arte, na sua forma mais pura, e sabia-o. Não
interessava o que mais alguém pensasse.
Foi de imediato para o
camarim, e quis rapidamente tomar um duche. Enquanto sentia a água a arrastar
algum do cansaço do corpo, junto com a transpiração da actividade intensa,
perguntava-se o que teria achado o destinatário.
Estava a acabar de se
desmaquilhar quando ele entrou pelo camarim.
- Oi. – Disse, resistindo ao
impulso de se atirar a ele por ainda não ter acabado.
- Olá.
Ele ficou a vê-la, a limpar-se
o mais depressa que podia com um sorriso sacana, aquele sorriso que ela tanto
apreciava e ao qual retribuía no espelho. Quando ela estava quase pronta ele
disse:
- Não tenho medo das alturas.
Ela sorriu.
- Então é provável que chegues
ao Céu.
- Talvez preferisse chegar à
Céu… – respondeu ele.
Ela acaba entretanto, vira-se
para ele com um olhar de gata em pleno cio.
- Isso talvez se possa
arranjar… – e lança-se a ele, os seus lábios contra os dele, os braços dele a
receberem-na e a envolveram-na, correspondendo ao beijo.
Quando finalmente se separam
ele fica simplesmente a contemplá-la com uma expressão nos olhos que ela nunca
lhe vira e que por momentos não soube decifrar. Sentiu que ele olhava para ela,
realmente para ela, para lá de todas as aparências e gostou de ser vista assim.
- Sabes, – disse ele – tenho
pensado um bocado desde a conversa que tive com a Julia, e cheguei a uma
conclusão.
- Diz – disse ela, sem saber o
que esperar.
- Estás despedida.
Ela ficou atónita a olhar para
ele.
- Como…?!
- Estás despedida.
Ela ficou em silêncio.
Esperava tudo, mesmo tudo, menos aquilo. Finalmente lá se atreveu a perguntar:
- E o que é que isso quer dizer
ao certo?
- Bem, quer dizer que eu vou
prescindir dos teus serviços e não vamos ter mais nenhuma relação laboral.
Ela sentia o coração apertado,
sem saber o que dizer.
- Também que dizer, – continuou
ele – que te posso dar isto sem ser acusado de assédio a uma funcionária. – e
tirou uma pequena caixa preta do bolso do casaco, oferecendo-lha. Ela percebeu
de imediato o que a caixa era e ficou em pânico. Não! Não, não! Se o ser
despedida não lhe passara pela cabeça, disto nunca fizera sequer uma
conjectura. Olhou para a caixa, na sua mão. Sem saber o que fazer. Ele fez.
- Realmente, que pouco
cavalheiro da minha parte. – disse, tirando-lhe a caixa. Abriu-a, voltada para
ela, mostrando-lhe de imediato um magnífico diamante engastado num anel de ouro
branco e perguntou:
- Dar-me-ias a honra de ser
minha mulher?
Se alguma vez um ser humano
ficou sem palavras foi naquele momento. Estava perfeitamente em choque, sem
reacção, sem lhe ocorrer sequer um pensamento, e depois veio o medo, veio o
diabinho escuro do fundo da sua alma que lhe dizia quem ela era e ela abanou a
cabeça, as lagrimas assomaram-lhe aos olhos, olhou para ele e tentou falar.
- César, tu… eu… sabes bem o
que eu sou! Ele olhou-a, a sua expressão ficou séria.
- Até sei mais que isso. Sei
quem tu és. E tu sabes quem eu sou, nenhum dos dois é flor que se cheire, por
isso, só estragamos uma família… – ela não conseguiu conter uma gargalhada
perante aquela lógica impenetrável que só ele tinha, mas que fazia sempre pleno
sentido.
- Vá lá, miúda, o que é que
dizes?
Ela olhou para ele com os
olhos mareados de uma felicidade imensa, como se este momento fosse a redenção,
como se finalmente descobrisse que merecia estar com alguém, merecia alguém do
seu lado.
- Sim! – acabou por dizer num
pranto, e abraçou-se a ele, que a recebeu nos seus braços e a levantou do chão
– Sim, sim, sim, sim! – continuava a dizer baixinho a chorar, como se se
sentisse num sonho e estivesse próximo a abrir os olhos e a ver desvanecer-se
aquele momento.
Ele finalmente pousa-a, larga-a,
agarra-lhe na mão e faz deslizar o anel no seu dedo.
- Espero que gostes… – disse
ele.
- Estás a brincar? Podia ser
uma argola de uma lata de Coca-Cola e era lindo na mesma…
- Pena não ter falado contigo
antes. – disse ele, rindo-se – Tinha poupado uma batelada de dinheiro.
- Sempre dava para comprares
mais um carro…
- Pois… – disse ele rindo. – Já
agora, não queres ir… celebrar?
- Quero! – Disse ela num
repente, tornando-se prática, largando-o e começando a vestir-se.
- Olha, não quero ser um noivo
chato, mas…
- Sim?
- Vais continuar a dançar aqui?
Ela parou. Nem tinha pensado
nisso.
- Pois… – disse ela,
subitamente sentindo-se dividida. Não que sentisse a falta do espaço, do local,
mas a dança, a exibição de arte… A dança tal como a música ou qualquer outra
arte só tem um sentido maior, enquanto expressão, de uma forma partilhada.
- Tenho uma proposta para ti.
Porque não criar uma academia de dança onde possas ensinar a tua arte?
- Ensinar?
- Sim. Porque não? Fizeste isso
com a Andreia e não te deste nada mal. Sempre podes dar um bocadinho da tua
visão às tuas alunas. E podes continuar a dar espectáculos… Até mesmo aqui… Não
numa base regular, mas… uma vez por outra! Com os devidos limites claro.
