sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Consequências (XXIII de XLIII)



O carro começou a abrandar à medida que se aproximavam de uma carrinha trombada à beira da estrada, com algumas pessoas a fazerem sinal para pararem.

“O que é que achas?” perguntou o condutor a Miguel.

Miguel olhou em volta, tentando avaliar a situação. O transito era escasso, e não deixava de ser estranho ver uma carrinha tombada no meio do nada, mas vendo apenas dois homens na estrada a fazer sinal para pararem… Não era uma situação usual e Miguel estava apreensivo.

“Passa devagar, mas não pares.”

“Achas que pode ser alguma coisa?” Perguntou Alex.

“Não sei…”

O condutor abrandou, não parando e, quando passavam pela carrinha, de dentro dela saíram mais três homens armados que dispararam uma salva de intimidação para os fazer parar. O condutor acelerou e o carro começou a ser baleado enquanto ganhava velocidade. Enquanto ainda ganhava aceleração, um dos homens que iam no banco de trás olhavam para os assaltantes, vendo um ajoelhar-se no chão com uma bazuca no ombro. Só teve tempo de gritar “Bazuca” antes do carro ser atingido atrás, por baixo. A explosão matou um dos homens e feriu o outro gravemente ao mesmo tempo que levantou o carro no ar, fazendo-o dar uma volta e aterrando no tejadilho que, por ser reforçado, aguentou o impacto. No entanto, as janelas estilhaçaram com a pressão em excesso, deixando os ocupantes do carro, ainda abalado, praticamente expostos quando desapertavam os cintos e literalmente caiam dos seus lugares.

Os atacantes continuavam a disparar, mas por sorte o SUV tinha ficado com a traseira danificada virada para eles, e o dano acabava por encobrir os ocupantes. Miguel abriu rapidamente um compartimento da porta mais próxima, assim como todos os outros, tirando Uzis e começaram de imediato a retaliar fogo. 

Como era de esperar o mais assoberbado era Alex.

“Mas quem são estes gajos?” Perguntou.

“Provavelmente assaltantes de estrada a ver se ganham alguma coisa com um rapto.”

“Com este tipo de armamento?”

“É o que mais há por aqui. Estes tipos devem ter desertado de alguma das facções e agora andam a fazer isto. O armamento não é incomum. E isto não me parece uma operação militar ou já nos teria caído mais gente em cima.”

“E agora o que fazemos?”

“Aguentamos. O alerta já saiu quando atacaram e deve aparecer um helicóptero dentro de uns minutos.”

Embora estivessem num impasse, estavam completamente expostos, no meio da estrada. Os atacantes começaram a tentar atingir as laterais da carrinha, tentando chegar pêlos flancos o mais que podiam antes de serem visto e haver fogo em resposta. Um desses tiros fez ricochete e atingiu Alex nas costas, tirando-lhe o ar de repente.

“Fui atingido” disse, ao mesmo tempo que levava a mão às costas e sentia o sangue.

Miguel olhou para ele. 

“Porra.” Exclamou com frustração. “Estás bem?”

“Acho que não.” Respondeu Alex a sentir-se estranho. Olhou para a frente, para lá de Miguel que descurou a sua atenção por sua causa por um único momento e viu claramente um dos assaltante que ia para atirar em Miguel, vindo da lateral da estrada e disparou, vendo-o a cair de imediato. Entretanto passou um Helicóptero por cima delas, metralhando a estrada e os restantes assaltantes com uma precisão brutal, dando depois a volta para aterrar a alguns metros deles. Miguel retirava já Alex do carro, e gritava “tragam macas, temos feridos”.

Alex foi levado para o helicóptero, bem como o outro ferido grave e o soldado falecido. Miguel e os outros dois homens iam esperar por outro transporte. O Helicóptero levou-os directamente para o Hospital, onde Alex foi levado já inconsciente, de urgência para o bloco operatório, bem como o outro homem ferido.

Miguel e os outros dois homens foram trazidos logo em seguida para serem vistos, embora não tivessem nada de grave, apenas pequenos cortes e nodas negras. Depois de serem vistos ficaram, para saberem do estado do companheiro e de Alex.

O estado do companheiro, embora o prognóstico fosse ainda reservado, parecia bem encaminhado, mas as notícias de Alex não eram tão boas. Aparentemente a bala tinha-se alojado perto da coluna vertebral e era uma operação de altíssimo risco para os recursos daquele hospital, pelo que os médicos apenas o tentavam estabilizar para poder ser transferido.

Só depois de saberem as notícias e saber que teriam de esperar, os homens se permitiram finalmente pensar no companheiro que tinha falecido enquanto se sentavam numa sala de espera num silêncio pesado.


Consequências (XXII de XLIII)



Entrou no sitio combinado por volta das cinco e meia da tarde, depois de ter saído do trabalho. Guilherme já lá estava, vendo-a chegar com um sorriso.

Guilherme levantou-se e ajeitou-lhe a cadeira como um verdadeiro cavalheiro. Perguntou-lhe o que ela ia querer e pediu de imediato a uma empregada antes de se sentar novamente.

“Estou feliz por teres aceite este convite.”

“Eu é que agradeço. Não tenho saído muito e não tenho grande coisa à minha espera em casa…”

“Não tens de agradecer.” Respondeu ele com um sorriso 

O café dela chegou e foram falando algum tempo do trabalho dela e de como tinha ido parar à firma de Fernando. Após algum tempo de conversa de circunstância e estando Marie já mais à vontade, foi Guilherme que finalmente tocou no assunto.

“Desculpa estar a falar nisto, mas soube que algo não tinha corrido bem e que estavas com problemas. É verdade?”

“É, é verdade.”

“Eu vi que estavas preocupada quando lhe ligaste pela primeira vez, no Sábado de manhã, mas depois pareceste ficar mais descansada.”

“Pois, mas o problema começou a revelar-se logo a seguir a deixares-me em casa. Arrancaste, eu dirigi-me à porta, entrei, não encontrei o Alex e liguei-lhe… E o meu mundo colapsou aí.”

“Mas o que é que aconteceu na realidade?”

Marie passou algum tempo a explicar tudo desde o começo. Guilherme ia ouvindo Marie com atenção, mas sem dar opiniões ou tentar dizer alguma coisa. Simplesmente ouvia. Quando ela acabou, ficaram os dois em silêncio por algum tempo até Guilherme dizer finalmente.

“Não fazia ideia de que se tinha passado isso tudo. Se eu soubesse, tinha virado o carro ao contrário e tinha ficado contigo.”

“Nem tu, nem eu. Para mim foi um choque. Sabia que o Alex ia ficar chateado comigo durante algum tempo, contava com isso. Mas nunca por nunca esperei que ele, de um momento para o outro me abandonasse e fosse para o outro lado do mundo.”

“Mas onde é que ele está?”

“Não sei. Ele nem aos filhos diz. Já os levou uma vez para o Chipre, para umas miniférias, mas não lhes diz onde está.”

“Para tu não saberes?”

“Não! Sabes, os meus filhos sabem que partilharem comigo o que não devem nunca mais saberão nada dele. Não creio que eles saibam mesmo. Ele diz que está numa zona de conflito e que não quer preocupá-los mais.”

“Numa zona de conflito?”

“Sim, provavelmente a gerir alguma coisa no meio de uma guerra qualquer…”

“Pois. Complicado. E tu, como é que estás a lidar com isto?”

“Olha, estou a levar a vida para a frente. Ele deixou algum dinheiro na nossa conta conjunta, mas só para eu poder fazer face a algumas despesas imediatas e eu tive de arranjar um trabalho para poder pagar as contas e manter um telhado por cima da cabeça.”

“Bem, e foste trabalhar para o Fernando…”

“Sim. Mas não foi por acaso.”

“Não? Porque é que dizes isso?”

“Porque foi a Lisa que foi sorteada com o Alex.”

Guilherme não pode deixar de rir.

“Que confusão… Sabes que a Lisa e o Fernando não foram à ultima reunião, e pelo que soube da minha mulher, não vão voltar.”

“Sei. Acho que isso também foi resultado diste situação…”

Guilherme simplesmente anuiu.

“Mas, no meio disto tudo, estás bem?”

“Não. Para te ser franca, ainda me sinto perdida.”

“E eu, agora ainda me sinto mais culpado.”

“Não sintas. Tu, tal como a Lisa, não tens culpa de nada. Vocês só foram apanhados nisto porque o vosso numero saiu. Não creio que sequer o Alex olhasse para ti como culpado de alguma coisa. A culpa é só minha.”

Caiu um silêncio pesado entre os dois. Foi Marie quem o quebrou.

“Se calhar é melhor eu ir indo…”

“Posso dar-te uma boleia, se quiseres.” 

“Obrigada, mas não, não é preciso.” Respondeu Marie com um sorriso. Fez menção de se levantar e Guilherme levantou-se de imediato, e, antes de se despedirem deu o seu cartão a Marie.

“Tens aqui os meus contactos. Se precisares de alguma coisa, alguém com quem falar, sair para te distrair, companhia… Estou à distância de um telefonema.”

“Obrigada, Guilherme.”

Saíram os dois do café, seguindo cada um para seu lado.


quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Consequências (XXI de XLIII)


Ao fim de algumas semanas Marie estava já habituada à nova rotina. Tinha mergulhado no seu trabalho de cabeça, tentando aprender tudo o que era necessário o mais rapidamente possível e, graças a manter uma atitude humilde perante os colegas, todos gostavam de trabalhar com ela, embora a achassem extremamente solitária.

Ninguém na empresa sabia que ela conhecia o patrão, o que facilitou a sua integração. Não demorou muito até que começasse a ser convidada pelos colegas para se juntar ao grupo e descontrair um pouco nas sextas à tarde, algo que era quase uma tradição do escritório, mas recusava sempre.

O dinheiro que ganhava chegava para pagar as contas e pôr comida na mesa, mas não sobrava nada para grandes luxos. Assim, a sua vida resumia-se agora à rotina comum a tanta gente, e a sua vida social resumia-se a saídas com Lisa e Fernando, que pelo menos uma vez por semana insistiam com ela para almoçar ou jantar com eles.

Ao fim de semana tinha sempre pelo menos um dos filhos com ela, mais frequentemente Patrícia, que estava no fim do seu curso e com mais tempo disponível que Tiago, completamente embrenhado na dificuldade do curso de engenharia que escolhera.

Os irmãos viram como a mãe queria levar a vida para a frente e os passos que dava. Ficaram orgulhosos dela por arranjar um emprego e tentar manter a casa onde tinham nascido. Tiago, cada vez que vinha a casa, tratava do carro do pai, tirava-o da garagem e não raras vezes davam algum passeio para o carro andar e não se degradar.

Já Marie sentia que o trabalho lhe tinha dado um propósito quando não havia nenhum, e era este o seu único foco. Claro que todos os dias, sobretudo nos momentos de solidão, os seus pensamentos iam sempre para Alex, e não eram poucas as vezes que chorava à noite pela vida que tinha destruído com a sua própria estupidez, mas fazia o que podia fazer e apenas podia esperar.