- Limites?
- Claro. Para te despires para
alguém, despes-te para mim. – Disse ele com “o tal” sorriso sacana.
Ela entretanto acabou de se
vestir.
- Amanhã falo com eles. Hoje
tenho coisas mais urgentes para fazer. Mas sim, tens razão.
- Também não tens de sair já
amanhã…
- Não, mas dou-lhes algum
aviso. Eles sempre foram correctíssimos comigo portanto não tenho razão nenhuma
para sair em maus termos.
Saíram do camarim, percorreram
o corredor para a porta de serviço, o segurança abriu-lhes a porta e caminharam
para o carro de César que estava quase em frente, do outro lado da rua,
bloqueado por um outro no qual estava alguém. Cesar destrancou o carro com o
comando e, não vendo qualquer movimento por parte do outro carro disse a Céu –
Vai entrando que eu vou pedir para tirarem o carro – e ela avançou, largando-o,
enquanto ele chegava à janela do outro carro – Desculpe, – disse – não se
importa… – a janela abriu-se e ele viu um clarão, sentiu um impacto no peito
que o projectou para trás e já estava em queda quando ouviu um estrondo e já
nem chegou a ouvir os subsequentes nem se sentiu a cair no chão, apenas ouviu,
muito ao longe a voz de Céu a gritar o seu nome…
segunda-feira, 15 de abril de 2024
Conscientização - XLIII
Ela abriu a porta do quarto, agarrou o rapaz pelo colarinho, puxou-o para si, beijou-o, riu-se, empurrou-o para dentro do quarto e nem acendeu a luz, arrastou-o para a cama, atirou-o para lá, riu-se novamente, olhou para ele com ar de mulher fatal, que era e sabia sê-lo, começou a desapertar a camisa devagar fazendo o rapaz engolir em seco com a antecipação do que viria, enlevado pelo sorriso predador, mesmerizado e ela abre a camisa e desfralda-a deixando-o ver o corpo perfeito e a pele suave que o faz salivar…
Num canto escuro do quarto uma
faísca risca o ar acompanhada pelo som de um isqueiro que se acende e uma nuvem
de fumo, visível nos feixes na luz recortada que entra pelo estore, invade o ar
com o cheiro doce e espesso da erva.
Ela levanta-se irritada.
- Ainda a fumar os teus
cigarrinhos, César?
- Tal como tu continuas a comer
rapazes mais novos. Há hábitos que são difíceis de perder.
Ela acende a luz, revelando-o,
olha glacialmente para o rapaz que assiste mudo deitado na cama e diz – Sai. –
sem qualquer hipótese sequer de argumentar. Ele levanta-se e sai, confuso, sob
os olhares de ambos, o de Julia irritado e o de César quase divertido.
- Desculpa ter-te interrompido.
Não é que não seja um bom espectáculo ver-te com outro gajo, mas ao fim de
algumas vezes acaba por se tornar repetitivo.
- Então lá deste comigo…
- Não é como se andasses a
tentar passar despercebida, não é verdade?
- Pois… Na verdade estava à tua
espera, mais dia, menos dia. Admito que não esperava que fosse tão cedo, mas
enfim, às vezes a vida surpreende-nos. Mas a que é que devo a honra?
- Um simples pedido. – Olhou-a
nos olhos, a sua expressão implacável – Deixa-me em paz, de uma vez por todas.
A mim e aos que me rodeiam. Pára.
- Não.
- Não?! Mas porquê?
- Porque tu és meu. Porque
somos iguais. Porque eu quero-te para mim.
- E desde quando é que eu sou
uma comodidade tua? Quem é que te deu o direito a essa pretensão? Mete na tua
cabeça: acabou.
- Ninguém me despreza, ouviste?
Ninguém, muito menos um tipo qualquer que saiu dum buraco destes…
- Ah! É esse o teu problema?
Então dou-te um conselho: engole o teu orgulho e segue em frente. E isto é um
aviso.
- Tu… Tu atreves-te a
ameaçar-me? A mim?
- Só te digo que se não paras
de uma vez por todas eu faço-te engolir o orgulho. Não te esqueças de uma
coisa: eu sou um grande filho da puta quando quero, e se há uma pessoa que sabe
o quanto eu o consigo ser és tu. Pensa nisso.
- Mas quem és tu para fazer uma
ameaça dessas? De há três anos para cá não passas de um triste a viver de
rendimentos…
César parou a olhar para ela e
sorriu. Agarrou num portátil que estava ao pé de si, abriu-o e passou-lho.
Ela olhou irada e desconfiada
para ele. Agarrou o portátil, sentou-se e começou a analisar gráficos, folhas
de cálculo, projecções de crescimento de centenas de empresas em quase todas as
áreas, começou a ter noção do que César estava a fazer, percebeu as
ramificações. Olhou para ele, incrédula.
- Se não parares faço-te ficar
sem absolutamente nada num piscar de olhos.
Ela olhou para ele com medo,
percebendo que o que ele dizia era verdade. Ele estava em posição de poder
fazer isso. Como é que era possível que ele tivesse conseguido fazer isto sem
ninguém se aperceber?
Ele tirou-lhe o portátil das
mãos, fechou-o, arrumou-o numa mala, voltou-se para ela disse simplesmente:
- Considero este assunto
definitivamente encerrado. A um sussurro teu, estalo os dedos! Estamos
entendidos?
O ódio incendiou-lhe os olhos
a medida que se apercebia da sua impotência. Limitou-se a assentir. Ele
virou-lhe as costas e saiu.
Isto não ficaria assim, não
podia. Ela não podia estar tão vulnerável. Nem tão humilhada.