Quando os filhos voltaram dos dias que passaram com ele, tentou de todas as formas saber alguma coisa dele, mas o mais que conseguiu foi um “Ele está bem, mãe”. Nada mais. Compreendia os filhos, mas não deixava de ficar triste por não conseguir saber mais.

Teria ele seguido com a sua vida? Teria ele uma nova namorada? Será que ele alguma vez tencionava voltar? Será que alguma vez ele a perdoaria, mesmo que não voltassem a ter uma relação. Todas estas incertezas a faziam muitas vezes vacilar, pensar se valeria a pena tentar manter tudo. Talvez fosse mais fácil seguir em frente, procurar refazer a sua vida e tentar deixar os seus erros para trás, mas depois, bastava-lhe pensar em Alex, e sabia que não podia desistir, pelo menos até ter a certeza de que ele tinha desistido. Talvez por isso quisesse tanto que os filhos lhe dissessem algo. Ao fim ao cabo, trabalhava para um objetivo que não sabia se conseguiria concretizar e sem saber se ainda valia a pena lutar.

Estava sentada na sua secretária completamente absorta em organizar os papeis que tinha à sua frente quando ouvir chamar o seu nome:

“Marie”

Olhou para cima e ficou pálida de imediato.

“Guilherme! Olá.” Respondeu embaraçada.

“Nunca pensei que veres-me provocasse essa reação.” Disse-lhe Guilherme com um sorriso “Nunca te tinha visto aqui. Trabalhas aqui agora?”

“Sim desde há algumas semanas. E tu, o que fazes por aqui?”

“Bem, tenho negócios com o Fernando e costumo reunir-me com ele aqui ou na minha empresa. As ultimas reuniões tem sido lá, mas hoje foi aqui.”

Marie sorriu.

“Pronto, está explicado o que estamos aqui a fazer.”

Guilherme apenas sorriu e ficou a olhar para ela intensamente durante algum tempo. Marie começou a ficar algo desconfortável e, como que notando isso, Guilherme continuou:

“Sei o que se passou.” Disse apenas, sendo discreto. Marie olhou para ele e simplesmente encolheu os ombros em resposta.

“Gostava de beber um café contigo e falarmos, se quiseres.”

“Porquê?”

“Porque desde que soube que me sinto algo culpado pelo que aconteceu.”

“Não tens culpa de nada. Foste tu, por acaso, por sorte, por destino… seja o que for que lhe quiserem chamar, mas podia ter sido outro qualquer…”

“Mas isso não me deixa mais descansado. Que dizes? Um café?”

“É melhor não…” respondeu Marie.

Guilherme sorriu e na sua voz mais calma e controlada disse-lhe:

“Vá lá, Marie. É só um café e dois dedos de conversa. Não te estou a convidar para jantar ou para sairmos. Um café?”

Marie pensou um pouco. Que mal faria um café? Ao fim ao cabo, embora Guilherme não tivesse levado com estilhaços quando a situação rebentou, não deixava de ser uma parte integrante de tudo.

“Ok. Um café”

Combinaram encontrar-se depois de Marie sair do trabalho e Guilherme, satisfeito, seguiu para o escritório de Fernando. À saída passou pela secretária dela e disse discretamente “Até logo” piscando-lhe o olho.


Consequências (XX de XLIII)




Tinham passado cinco meses quando Patrícia e Tiago viram o pai pela primeira vez, ao passarem os portões do aeroporto de Chipre. E dizer que ficaram surpreendidos, é dizer pouco. O pai, além de bronzeado, não estava somente em forma, estava musculado, e isso notava-se bem no seu porte, não que ele fizesse algo para o evidenciar, antes pelo contrário.

Patrícia atirou-se ao pai, cobrindo-o de beijos, mais parecendo uma miúda pequena que uma mulher de vinte e quatro, mas logo deu lugar a Tiago que deu um abraço apertado e sentido ao pai.

“Tive saudades vossas, miúdos.” Disse ele num tom embargado.

“Nós também, pai” disse Patrícia ao mesmo tempo que Tiago apenas apertava mais o abraço.

Saíram do aeroporto e foram para uma vila com vários quartos e uma piscina infinita com vista para o oceano. Tiago e Patrícia estavam pasmados.

“Caramba. Isto é luxo.”

“Queria que aproveitássemos bem o estarmos juntos. Só temos uns dias, por isso…”

“Mas não era preciso isto tudo…”

“Filha, podia não ser para vocês, mas era para mim. Quero mesmo relaxar estes dias, sem ter de me preocupar com nada.”

Os filhos encolheram os ombros e foram escolher os quartos, sendo todos relativamente similares, para arrumar a bagagem, tendo Patrícia saído do quarto em biquíni, mergulhando de cabeça na piscina e nadando até ao rebordo para apreciar a paisagem.

“Pai, a vista aqui é espectacular.”

E dizia ela isto quando Tiago sai da casa e mergulha também, fazendo companhia à irmã. 

Alex ficou parado a olhar para os filhos na piscina a brincar e uma torrente de recordações veio-lhe à mente, de tempos mais felizes. Mas a presença de Marie em todos eles parecia tingir essas memórias.

“É tempo de fazer novas memórias” pensou, enquanto entrava no seu quarto e se trocava para uns calções de banho, juntando-se aos filhos na piscina.

Conforme ele mergulhou e veio à tona, reparou em ambos a olhar para ele, admirados.

“O que foi?”

“Pai,” perguntou Patrícia “O que é que tens andado a fazer?”

“Porquê?” Perguntou Alex admirado. Desta vez foi Tiago que respondeu.

“Tu já olhaste bem para ti? Eu julgava que estavas em forma antes, mas… estás inchado!”

Alex riu.

“Ando a ter um treino intensivo militar. Foi adoptado pela equipa de segurança onde estou e eles torturam-me todos os dias.”

“Treino militar? Mas onde é que estás, pai?” Perguntou Tiago.

“Não interessa. É um sítio muito pouco recomendável. Fiquemos por ai.”

“Mas porquê?”

“Porque eu não quero que se preocupem em demasia. As coisas não são tão más como aparecem ao mundo. Digamos que não corro perigo.”

As conversas esbateram-se por ali, voltando a tópicos mais mundanos, com Alex a querer inteirar-se da vida dos filhos e como as coisas corriam para eles. Mas havia sempre uma inevitável contenção de ambos, uma vez que não queriam falar da mãe, porque sabiam que o pai não o quereria.

Passaram os dias juntos até à despedida, com a promessa de Alex de repetirem logo que possível onde fosse possível. Alex voltou ao seu lugar com a alma cheia como não sentia há muito.

Já os irmãos partiam felizes por ter visto o pai, mas apreensivos quanto ao futuro e a saberem que alguém em casa os aguardava ansiosamente à espera de ter um mínimo de um vislumbre…


terça-feira, 26 de novembro de 2024

Consequências (XIX de XLIII)




Alex ajustava-se ao seu novo normal. Assim que chegara a quantidade de assuntos pendentes que precisavam de resolução era avassalador, devido ao facto de não haver ninguém na posição há bastante tempo. Isto foi de alguma maneira benéfico para ele, pois manteve-o focado, em alguns dias perto de vinte horas seguidas, não lhe dando tempo para pensar em mais nada.

Mas, ao fim de pouco tempo, à medida que foi arrumando a casa, foi descobrindo que tinha até bastante tempo livre. Não tinha era com que o gastar e foi nesses dias que aos poucos se foi permitindo pensar em tudo. Não se arrependia de nada… Bem, na verdade arrependia-se de ter levado Lisa para a cama e tê-la castigado daquela maneira. Ela não tinha culpa de nada, foi só apanhada sem querer no meio das mentiras e da traição de Marie. Mas a verdade é que ela não pareceu importar-se. Ficou mais surpreendida do que assustada e foi completamente submissa.

Tinha pena de ter deixado o carro para trás. Demorou anos a tê-lo depois de o ter comprado como sucata num ferro velho e ter acompanhado a meticulosa reconstrução. Um Shelby Mustang Fastback azul meia-noite com listas brancas do final da década de sessenta. Onde quer que acabasse, um dia, haveria de outro. 

Sim, porque sabia que não poderia voltar a casa. Se o fizesse, o mais provável era ser preso e levado a tribunal depois de Marie obter o divórcio por abandono. Não, a sua vida onde nascera e vivera tinha acabado. Ele nunca lhe daria a satisfação.

O facto de ter tempo e não ter em que o gastar começou a fazer estes pensamentos intrusivos começarem consumi-lo e começou a beber mais do que devia, tentando calar as vozes na sua cabeça.

“Tens tido umas noites duras, não?” Perguntou Miguel num dia em que o escoltavam para a sede da empresa.

“É assim tão óbvio?”

“Quando aqui chegaste estavas em forma, cansado… Agora pareces um morto vivo, e se nos primeiros tempos vi a carga de trabalho que tinhas, agora… estás pior.”

Alex ficou em silêncio.

“Se me permites…”

“Fala à vontade.”

“Eu sei em que circunstâncias é que vieste para aqui.” Alex olhou para ele com uma expressão interrogativa “Sei que foi algo que aconteceu de repente, que o teu nome apareceu e umas horas depois estavas aqui. Não sei ao que é que quiseste fugir…”

“Não fugi de nada. Diz antes que quis deixar algo permanentemente para trás.”

“Seja. Mas seja o que for… Aqui tens de largar isso.” Miguel apontou à sua volta “Eu sei que isto tem estado relativamente calmo, não tem acontecido nada aqui por perto e tu até deves pensar que é excessivo andarem cinco gajos contigo dentro de um carro para todo o lado…”

“Por acaso…”

“Mas garanto-te que não é. Já te perguntaste porque é que ninguém quer vir para aqui? Achas que é por isto ser uma pasmaceira?”

Alex sabia que havia razão para isto tudo, embora o aborrecesse sentir que todos os seus passos eram acompanhados.

“Dito isto, preferia que, se as coisas derem para o torto, tu estivesses em forma e capaz. E ainda me sentia melhor se soubesses manejar uma arma. Eu falei com a equipa e eles não se opõem que te juntes aos nossos treinos.”

Alex ficou admirado e olhou para os outros homens e todos assentiram.

“Nós treinamos todos os dias ao fim do dia com o resto da guarnição na sede. Chegas a casa mais tarde e treinas connosco. Mas há um senão… Ninguém vai abrandar por ti, portanto se achavas que fazias uns treinos antes, prepara-te.”

Alex assentiu.

“É uma honra juntar-me a vocês… mas se calhar, amanhã… hoje não ia ser um bom dia.”

Todos se riram. Quando serenaram, Miguel continuou.

“Outra coisa. Nós somos paranóicos com segurança. Mas sabemos que as noites são longas e solitárias… e frias. Se eventualmente precisares de algo para te aquecer as noites, diz-nos e nos tratamos. Não tens de te chatear e nós ficamos descansados. E também não tens de ser tímido. Não estamos à espera que sejas um monge.”

Alex riu. Curiosamente deu-se conta de que até agora não lhe passara sequer pela cabeça.

As noites de Alex melhoraram bastante, sobretudo por que ele passou a chegar a casa moído dos treinos, com dores musculares em sítios que ele não sabia que tinha ou que podiam doer, e caia na cama, repetindo a rotina no dia seguinte. Mas conforme os dias iam passando ele ia notando um cada vez maior vigor e uma diferença substancial no seu físico.


Consequências (XVIII de XLIII)




“Bom dia.” Soou a voz de Lisa assim que Marie atendeu.

“Bom dia, Lisa.”

“Olha, estou a ligar porque passo aí daqui a uma hora para irmos almoçar.”

“Lisa, eu não estou bem e não estou com disposição…” Lisa interrompeu-a de repente.

“Nem penses. Há uma semana que não sais de casa e há dois dias que estás aí sozinha sem ninguém. Já tiveste tempo suficiente para ter pena de ti. Arranja-te e veste-te. Estou ai daqui a uma hora e a reserva já está feita. Sem desculpas.” E desligou, não dando hipótese de Marie contestar.

Marie respirou fundo. Não lhe apetecia sair. Estava sozinha desde que Patrícia tinha voltado para a universidade um dia depois de Tiago, e tinha passado os dias a contemplar a ruina em que a sua vida se tinha tornado, com o silêncio da casa a pesar como uma lembrança do que tinha perdido.

Sabia que não ia adiantar refilar ou dizer que não. Lisa iria chegar e, a não ser que não lhe abrisse a porta, ia arrastá-la para fora de casa. E mesmo que não abrisse, suspeitava que ela telefonaria a Patrícia que lhe iria dar um sermão e o resultado final seria sempre o mesmo. Resignou-se, levantou-se da cama de onde ainda não tinha saído e foi tomar um duche, vestindo-se em seguida e arranjando-se minimamente, para tirar um pouco o ar de zombie que parecia ter na cara.

Quando Lisa chegou já estava pronta e a amiga mal a cumprimentou, arrastou-a para a rua entraram no carro e seguiram.

Não falaram muito no caminho para o restaurante, até porque Lisa sabia que não adiantaria muito estar com conversa fiada e, no carro, no meio do transito, não era sitio onde pudesse dar atenção a Marie.

Quando chegaram foram levadas de imediato para uma mesa perto de uma janela e, assim que pediram e o garçom se retirou, Lisa foi directa ao assunto:

“Então, o que é que vais fazer agora?”

A pergunta estava há uma semana em repetição continua na mente de Marie, mas esta não conseguia ver um caminho para a frente. 

“Não sei. Sinceramente não sei.”

Lisa olhou para ela e disse finalmente.

“Ok. Então comecemos por algum lado. O que é que queres?”

“Queria que nada disto tivesse acontecido.”

“Pois, mas aconteceu. E agora não à volta a dar a não ser seguir para a frente. Já a minha avó dizia que não vale a pena chorar por leite derramado. Portanto, uma vez que aquilo que queres mesmo não é possível, o que é que queres?”

“Queria conseguir voltar a ter a minha família de volta. Queria ter o meu marido de volta.”

“Ok. Então já sabes o que queres. E o que vais fazer?”

“Não sei. Tenho dado voltas e voltas à cabeça, mas não sei como resolver isto.”

O garçom chegou com a comida, interrompendo-as, e quando se afastou foi Lisa quem continuou.

“Eu sei que não estás em condições de ser prática, por isso vamos por partes. O Alex partiu e não sabemos onde está. Sabemos que, pelas palavras dele, ele não se vai divorciar de ti. Mas tu podes divorciar-te dele daqui a um ano por abandono e tomar posse dos bens que ele deixou para trás. Já pensaste em relação a isto?”

“Não. Não quero sequer pensar em divorcio. Além disso, nem sei se daqui a um ano ainda terei os bens. Se ele deixa de pagar a hipoteca, daqui a uns meses estou a viver na rua…”

“Não sejas parva, isso não vai acontecer. Vais manter a casa, sim.”

“Mas como?”

“Vais trabalhar na segunda-feira.”

Marie ficou a olhar para Lisa como se esta tivesse duas cabeças. Lisa continuou.

“E vais trabalhar na segunda-feira por dois motivos: Para dares descanso à tua cabeça e focares-te noutras coisas e para teres o teu ordenado no fim do mês.”

Marie continuava a olhar para ela.

“Mas vou trabalhar onde?”

“Vais trabalhar na empresa do Fernando. Vais entrar como assistente da secretária dele e, quando já estiveres mais à vontade, vais partilhar responsabilidades com ela. Isto vai garantir que tenhas algum dinheiro. Se não chegar para tudo, eu ajudo-te com o que faltar.”

Marie continuava com um ar atónito e por fim perguntou:

“Porquê?”

Lisa olhou para ela com um sorriso e respondeu.

“Sabes, apesar do que aconteceu ser uma catástrofe para ti… A verdade é que aquela conversa que tivemos no sábado à noite na tua cozinha fez com que falássemos mais, acerca de coisas e sentimentos que nunca pensamos existir no outro. E se no próprio Sábado tinha já chegado a uma conclusão, ao longo da semana aquilo que fomos reafirmando só reforçou esta decisão. Eu não fazia ideia daquilo que se passava na cabeça do Fernando, pura e simplesmente assumia ele não só estava bem, como até gostava das nossas visitas ao clube. Descobrir de repente que ele odiava e que só ia por medo de me perder… Não vamos voltar ao clube. O nosso casamento está permanentemente fechado. Eu só preciso dele e não quero magoá-lo com isto mais uma única vez que seja.”

Marie anuiu e lisa continuou.

“Portanto, estranhamente, ambos temos uma enorme dívida para contigo. E depois de falarmos, e uma vez que eu fui parte interveniente nisto e me sinto também culpada de alguma forma, decidimos fazer todos os possíveis por te ajudar, da maneira que tu achares que queres seguir em frente. Portanto, para já tens um emprego.”

“Não sei que dizer…”

“Então aceita e não digas nada. Entretanto e voltando atrás, agora que sabes que não vais ficar sem um teto, queres divorciar-te dele daqui a um ano?

“Eu não me quero divorciar dele. Ponto final.”

“Pensei muito naquilo que o Tiago disse na Segunda-feira. E acho que ele tem razão. Acho que por mais que quisesses falar com ele e explicar, nada ia adiantar. Mas tu és a única pessoa que pode fazer o que é certo. E pode ser que, com tempo, se te atreveres a ser paciente, as tuas acções venham a falar mais que todas as palavras que lhe pudesses dizer.”

“Tens razão. Só não sei o que fazer…”

“Bem, uma vez que não podes fazer mais nada, ergue-te, luta e leva a tua vida como se ele tivesse simplesmente ido a trabalho para um lado qualquer para onde não te podia levar e para onde não há comunicações. E espera. E conta comigo, com o Fernando, e com a maior parte do grupinho das mulheres para estarmos lá para ti e para te ajudar.”

Marie anuiu, sentindo pela primeira vez desde Sábado uma esperança nascer dentro de si. Não estava sozinha e, quem sabe, talvez houvesse uma hipótese.

Passaram o resto do almoço a falar acerca da empresa do Fernando e o que era esperado dela, inclusive, quando ela já tivesse experiência, viagens de negócios a acompanhar Fernando. À medida que falavam, o entusiasmo de Marie aumentava e sentia-se mais animada.

Quando Lisa a deixou em casa ao fim da tarde, a solidão voltou, mas pelo menos, no meio de tudo, havia um propósito e já se sentia nervosa na antecipação da manhã de segunda-feira.


segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Consequências (XVII de XLIII)




“Pai, finalmente!” – exclamou Tiago quando atendeu o telefone.

“Desculpa só consegui ligar agora. Estava para te ligar e à tua irmã, mas ela apanhou-me em trânsito em Frankfurt e disse-me que tinhas um exame ontem…”

“Eu sei. Mas hoje já estava inquieto.”

“Desculpa mas tenho estado mesmo muito ocupado. Acabei de chegar e o lugar esteve vazio algum tempo e tive de me inteirar de montes de coisas… Mas isso não interessa nada. Já sabes?”

“Sim, já sei de tudo. Estou aqui em casa e vou voltar amanhã. Não achas que foste um bocadinho exagerado? Não podias ter ido para um hotel do outro lado da cidade?”

“Filho, se isso acontecesse eu ia ter de pedir o divórcio. A tua mãe ia contestar, íamos acabar à frente de um Juiz que nos mandava para um psicólogo para me tentarem convencer que a falsidade o desrespeito e a traição são algo que se pode descartar em nome de uma diversão qualquer. E depois no fim de aguentar esta tortura e gastar um rio de dinheiro em advogados, dissolviamos o casamento na mesma e ela fica com metade do que eu passei uma vida a construir. Desculpa filho. Mas dei tudo que podia dar a essa mulher, até a minha própria alma. Não sobrou mais nada. Vim para onde podia e estou fora do alcance. Ela que fique com o que deixei para trás, se conseguir. Daqui a um ano pode pedir o divórcio por abandono se arranjar maneira de pagar aos bancos.”

“E tu?”

“Eu estou bem. Não te preocupes. Tenho uma cozinheira a fazer pratos exóticos, uma governanta para me manter apresentável, uma casa de sonho, segurança privada e um emprego de topo. É verdade que a vida social aqui é um bocado limitada, até porque não posso ir a lado nenhum sozinho, mas também isso nunca me interessou grande coisa, por isso…”

“E nós, pai?”

“Tu e a tua irmã não tem de se preocupar com nada…”

“Não falava disso. Julgas que não fazes falta de outra maneira? Quando é que te vemos?”

“Bem, há rede de telemóveis, por isso, um bocado quando quiseres” respondeu Alex com um sorriso. “Eu não me vou afastar de vocês. E já agora, ficam prometidas umas férias num sitio giro. Aqui não porque isto é giro, mas é horrível ao mesmo tempo.”

“Vou-te cobrar essa promessa.”

“Não tens de cobrar. Tu e a tua irmã, vejam quando estão livres e eu trato de tudo.”

Falaram por mais algum tempo e Tiago ainda tentou em vão arrancar a localização ao pai, mas não conseguiu de todo. Quando deligaram Tiago olhou para Patrícia e ambos sentiram finalmente o vazio que se formava agora nas suas vidas.


Consequências (XVI de XLIII)




Patrícia desceu as escadas de manhã, após mais uma noite inquieta e foi encontrar Tiago já sentado na mesa da sala com o seu portátil e um copo de leite. Olharam-se e acenaram um ao outro. Patrícia foi para a cozinha onde tratou do seu pequeno-almoço e Tiago continuou focado no que estava a fazer. 

Tiago, após uma noite inquieta em que a sua cabeça deu voltas e mais voltas, ao acordar de manhã tinha decidido focar-se nos estudos, sabendo que o espaço mental que isso ocuparia o faria descansar um pouco do drama que a sua família parecia ter-se tornado. Uma novela mexicana reles.

Depois de Patrícia comer voltou à sala e sentou-se, ficando a olhar para o irmão. Este arrumou o portátil e perguntou bruscamente:

“E tu? O que é que pensas disto tudo?”

Patrícia teve de parar um pouco antes de responder.

“Se queres que te diga, não sei. Isto é informação demais e eu desde que cheguei tenho andado mais a tentar manter a mãe calma do que a pensar sobre isto. Aquilo que te posso dizer é que já me apeteceu bater-lhe com um gato morto até ele miar.”

Tiago assentiu.

“E tu?”

“Bem, eu estou ainda pior que tu. Mas acho que nunca me senti tão desiludido com alguém. A mãe arruinou tudo.”

“Ontem percebi que ainda estiveste um bocado a falar com a Lisa…”

“Sim. Ela disse-me uma serie de coisas acerca do clube e das trocas e como isso pode ter feito a cabeça à mãe durante anos… Mas porquê agora?”

“Não percebes? Finalmente estamos os dois fora de casa.”

“A Lisa disse-me que isto era para ser uma espécie de prenda para o pai, ao mesmo tempo que a realização da fixação dela, e que a mãe esperava voltar no dia seguinte e ter uma experiencia transcendental com o pai, para revitalizar a relação…”

“E o que é que achas disso.”

“Tretas de pessoal que quer justificar o seu próprio egoísmo, disfarçando-o de algo altruísta e para o bem de ambos. Agradeci à Lisa o facto de me ter tentado fazer perceber o que levou a mãe a fazer isto, mas nada desculpa as atitudes dela.”

Patrícia anuiu.

“Sempre achei a mãe tão inteligente.” Continuou Tiago.

“Sabes que às vezes as pessoas mais inteligentes fazem as maiores estupidezes porque estão convencidos de que estão certos.”

Tiago suspirou.

“E agora? E o pai?” Acabou por perguntar.

“Não sei. Não faço ideia do que fazer. Não faço ideia do que dizer ao pai. Ele diz que ela para ele morreu e que se queremos falar com ele, é melhor nem a mencionar. Ele vai-te ligar hoje. O que é que lhe vais dizer?”

“Não sei. Não faço mesmo ideia. Aquilo que sei é que a única pessoa que pode tentar resolver isto, embora duvide que se resolva a contento, ainda está lá em cima a ter pena dela própria pela trampa que fez, como se não só não fosse ela a fazê-la e ainda se deu ao trabalho de a mandar contra a ventoinha. E sinceramente, estou no meio de um monte de exames e trabalhos e não tenho tempo para esperar que ela deixa de ter pena de si própria. Amanhã tenho de ir.”

“E tens razão. E vais. Eu só vou ficar um ou dois dias mais, mas ela vai ter que começar a tomar atitudes. Uma coisa eu sei. Não vou pôr em risco uma relação com o pai por causa dela.”

“Nem eu.”

Ouviram barulho e viram Marie descer as escadas. Calaram-se e Patrícia foi ajudar a mãe a fazer o pequeno-almoço e força-la a comer qualquer coisa enquanto Tiago voltou a devotar toda a atenção ao que estava a fazer antes.

Por fim vieram as duas para a sala e Tiago fechou o portátil. Ficaram em silêncio durante um longo tempo. Depois foi Marie quem falou:

“Desculpem.” E não obtendo qualquer resposta dos filhos, respirou fundo e continuou “Nada disto era suposto ser assim.”

“Mas é.” disse Tiago “O que é que vais fazer?”

“Não sei, francamente não sei…”

“É melhor começares a saber. É tua responsabilidade resolver isto.”

“Mas não sei como. O teu pai odeia-me…”

“…neste momento eu também.”

As palavras do filho foram como um estalo na cara.

“Mãe, sabes que te amo, mas a tua estupidez, insensibilidade e egoísmo fizeram com que o meu pai fosse para uma zona de guerra só para se afastar de ti. Tu fazes ideia do quanto ele te deve odiar para preferir arriscar a vida a ter que lidar contigo? Preferiu deixar para trás a casa que andou a remodelar, o carro que sempre quis e com o qual andava tão contente, os amigos, os filhos, só para não ter de lidar contigo.”

Marie deixou cair a cabeça.

“Eu sei. Eu sei que fiz tudo errado. Mas eu só queria…”

“O quê? Um bocadinho de excitação? Poupa-me com essas frases feitas das revistas cor-de-rosa. Se querias excitação, ias praticar bungee jumping ou asa delta. Não traíste só o pai. Traíste-nos a todos. Mas agora sobra para nós tentar pegar nos cacos do que partiste. Já para não falar ter sempre a preocupação do que se passará com o pai. Nunca pensei que conseguisses ser tão egoísta.”

Marie não chorava, mas tinha os olhos fixos num qualquer ponto do tapete da sala e abanava-se lentamente.

Tiago levantou-se foi sentar-se ao lado dela e puxou-a para os seus braços.

“Eu e a Patrícia vamos apanhar os pedaços, mas vais ter de se tu a colá-los. Vê lá se desces à realidade e começas a fazer qualquer coisa.

Tiago olhou para Patrícia que se juntou ao abraço que confortou e começou a dar alguma esperança a Marie.


terça-feira, 19 de novembro de 2024

Consequências (XV de XLIII)



Tiago estava completamente perdido dentro da sua mente, tentando encontrar alguma ordem no caos que reinava nos seus pensamentos. Foi a voz de Lisa que o trouxe de volta ao sitio onde estava.

“Eu sei que se calhar é estranho, mas gostava de te dizer algumas coisas, se quiseres ouvir.”

Tiago olhou para ela.

“E o que é que tens para me dizer que eu queira ouvir?”

“Uma perspectiva.”

Tiago olhou para ela, inquiridor. Ela continuou.

“Como percebeste fui apanhada no meio desta situação por pura sorte.”

“Sorte?”

“Sim, e já te vou explicar porquê.” Disse ela com um sorriso doce “A noite com o teu pai foi estranha. Comecei a desconfiar de algo no carro mas só aqui é que tive a certeza de que ele não sabia de nada. E depois, tudo o que se passou foi no mínimo estranho e eu não percebi bem. Só ontem à noite, aqui em tua casa, sentados na mesa da cozinha é que eu percebi, não só o que se tinha passado, mas tudo o que se passava à minha volta e eu não via, simplesmente porque não via o mundo por essa perspectiva.”

Tiago parecia ainda mais confuso.

“O meu marido esteve aqui connosco ontem, até a Patrícia chegar. E foi quando a tua mãe finalmente me disse o que se tinha passado. Mas foi o meu marido que nos ofereceu uma perspectiva que nos abriu os olhos.”

Tiago continuava lentamente a beber o seu whisky, mas agora com um ar curioso e extremamente atento.

“Sabes, esta espécie de clube não oficial conta com uns quarenta casais. Quase todos os nossos maridos são empreendedores, têm cargos elevados em empresas. Podes dizer que são pessoas influentes e abastadas. A maior parte de nós não trabalha sequer, embora algumas o façam. Outras envolvem-se em voluntariados para ocupar o tempo e outras simplesmente não fazem nada. A tua mãe… Bem, claramente não ia aos nossos encontros, porque são para casais e ainda que ela alguma vez quisesse vir com outro homem, isso nunca seria permitido. Mas era uma espécie de membro não oficial. É uma das amigas do grupo e nos discutíamos as coisas abertamente. E verdade é que brincávamos com ela e a chamávamos de “a virgem do grupo” mas na pura brincadeira. No fundo todas nos invejávamos a relação e a cumplicidade que ela tinha com o teu pai. Bem, também olhávamos para o teu pai. Acho que todo este ambiente poderá ter levado a tua mãe a imaginar o que seria estar com outro homem sem culpa. E aquilo que fazemos era o ideal. Não há qualquer envolvimento emocional. O parceiro, homem e mulher são escolhidos à sorte. Se não há sentimentos envolvidos, então é só mesmo o acto por diversão. De certeza que compreendes isso, não?”

“Claro que percebo.” Disse Tiago “E para ser sincero, não me choca. Se todos os que lá estão consentem no que se passa, o que outros pensam ou não é com eles.”

“Exacto. Além disso a tua mãe ouvia as histórias que contávamos de chegarmos a casa depois de uma noite de sexo com uma energia diferente, porque, quer queiramos quer não, é diferente, o facto de estares a conhecer e a dar-te a conhecer a alguém intimamente pela primeira vez, e o reencontro com os nossos maridos, as pessoas que realmente queremos e amamos e como isso era absolutamente explosivo para ambos e o quanto fazer amor a seguir era divinal e nos conectava intimamente. Portanto podes calcular que a tua mãe ouvia isto e, por muito boa que fosse a sua vida no quarto com o teu pai, não havia esta energia. E acho que a tua mãe se convenceu que se fizesse isto, uma única vez, porque mesmo quando ela nos disse que finalmente iria a uma reunião, disse-nos logo que seria uma vez portanto a sortuda que tivesse o seu marido, que aproveitasse, mas nesta única vez ela queria trazer essa energia para a relação e dar-se depois de uma maneira intima e maravilhosa ao parceiro. E se me perguntasses ontem, eu diria a pés juntos que isto tem toda a lógica e dai não conseguir perceber muito bem a reacção do teu pai, ou por outra, perceber, mas achar a reacção exagerada.”

“Então e se eu te perguntar hoje?”

“Se me perguntares hoje… Eu digo-te que após a conversa que tivemos aqui ontem e que acabou por ter um desfecho em casa, não vou voltar ao clube. Percebi que, apesar de o meu marido participar voluntariamente, toda essa questão da energia era algo que eu sentia, mas ele não. Pelo contrário, magoava-o. Que ele apenas me acompanhava porque tinha medo que se isto não acontecesse eu acabaria por o trair um dia. Porque tem noção do tempo que o trabalho lhe tira e se sente culpado por não me dar esse tempo e atenção, e tem medo que alguém tome esse lugar. E eu nunca me tinha passado isso pela cabeça. Que ele pensasse dessa maneira.”

Tiago olhava para ela, avaliando as suas palavras.

“Não estou a querer desculpar os actos da tua mãe. São o que são… Mas queria que tu percebesses que o maior erro dela não foi a mentira, a traição ou o desrespeito, foi antes a arrogância de pensar que sabia o que era melhor para ambos e agir unilateralmente. Mas que no fundo a intenção não era magoar o teu pai, antes pelo contrário era oferecer-lhe algo mais dela própria.”

Tiago olhou para ela durante um longo tempo. Depois disse simplesmente:

“Obrigado”

Lisa acenou em assentimento, percebendo que ele entendera o que ela dissera e esperou que ele pelo menos percebesse que a sua mãe não era uma má pessoa ou maquiavélica, apenas uma pessoa que fez as escolhas erradas por motivos certos.

“Vou só espreitar a tua irmã e a tua mãe e vou indo…”

“Claro vai…”

Lisa subiu as escadas e espreito o quarto. Patrícia abraçava a mãe que parecia calma de olhos fechados. Desceu as escadas, Tiago levou-a à porta e partiu.


segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Consequências (XIV de XLIII)



Tiago entrou em casa cansado, depois de ter a noite em claro a estudar, ter tido um exame extremamente complicado e ter conduzido duas horas. Abriu a porta, meio receoso do que iria encontrar. A sua irmã tinha-lhe dito que havia problemas em casa, mas não especificou. Tentou saber mais dela ao longo do dia anterior, mas ela disse-lhe sempre que não valia a pena preocupar-se, ela estava em casa e quando ele chegasse na segunda-feira depois do exame lhe explicaria tudo. Mas, conhecendo ele a irmã, suspeitava que ela lhe estava a esconder algo para não o preocupar antes do exame.

A casa estava completamente silenciosa.

“Cheguei. Está cá alguém?” Gritou.

Patrícia apareceu imediatamente, vinda da cozinha, fazendo-lhe sinal para não fazer barulho, mas era tarde demais. A mãe, que aparentemente estava adormecida no sofá, acordou com a voz dele. Assim que o viu, levantou-se, correu para ele e abraçou-o! Abraçou a mãe de volta, reconfortando-a enquanto ela chorava e dizia baixinho “Desculpa, desculpa…” mas ele continuava atónito, sem perceber nada.

Patricia ficou a olhar para ele com um ar apreensivo e ele percebeu que, o que quer que se tivesse passado, era mais grave do que Patrícia tinha dito, confirmando os seus receios.

Ao fim de algum tempo Patrícia conseguiu arrastá-los para a cozinha, onde serviu o jantar que tinha acabado de fazer quando o irmão chegou. Sentaram-se e comeram em relativo silêncio. A meio da refeição Tiago perguntou “O pai?”, ao que Patrícia simplesmente respondeu “Está bem.” E pelo tom da irmã, ele percebeu que teria de esperar mais um pouco pelas respostas. Quando estavam a acabar a refeição, bateram à porta. Patrícia foi abrir e deixou Lisa entrar.

“Vim ver como estava a tua mãe.”

“Entra. Vai para a sala que nós acabamos agora de comer e vamos também. Queres alguma coisa? Um café?”

“Sim, um café ia bem, por favor.”

“Senta-te, que já nos juntamos a ti.”

Patrícia voltou à cozinha e começou a tirar cafés para todos, menos a mãe, já sabendo os gostos respectivos e disse aos restantes:

“Vão indo para a sala que a Lisa está lá.” A mãe levantou-se e seguiu, mas Tiago ficou a olhar para Patrícia com a pergunta “Quem é a Lisa?” obviamente estampada no rosto.

“Já vais descobrir.” Respondeu Patrícia aos pensamentos do irmão enquanto lhe passava uma chávena de expresso para a mão e começava a tirar outra chávena. 

Tiago encolheu os ombros e dirigiu-se para a sala com o seu café, encontrando uma deslumbrante criatura ruiva sentada no seu sofá. Lisa estava vestida casualmente, mas nada poderia ofuscar a beleza daquela mulher. Tiago ficou sem reacção, com milhares de pensamentos a passarem-lhe pelo espirito. O que se teria passado. Seria aquela mulher a fonte do problema? Seria uma amante do pai? Afastou esse pensamento. Conhecia o pai. Mas também se conhecia a si e aquela mulher tinha algo de quase transcendente, como as estrelas de cinema, ou as modelos nas fotos das capas de revista. Conseguia ele descartar a possibilidade?

Mas se fosse esse o caso, que confusão era esta. O pai tinha fugido? Mas se ela estava aqui, com quem? Sozinho? Abanou a cabeça por uns momentos, como se tentasse colocar alguma ordem nos pensamentos. 

Patrícia passou por ele com uma pequena bandeja com dois cafés, um para ela própria e outro para Lisa, sentando-se ao pé dela. Olhou para a mãe, que olhava para o chão sem ter coragem de olhar para ele. Entrou finalmente na sala e sentou-se numa cadeira, de frente para elas, sem saber sinceramente o que esperar. Depois perguntou finalmente, sem ser a nenhuma delas em particular:

“O pai?”

“Falei com ele duas vezes. Sei que está bem.” Respondeu Patrícia.

“Onde é que ele está?”

“Não sei. Ele não quis dizer. Mas pela descrição que fez está numa zona de conflito qualquer algures…”

“Isso não só e reconfortante como ajuda bastante a localizá-lo.”

“Ele não quer que saibamos onde ele está. Diz que não quer que fiquemos preocupados.”

“Isso deixa-me completamente descansado.” Respondeu Tiago a começar a sentir-se irritado, com uma nota plena de sarcasmo na voz. Depois perguntou finalmente “Alguém me explica o que se passa de uma vez por todas?”

Patrícia e Lisa olharam para Marie, mas esta apenas se encolheu e começou a soluçar baixinho. Tiago olhou para Patrícia que suspirou e começou a contar toda a história do que se passara desde o princípio da semana, com a insistência em ir a uma festa e depois contando todos os acontecimentos da noite de sexta-feira para Sábado. A certa altura Tiago teve de pedir a Patrícia para parar. Saiu da sala durante algum tempo e foi para o quintal por trás da casa. As mulheres ficaram em silêncio. Marie soluçava.

Tiago voltou e, numa atitude inédita, trazia consigo um copo com whisky. Patrícia estranhou. Sentou-se novamente, respirou fundo e disse a Patrícia para continuar. Patrícia olhou para Lisa e esta começou a descrever o que acontecera quando viera com o seu pai para casa. Quando Lisa acabou, Patrícia descreveu os telefonemas que a mãe teve com o pai, e depois as conversas que ela própria teve com ele.

Tiago ficou em silêncio por bastante tempo, como se lhe fosse difícil entender toda aquela situação. Olhou para a mãe, que continuava a soluçar baixinho.

“Enlouqueceste?” Foi a única coisa que ele foi capaz de dizer, ao fim de algum tempo.

A mãe levantou finalmente a cabeça.

“Não era suposto ser assim…” disse entre soluços, sem o olhar nos olhos.

A ira nos olhos do filho era incomportável. Sendo ele tão parecido com o pai, pareciam os olhos do marido a julga-la, mas o facto de ser o filho doía ainda mais. Ela sabia que jamais seria vista por ele da mesma maneira.

“E como é que era suposto ser? Queres tentar explicar-me?”

“Era suposto ser uma prenda para ambos, algo diferente, uma nova experiência…”

“Quem é que tu queres enganar? Era uma maneira de encobrires o teu desejo de foderes, pêlos vistos, outro gajo qualquer, desde que não fosse o teu marido.”

As palavras de Tiago, completamente directas, assustaram todas elas, com uma súbita concretização de uma verdade que, até este momento, nenhuma delas queria plenamente realizar.

“Por causa da tua vontade egoísta, o meu pai está algures no mundo no meio de uma guerra, só para se afastar de ti… Como é que pudeste fazer isto? Odiavas assim tanto a tua família para a querer destruir assim tanto?”

A mãe levantou a cabeça e olhou para ele, de olhos esbugalhados abanando a cabeça e dizendo apenas “Não, não…”

“O que é que tu esperavas? Tu achas que o pai tinha algum interesse em ter sexo com outra mulher? Olhaste bem para ele, nos últimos tempos? Achas que se ele estalasse os dedos não aparecia alguém?”

“Eu sei.”

“Porque é que, pelo menos, não lhe perguntaste?”

“Porque me convenci que se lhe perguntasse ele nunca seria honesto. Mesmo que quisesse, nunca o admitiria a mim.”

“Então, tu, na tua universal sabedoria, achaste que sabias o que ele queria, mesmo que dissesse que não. O buraco da tua explicação é quando ele te disse claramente que não tu relevaste, viraste-lhe as costas e foste passar uma noite com outro homem. Mesmo quando ele te disse para não fazeres isso, tu sabias o que era melhor para ele.”

Patrícia estava francamente assustada. Sempre olhara para Tiago como simplesmente o irmão mais novo, sempre bem-disposto e brincalhão, mas este homem furioso era uma faceta dele que a surpreendia.

“Espero que tenha valido a pena.”

Marie começou a hiperventilar.

“Sabes que mais. Eu amo-te mãe, mas neste momento estás mesmo muito baixa na minha consideração. Mas tu causaste isto na tua arrogância e estupidez. Agora vê lá se és humilde o suficiente para tentar reparar isto e fazeres tudo o possível e sobretudo o correcto.”

Por esta altura Marie estava a começar a ter um ataque de pânico e Patrícia levou-a rapidamente para o quarto, para lhe dar um calmante. Tiago deixou-se cair pesadamente no assento e ficou com uma expressão absolutamente séria, perdida nos seus pensamentos a beberricar o sei whisky. A imagem nítida do seu pai na madrugada de Sábado, pensou Lisa para si.


sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Consequências (XIII de XLIII)




A casa tinha uma aparência estranha para ele. Devia ser uma propriedade bastante rica, porque estava isolada e algo distante da povoação mais próxima. Grande, ao contrario da maioria das casas. Entrou e a casa estava muito mais fresca do que pensava. No lusco fusco, as paredes eram desenhadas pela luz que passava através de intrincados detalhes talhados nos painéis de madeira que estavam por todo o lado. No centro da casa um pátio interior que lhe fazia lembrar um claustro de um convento em miniatura mas todo revestido e com colunas de madeira entalhada com detalhes riquíssimos. Teria tempo para os analisar ao pormenor, mas não deixou de ficar impressionado. No quarto, enorme, uma secretária moderna com um computador contrastava com os móveis e poltronas de aspecto antigo e com a enorme cama de dossel que daria para quatro pessoas folgadamente.

Miguel e um dos outros homens entrou atrás dele, trazendo as malas.

“Onde quer que as ponhamos?” Perguntou.

“Deixem-nas em qualquer lado, eu depois trato disso.”

“Antes de me retirar,” deu-lhe um pequeno papel “ Nesse papel tem o meu número e mais alguns números importantes. Para já ficará sozinho, mas está um homem na frente da casa e outro nas traseiras. O nosso aquartelamento é nas instalações da sede e é lá que eu estarei, mas virei com a frequência que for necessário. Seja o que for, não hesite em ligar-me. Mais logo o pessoal que vai cuidar da casa vai chegar. Já foi pré-aprovado por nós. Terá uma cozinheira e uma governanta. Não são locais. Amanhã de manhã chegará o seu secretário que trabalhará em permanência consigo, aqui e na sede. Agora deixo-o, mas informo desde já que tem uma reunião marcada para as onze da manhã, pelo que estaremos aqui para o levar às dez e meia. O seu secretário chegará pontualmente às nove. E ele é britânico…” acrescentou no fim com um sorriso, que mereceu outro de Alex em resposta.

“Obrigado Miguel.”

Os homens saíram e Alex ia para se sentar, mas chamou:

“Miguel.” Este voltou atrás com uma expressão interrogativa “Por acaso não haverá nesta casa algo que se beba?”

Miguel sorriu, atravessou o quarto, pressionou um painel na parede que abriu e revelou um minibar, saindo em seguida.

Alex respirou fundo, atirou o casaco que ainda tinha nas mãos para cima da cama, descalçou-se, desapertou a camisa, agarrou um copo e procurou através das garrafas até encontrar um whisky que lhe agradava, juntou duas pedras de gelo, sentou-se numa convidativa poltrona de veludo carmesim que o aconchegou de imediato, agarrou no telemóvel, verificou, para sua surpresa, que tinha rede e ligou. Esperou algum tempo até ouvir o sinal de chamada, ao ponto de pensar que afinal era falso alarme. Mas de repente ouviu o toque que foi atendido de imediato.

“Pai.” A voz de Patrícia ansiosa do outro lado “onde é que tu estás?”

“Numa poltrona de veludo.” Respondeu numa voz calma e controlada “Estás ao pé da tua mãe?”

“Sim, mas vou para o quintal, se quiseres.”

“Sim, é melhor. Ou então posso ligar noutra altura…”

“Não, nem penses. Já me estou a afastar. A Lisa também está aqui…”

“Olha que bom. Presumo que já te tenham dito alguma coisa.”

“Já, pai. O suficiente para neste momento a mãe não ser a minha pessoa favorita.”

“Espero que não te tenham contado mesmo tudo…”

“Não, omitiram as partes gráficas.”

Ficaram em silêncio, sem saber o que dizer um ao outro.

“Pai, depois de ouvir a história percebo-te, mas não achas que foste um bocadinho precipitado?”

“Se a tua mãe entrasse em casa com o sorriso que lhe ouvi na voz quando ligou a primeira vez, a esta hora eu estava na prisão e tu estavas órfã de mãe. E como não a podia matar, até porque nunca te privaria, a ti e ao teu irmão, dela, matei-a em mim. Para mim ela morreu. Quando falarmos não quero que a menciones e, se queres que continuemos a falar, pensa bem o que dizes de mim. Não só ela está morta para mim, eu quero estar morto para ela.”

“Vais pedir o divórcio?”

“Eu? Ser traído e ainda perder metade do que passei uma vida a trabalhar para conquistar? Não. Ela que trate disse daqui a um ano e que fique com o que eu deixei para trás. Entretanto deve arranjar outro estúpido qualquer que a queira sustentar.”

“Também não precisas de falar assim da mãe.”

“Não estou a falar mal, estou a constatar uma realidade plausível.”

“Fazes ideia de como ela está?”

“Acho que te disse algo há uns segundos atrás…”

“Sim, desculpa. Mas onde é que estás?”

“Se queres que te diga, nem eu sei bem… Mas de qualquer maneira não te vou dizer.”

“Não queres que a mãe descubra?”

“Não quero que tu e o teu irmão se preocupem. O Tiago já sabe?”

“Sabe que houve um problema grave, mas tem um exame amanhã, e eu não lhe disse mais nada para não lhe descarrilar o exame.”

“Fizeste bem. Estava para lhe ligar a seguir, mas assim vou deixá-lo em paz. Quando falares com ele, diz que lhe ligo na terça-feira.”

“OK. Eu digo.”

“Olha, eu acabei de chegar, ainda nem me instalei e estou cansado. Já sabes que estou bem. Quando precisares de alguma coisa, seja o que for, seja a que horas, liga. Estou aqui para ti.”

“Eu sei, pai.” respondeu Patricia com a voz embargada. “Vai descansar então. Falamos depois.”

“Amo-te, filha”

“E eu a ti, pai.”


quinta-feira, 14 de novembro de 2024




Há um espelho da realidade
Nele descobres a verdade
De quem és!

As palavras ditas são nada
Mas cortam como o fio
De uma navalha afiada.

Nem tudo o que reluz é ouro!

Sentimentos vão e vêm,
Tentas continuar
E fingir que está tudo bem.

Traições veladas,
Promessas quebradas,
Mudanças que vão de 0 a 100

Cada um dorme na cama que faz
Não dá para voltar com o tempo atrás...

Está tudo dito e feito,
E o que é que restou
Do que foi perfeito?

Verdades veladas,
Cobertas por dor,
Que secam qualquer fonte de amor...

Nem tudo o que reluz é ouro
A Alma é um tesouro!

Vê,
A verdadeira felicidade
Está na realidade
A felicidade fugidia
Está na fantasia!

Consequências (XII de XLIII)



Patrícia acordou ao lado da mãe, na sua cama, depois de uma noite mal dormida. Apesar de quando chegou a sua mãe parecer abalada, mas de alguma maneira mais calma, uma breve conversa com Lisa pô-la ao corrente do estado dela e, como tal, achou prudente não fazer perguntas e simplesmente estar presente. A mãe estava exausta e foram ambas deitar-se, até porque a hora já ia adiantada, mas Patricia reparou que ela demorou horas até se deixar vencer pelo sono e passou a maior parte da noite a soluçar baixinho.

Levantou-se devagar para não a acordar, desceu à cozinha e pôs a máquina do café a aquecer, fez uma torrada e, quando se sentou à mesa, reparou nos molhos de chaves e na aliança.

Nada disto fazia qualquer sentido. Tinha estado em casa no fim-de semana anterior junto com o seu irmão, Tiago, e em momento algum parecia haver algum problema entre os seus pais. Antes pelo contrario, comportavam-se como namorados irritantes até ao ponto de o Tiago se voltar para eles e dizer “Eu dizia-vos para arranjarem um quarto, mas já têm um, por isso…” o que só provocou risos.

O seu pai, sempre presente para a família, tinha tomado uma atitude extrema. Porquê? Teria ele arranjado outra e simplesmente dado o salto? Não lhe parecia. O que é que ele queria dizer com “ir para o inferno”?

Nada disto parecia fazer sentido.

Estava a acabar de comer quando bateram à porta. Era Lisa.

“Bom dia. Como é que está a tua mãe?”

“Bom dia. Está lá em cima a dormir. Demorou eternidades a adormecer ontem e nem sei quando vai acordar.”

“Deixa-a dormir. Ela precisa. Ontem quando aqui cheguei estava num estado quase catatónico e sem nenhuma reação, completamente em choque.”

“Mas o que é que se passou?”

Lisa suspirou.

“Sabes, eu podia dizer-te, até porque também estive envolvida nisto tudo. E não sei se me vais ver com bons olhos depois de saberes tudo, mas não devo ser eu a dizer-te. Foi algo demasiado pessoal e intimo e eu não quero colocar palavras na boca da tua mãe.”

Patrícia olhou para ela tentando avaliar as palavras.

“Foi assim tão grave?”

“Foi. Mas vamos esperar que ela acorde e que te diga pelas palavras dela. O teu pai não te disse nada, não te ligou?”

“Liguei eu, ontem, quando vinha a caminho. Ele atendeu. Disse-me que estava no aeroporto de Frankfurt à espera de um voo de ligação.”

“Voo de ligação? Para onde?”

“Ele só me disse que ia para o inferno…”

Lisa abanou a cabeça.

“…e que tinha aceite uma promoção e foi e que a minha mãe foi a razão de ele aceitar a promoção. Isto não é o meu pai. Ele não faria isto do nada…”

Lisa manteve-se em silêncio sem saber o que dizer. Claro que lhe apetecia contar toda a verdade, mas sabia que não podia fazê-lo. Patrícia teria de ouvir da boca da própria mãe o que se tinha passado, e sabe Deus como reagiria.

Marie desceu as escadas, sentindo-se fraca e desorientada, segurando-se às paredes, entrou na cozinha e viu claramente nos olhos de Lisa e Patricia que a sua aparência devia espelhar o que sentia por dentro.

“Bom dia, mãe.” Disse Patricia enquanto notava o estado dela e se levantava para a amparar, ajudando-a a sentar-se à mesa. Marie tentava encontrar forças para falar, mas não conseguia, olhou simplesmente para Lisa que acenou a cabeça para ela com um sorriso de compreensão no rosto.

“O que é que queres comer?” perguntou Patrícia enquanto punha água a aquecer para um fazer um chá. Marie abanou a cabeça mas a filha não se ficou “Nem penses. Não quero saber de desculpas. Vais comer qualquer coisa, seja o que for. Umas torradas com manteiga?”

Marie, sabendo que não ia adiantar protestar, e nem se sentindo com forças para isso, acenou afirmativamente. Demorou o seu tempo a comer, uma vez que tinha de se forçar e quase não falaram. Depois foram apara a sala e sentaram-se. Marie sabia que tinha chegado a altura de falar, mas nem conseguia encarar a filha. Como é que lhe ia explicar isto?

“Mãe, o Tiago não pode vir hoje, porque tem um exame amanhã, mas assim que sair do exame arranca para cá.”

A mãe acenou. E o silêncio voltou. E foi Patrícia quem o quebrou, indo directa ao assunto.

“O que é que se passou?”

A sua mãe simplesmente desatou a chorar e Lisa foi de imediato para junto dela, abraçou-a e ficou assim com ela algum tempo, enquanto Patrícia simplesmente olhava e esperava por uma resposta. Finalmente a mãe olhou para ela, respirou fundo e começou a descrever tudo o que se tinha passado, desde que tinha dito a Alex acerca da festa, o que a festa era, a omissão dela e tudo o que se passou na festa.

Se a cara de Patrícia a principio parecia completamente atónita, a expressão foi substituída por choque quando a mãe lhe disse que tinha saído com outro homem e passado a noite com ele, embora sem entrar em detalhes.

“E o pai?” foi a única coisa que conseguiu perguntar.

Aí foi quando Lisa começou a falar e se Patrícia já estava chocada, pior ficou com a descrição que Lisa fez, apesar de todos os detalhes omitidos. As lágrimas já lhe escorriam pela cara e tinha a expressão mais zangada do mundo enquanto olhava para a sua mãe, que se encolhia ao olhar para ela e soluçava baixinho. Quando Lisa acabou, Marie continuou, dizendo-lhe o que se tinha passado até chegar a casa e descrevendo ambas as conversas que teve com Alex.

Quando acabou caiu um silêncio pesado. Patrícia manteve-se em silêncio olhando para a mãe com um ar ao mesmo tempo atónito e zangado. Ao fim do que parecia uma eternidade disse finalmente:

“Como é que foste capaz? O que é que te passou pela cabeça? O que é que achavas que ia acontecer? És louca? Precisas de ser internada?”

A mãe soltou um pranto aflitivo e levantou-se, saiu a correr da sala e refugiou-se no quarto, onde se enrolou na cama e se deixou ficar. As palavras da filha eram como uma confirmação final de que ela tinha estragado tudo.

Patricia ficou sentada, perdida em pensamentos. Foi Lisa quem quebrou o silêncio.

“Acho que já percebes porque é que não devia ser eu a dizer-te o que se passou.”

Patrícia simplesmente acenou.

“O Tiago vai-se passar! Não sei quanto tempo é que ele vai demorar até a perdoar, quando souber. Vai ser mau.”

Lisa assentiu.

“Patrícia, eu sei que estás chocada e tens todos os motivos para odiar a tua mãe pelo que ela fez. Acredita, percebo isso mais hoje do que ontem conseguiria.”

Patrícia olhou para ela, com um ar inquiridor, e ela continuou.

“Sabes, ontem quando aqui cheguei e vi como a tua mãe estava, além de te ligar, liguei ao meu marido e pedi-lhe para vir, trazer qualquer coisa para comermos e dar algum apoio, embora ele nunca se tivesse dado com a tua mãe. Mas graças a esta situação e à conversa que tivemos os três, houve muita coisa que foi posta numa perspectiva que nunca me tinha passado pela cabeça, nem a mim, nem à tua mãe. E a minha visão pessoal, pode dizer-se, que mudou bastante.”

Patrícia assentiu.

“Mas, precisamente porque hoje sou capaz de perceber os dois lados, peço-te que não julgues muito a tua mãe até perceberes as motivações dela. Mas não te estou a dizer para desculpares os actos. E se quiseres, posso ficar e falar contigo para que percebas. Não que aceites, mas que percebas. Ou então, se preferires, eu posso ir…”

“Não, fica. Preciso de tentar fazer sentido disto tudo.”

A verdade é que, para ela, naquele momento, nada fazia sentido.


quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Consequências (XI de LXIII)



Acordou a ser abanado suavemente. Abriu os olhos e um anjo loiro estava debruçado por cima de si. Entretanto os seus sentidos acabaram de despertar e o anjo loiro era apenas a assistente de bordo a acordá-lo, porque tinha de sair do avião. Tinham chegado.

Fez-lhe sinal que tinha compreendido, esticou-se, espreguiçou-se. Deixou-se ficar um momento quieto e depois lá se levantou, pegando na sua mala de cabine e dirigindo-se à saída, ainda estremunhado.

O cansaço tinha-o apanhado finalmente, e embalado no avião, dormiu quase desde a partida de Frankfurt. Foi completamente encadeado pelo brilho do sol assim que chegou à porta do avião. Felizmente vinha prevenido com uns óculos escuros, mas o bafo quente ao sair do ambiente controlado do avião deixou-o quase sem respiração.

À sua frente uma escada que descia do avião e um aeroporto que, pelos padrões que conhecia, mais parecia uma fiada de armazéns. A meio das escadas já não suportava o calor abrasador e tirou o casaco e a gravata, abrindo alguns botões da camisa. Mas podia sentir o suor a formar-se e a escorrer.

Ao chegar ao fundo das escadas começou a seguir os outros passageiros em direcção ao terminal próximo, quando foi abordado por um homem nos seus trintas, musculado, vestido de uma maneira militar e fortemente armado, embora não visse insígnias de qualquer país.

“Senhor Alexandre Alves?”

“Quem pergunta, se não se importa?”

“Sou o sargento Diaz e estou aqui para o escoltar.”

Atrás dele estavam mais quatro tipos igualmente imponentes e armados ao lado de um SUV com um aspecto pesado.

“Creio ainda ter de ir ao terminal…”

“Está tudo tratado, senhor.”

“E a minha bagagem?”

“Está tudo tratado, senhor” respondeu o sargento de forma robótica “Queira acompanhar-nos.”

Dirigiram-no ao SUV. Dois homens entraram para trás, dois para a frente e o sargento Diaz conduziu-o ao mais espaçoso banco do meio, que ocupou com ele.

“Sargento, pode explicar-me o que se passa?”

“Não foi informado?”

“Não. A minha vinda para aqui foi repentina e não sei realmente o que se passa.”

“Mas sabe que vinha para uma zona de conflito?”

“Sim, isso sabia”

“Bem, nós somos uma organização paramilitar que providencia segurança privada nestas zonas. Fazemos parte de um destacamento que faz a segurança da sua empresa. Eu estou pessoalmente responsável pela sua segurança. Peço desculpa se tudo isto lhe parece algo excessivo, garanto-lhe que não é.”

Alex ficou a olhar para o homem durante algum tempo.

“Sargento, se é o responsável pela minha segurança, vamos passar muito tempo, pelo menos próximos, não?” O sargento assentiu “Isso quer dizer que está, de alguma maneira, às minhas ordens.” O sargento assentiu de novo “Nesse caso, o meu nome é Alex. Não gosto de formalidades onde são desnecessárias, e aqui não o são de todo. Trate-me por Alex e informalmente. É uma ordem.” Disse com um pequeno sorriso, estendendo-lhe a mão.

O homem olhou para ele. Ficou sem saber bem o que fazer por um momento, mas depois estendeu a mão, apertando a mão de Alex.

“Miguel.” Disse simplesmente.

“América do Sul?”

“México. América central.”

“Prazer, Miguel.”

A viagem foi lenta e com paragens em barricadas, atrás de barricadas, A presença militar nas ruas não só era óbvia, como era esmagadora. Toda a cidade parecia pior do que qualquer gueto dos subúrbios de qualquer cidade onde ele já tivesse estado. A cada barreira o homem que ia à frente, ao lado do condutor, saia e ia conversar com um dos homens na barreira. Demoraram mais de duas horas a chegar aos arredores da cidade, onde começaram a apanhar estradas mais abertas. Mas mesmo nestas prosseguiam com extrema cautela.

Não houve conversas pelo caminho, excepto entre os homens, acerca do que iam vendo e registando. Todas as conversas eram informativas e eles estavam todos claramente em alerta.

“Alex, não se preocupe. Este carro é à prova de bala.” Assegurou-lhe o sargento.

“Bem, não estava preocupado até falares nisso.” pensou para si.


terça-feira, 12 de novembro de 2024

Consequências (X de XLIII)



Lisa ajudou Marie a despir-se e depois, apesar dos protestos conseguiu enfiá-la debaixo do chuveiro. Depois ajudou-a a vestir-se e desceu com ela. Fernando via um jogo de futebol na sala, mas desligou a televisão assim que desceram e acompanhou-as para a cozinha.

“Não vale a pena tirarmos louça, comemos directo das embalagens, só precisamos de uns talheres.” Disse ele.

Lisa acenou afirmativamente, concordando com ele, e sentaram-se à mesa. Lisa, sentindo Marie mais calma lá acabou por perguntar:

“Marie, o que é que se passou desde que falamos, de manhã?”

Marie ergueu a cabeça. Olhou para Lisa e Depois para o Fernando e baixou a cabeça.

“Podes dizer,” continuou Lisa “o Fernando não está aqui para te julgar. Todos sabemos…”

Marie acenou em como compreendia.

Começou a falar devagar, interrompendo algumas vezes quando as lágrimas lhe vinham aos olhos, mas acabou por contar tudo o que se tinha passado, ambas as conversas que teve com ele e acabou por apontar para as chaves e a aliança que ainda estavam num canto da mesa.

Quando ela acabou, ficaram todos em silêncio.

“Compreendo que ele estivesse zangado. Aliás, percebi que ele não estava bem, mas nunca pensei…”

Fernando suspirou e fez um sorriso irónico.

Lisa reparou e olhou para ele, surpreendida.

“O que foi?” perguntou-lhe.

“Desculpa, mas eu acho incrível que vocês não percebam.”

Marie levantou também a cabeça, olhando para ele tentando entender.

“O que é que queres dizer com isso?” perguntou Lisa.

“Vocês não percebem mesmo, pois não?”

Ambas ficaram a olhar para ele, admiradas, como se de repente ele possuísse a chave de um enigma indecifrável para elas.

“Porque é que não tentas elucidar-nos?” perguntou Lisa, num tom verdadeiramente curioso. De alguma maneira, de repente, sentiu que algo lhe escapava, não só na situação de Marie, mas pelo tom do seu marido, em muito mais que isso.

“Lisa, sabes que eu te amo…”

“Sei. Mesmo. E sabes que eu sinto o mesmo.”

“Sim, eu sei. Tenho a certeza disso. Mas já te perguntaste porque é que eu, na posição em que estou na sociedade, te deixo ir para a cama com outros homens?”

A pergunta apanhou-a desprevenida. Não que não tivesse pensado nisso antes, mas agora, confrontada, estava sem saber o que dizer.

“Porque também gostas de sentir a sensação de estar com outra mulher…”

“Achas que é por isso?”

“Porque te dá algum prazer saber que eu sou cobiçada por outros homens…”

“Bem, sinceramente, dá. Saber que és apreciada, mas és minha. Mas não propriamente no sentido de saber que vais para a cama com eles. Há homens assim, uma minoria, que até gostam de estar na mesma sala em que as mulheres estão com os amantes, mas achas que eu sou um deles?”

“Não, de todo.”

“Alguma vez te perguntei detalhes das tuas noites fora?”

“Agora que falas nisso nunca…”

“Achas que eu gosto que vás para a cama com outros homens?”

Lisa ficou a olhar para o marido, sem saber o que responder. Ele continuou:

“Sabes, nos somos animais, fruto da programação genética ao longo de incontáveis gerações. E a grande diferença dos Humanos para os outros mamíferos é o facto das nossas crias demorarem anos até se tornarem minimamente independentes. E isto criou uma dinâmica interessante na nossa espécie. Os homens e mulheres querem sexo, é verdade. É um imperativo para a sobrevivência da espécie.”

“E onde é que queres chegar com essa lição de biologia?” perguntou Lisa.

“Bem, para as mulheres o sexo pode levar a uma gravidez. Uma gravidez pode implicar longos meses de incapacidade, morte no parto, que era mais comum do que hoje em dia imaginamos, e anos a cuidar de uma cria. Portanto uma mulher precisa de um parceiro para cuidar de tudo o resto, para garantir sustento e protege-la a ela e à cria. E o que é que a mulher tem e que o macho quer? Sexo. As mulheres oferecem sexo em troca de segurança e intimidade.”

Elas olhavam para ele, tentando processar.

“Já um homem que quer uma determinada mulher, ou a toma pela força, o que não é uma forma muito viável hoje em dia, mas que foi comum ao longo de toda a nossa existência, ou consegue com ela uma relação fugaz, ou se quer uma relação longa, tem de oferecer presença, segurança e intimidade em troca do sexo. Tendo isto em conta, o que é que achas que é mais importante para a mulher e para o homem?”

“Bem, a intimidade…” Começou Lisa.

“Não.” interrompeu-a ele “Para o homem a intimidade é uma maneira de chegar ao sexo, para a mulher o sexo é um meio para chegar à intimidade.”

Elas continuavam a olhar para ele e ele continuou.

“Eu sei a vida que levo. O Stress, as horas, as viagens… Lisa, eu sei que embora providencie e tente dar-te tudo o que mereces, porque te quero dar tudo o que mereces não posso estar tão presente como desejaria. E não sou estupido. Mais cedo ou mais tarde alguém te daria essa atenção e tu ias arranjar um amante, envolver-te com ele emocionalmente e partir-me o coração.”

Lisa olhava para ele chocada. Como é que nunca tinham falado disto abertamente.

“Eu nunca te faria isso…” disse Lisa, com uma certeza absoluta.

“Nunca digas nunca. A possibilidade de acontecer é maior do que não acontecer. Quantos homens é que já deram em cima de ti nas minhas costas, coisas que nem achas importantes e nem me chegas a dizer? Por isso é que este nosso clube existe. Todos estamos no mesmo barco. Nenhum de nós consegue estar presente tanto quanto seria desejável. É fácil dizer que vocês já sabiam quando se casaram connosco, mas isso não elimina os riscos. E assim, vocês tem um escape. Vocês valorizam mais a intimidade que o acto sexual em si, e quando voltam depois de uma noite realizam sempre essa intimidade que sentem connosco em sexo, fruto da excitação que tiveram com outro.”

“Mas não me vais dizer que isto é tudo acerca de nós. Vocês também se divertem bastante…”

“Não vou negar, verdade, mas… Não achas que seria fácil para qualquer um de nós contratar uma prostituta de luxo e ter sexo pornográfico sem que vocês alguma vez soubessem do que passar por ver a nossa mulher a ir para a cama com outro homem?”

Ficaram ambas mudas a olhar para ele, sem saber o que pensar.

“A mulher do Pereira esteve muito perto de o trair. Felizmente ganhou algum bom senso a tempo e acabou por falar com ele. Perceberam que tinham um problema e acabaram por ser eles que fundaram este clube não oficial. Resolve-se o problema da monotonia, da falta de algo excitante e não há enganos… E o facto de haver um sorteio garante que não há ligações emocionais. Já reparaste que nenhum de nós se relaciona com nenhuma de vocês? Não há jantares de amigos entre o grupo todo… vocês encontram-se e vão divertir-se, nós encontramo-nos e fazemos o mesmo. Claro, se nos cruzarmos num lado qualquer até podemos dar dois dedos de conversa trivial, mas nunca duradoura. Porque é que acham que isto é?”

“Isso quer dizer que nunca gostaste de ir às reuniões?”

“Não, e cada vez que vou peço aos santos todos que o meu numero saia antes do teu, porque cada vez que o teu numero sai primeiro, ver-te a caminhar em direcção a outro homem e dar-lhe um beijo arranca-me o coração do peito.”

Lisa olhava para ele com a súbita realização de tudo, assim como Marie. Mas Lisa, a ouvir o marido a falar assim pela primeira vez sentia a sua alma a quebrar.

“Claro que eu sei ao que vou. Ainda me lembro quando tu me propuseste a ideia a medo e mal sabias tu que eu estava ao corrente de tudo. Claro que aceitei. É o meu castigo por aquilo que não te consigo dar.”

Lisa, por esta altura, estava em choque, sem saber o que dizer.

“Eu sempre achei que não só não te importavas, como até gostavas. As minhas amigas diziam-me como tu tinhas sido com elas e sempre me disseram que foste um amante maravilhoso…”

“Voltando atrás, um homem está programado para tentar impregnar o maior número de fêmeas possível para garantir que os seus genes passam à geração seguinte. Sexo sem intimidade é oportunidades gratuitas, embora saibamos conscientemente que não vai ser por ali que os genes passarão. Mas o instinto toma conta e nos fazemos o que temos a fazer. É sexo gratuito. Mesmo que seja mau, é bom. Mas a minha vontade sempre era ter-te a ti ali, em vez de outra mulher qualquer.”

Lisa olhou para ele, completamente atónita, sem saber o que dizer. De repente percebeu que aquilo que lhe parecia um divertimento, uma fonte de excitação, um sair fora da rotina, era afinal algo que o seu marido dispensaria a uma simples palavra dela. A realização dos sentimentos dele ao longo dos anos pesaram de repente sobre ela.

“Agora, sabendo que eu estou por dentro e usufruo dos predicados do clube, mesmo assim não gosto, imaginem o que ele sentiu…” Marie olhava para ele de olhos quase esbugalhados “Aquilo que para ti era um simples escape, uma realização de um sentimento fugaz, uma noite de divertimento, para ele foi a traição e o desrespeito supremo. Pelo pouco que sei do Alex, ele sempre foi presente e atento à família, e a ti, não foi?”

Marie assentiu.

“E achaste que se a noite acabasse por ser divertida para ele, a coisa ia acabar por suavizar…”

Marie assentiu novamente.

“Mas imagina por um momento que tudo corria bem, ele estava aqui hoje, mas que fruto da noite ficava apaixonado pela Lisa e começava a afastar-se de ti…”

Marie tremeu.

“Sabes, isso seria o equivalente ao que tu fizeste. Não te parece porque dás valor a uma coisa diferente do que ele dá… Lisa, eu nunca te perguntei detalhes das tuas noites, mas hoje até é relevante. Podes explicar-me o que se passou com esta noite”

Lisa respirou fundo e depois foi contando tudo o que já contara a Marie. 

“Lisa, achas que algum homem que te desejasse te trataria assim? Alguém alguma vez te tratou assim?”

“Não. Foi uma noite extremamente desconfortável até ele me arrastar para o quarto e quando lá chegamos…” parou-se entes de falar demais.

“Podes dizer.” Incentivou-a o Fernando “Se eu tiver razão, aquilo que vais dizer só vai reforçar o que vou dizer a seguir.”

“Não houve um resquício de meiguice da parte dele, não houve um carinho. Ele arrancou-me roupa do corpo, ele foi animalesco.”

“E sabes porquê?”

Ela ficou em silêncio.

“Porque ele não te desejava. Aquilo que ele queria, provavelmente, era dar cabo de ti. Tu estavas ali e simbolizavas o fim. E essa foi a única maneira que ele teve de te castigar. Não foi por seres tu. Quem ali estivesse teria a mesma simbologia.”

Lisa olhou para o marido com um ar de entendimento. Sim, ele não a queria, não a desejava. 

Ouviram um carro a chegar e a conversa ficou por ali. Logo em seguida Patrícia entrou em casa. Com a chegada dela, Lisa e Fernando despediram-se de Marie, e Lisa prometeu-lhe que viria no dia a seguir e passaria o dia com ela. Foram no carro do marido, deixando o dela estacionado à porta de Marie. No dia seguinte o Fernando ia lá deixá-la e ela levaria o carro para casa.

Lisa mergulhou num silêncio pensativo quando entraram no carro. Praticamente não falaram na viagem. Chegaram a casa e tomaram um duche em conjunto. Deitaram-se, apagaram as luzes e, ao fim de uns minutos de silêncio Lisa disse.

“Acho que não quero voltar ao clube.”

“Achas?”

“Acho.”

“Sabes que eu disse aquilo tudo para ajudar a tua amiga a entender o que fez e o porquê de ele ter reagido assim. Não foi para te mandar alguma indirecta. Já vamos há anos e nunca houve problemas.”

Ela ficou em silêncio por algum tempo e depois disse:

“Sabes, amo-te demais para saber que de alguma maneira te estou a magoar. Tu és quem eu quero, quem eu desejo, quem eu quero ter ao meu lado quando o meu corpo se tornar feio e eu começar a parecer uma bruxa. Tu é o meu homem. E depois do que disseste hoje, jamais quero que outro homem me toque.”

Mesmo no escuro ela conseguia sentir o sorriso dele.

“E ai de ti que alguma vez toques noutra mulher!”

Ele desatou a rir e deu-lhe um beijo, ela beijou-o de volta, e de repente mergulhavam um no outro, se calhar da forma mais plena em anos…


segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Consequências (IX de XLIII)



O telefone tocou, despertando do torpor de sono em que se encontrava. Olhou para o visor. Respirou fundo.

“Sim Patricia?”

“Pai. O que é que se passa? Onde é que tu estás?”

Ela estava claramente a conduzir.

“Por ordem reversa, em Frankfurt e tens de falar com a tua mãe. Ela não te disse nada?”

“Ainda não falei com ela. Ligou-me uma amiga dela, a Lisa, do telefone dela e disse-me que tu a deixaste e que ela estava a ter um colapso…” Isto era inesperado “O que é que estás a fazer em Frankfurt? É verdade que a deixaste?”

“À espera de um voo de ligação e sim.”

“Mas para onde é que tu vais?”

“Para o inferno.”

“Estás a falar de quê?”

“Vou para um sítio que é um inferno na terra.”

“Mas porquê?”

“Porque é mais fácil que ficar em casa.” Chamaram da sua porta de embarque “Patrícia, tenho de ir, estão a chamar para o embarque. Quando chegar ao meu destino vou tentar falar contigo e com o teu irmão, mas não sei sequer se haverá sinal de telemóvel lá. Mas eu entro em contacto.”

“Pai, espera. Não me vais dizer o que se passou?”

“Foi simples, filha. Aceitei uma promoção e vim.”

“E a mãe?”

“Ela foi a razão de eu aceitar a promoção. Fala com ela. Eu falo contigo assim que puder.”

“Pai…”

“Tenho mesmo de ir, filhota. Um beijo grande para ti e dá um ao teu irmão. Prometo que ligo assim que puder.”

Desligou a chamada e o telemóvel, dirigindo-se ao embarque.


sexta-feira, 8 de novembro de 2024

80s GUITAR (My MOST IMPORTANT guitar to DATE) [Creality Falcon 2]


Pode parecer um video estranho para partilhar aqui, mas...

O tipo que construiu esta guitarra está a rifá-la. Todos os proveitos vão para ajudar as vítimas de Valência.
Se alguém quiser ajudar e arriscar-se a ganhar esta belezura...

Fica a sugestão.

Consequências (VIII de XLIII)


O telefone tocou…

E tocou…

Algo no fundo da sua mente lhe disse que poderia ser o Alex e ela finalmente mexeu-se, olhando para o telemóvel.

Lisa.

Há quanto tempo estava ali, ausente? Estava tudo escuro. Não se lembrava de ter anoitecido. Não sabia se estivera a dormir ou acordada. Não sentia nada, absolutamente nada. O seu corpo estava como a sua mente, completamente dormente.

O telemóvel calou-se, só para voltar a tocar em seguida, insistentemente. A muito custo mexeu-se, agarrou-o e atendeu, mas não disse nada.

“Até que enfim.” Ouviu a voz de Lisa no auscultador “Estava a começar a ficar preocupada. Então como é que estão as coisas?”

As palavras trouxeram uma torrente de recordações que lhe inundou a mente e a assoberbou outra vez. Lisa estranhou o silêncio. Verificou se a chamada tinha caído, mas não lhe parecia.

“Marie, estás aí?”

Finalmente algo primário emergiu de dentro de Marie que soltou um grito de dor absolutamente primitivo e caiu em seguida num pranto que assustou Lisa.

”Marie?” Chamou Lisa assustada “O que é que se passou? Marie…”

Estava incapaz de falar, de reagir, de pensar. Na sua cabeça a conversa que tinha tido com Alex continuava a correr num circulo continuo sem resolução. Apenas o seu pranto persistia.

“Marie, estou a caminho.”

Meia hora depois Lisa batia insistentemente à porta e chamava:

“Marie, sou eu, abre a porta. Abre a porta por favor”

Tentou ligar novamente e ouvia o telefone a tocar dentro de casa mas ninguém atendia. “Meu Deus, o que é que aconteceu? Será que o Alex se passou?”

Lembrou-se do olhar que ele tinha quando foi ao encontro dele no meio daquela maldita sala e alarmou-se ainda mais. Pensou em todo o comportamento dele, durante a noite. Mas o Alex nunca faria algo a Marie… Ou faria? Ao longo da noite a sua atitude foi sempre, no mínimo inquietante. Estava prestes a chamar a policia quando a porta abriu com um simples clique.

Empurrou a porta devagar, receosa da escuridão que reinava.

“Marie?” perguntou. Encheu-se de coragem avançou, encontrando um interruptor e vendo que não estava ninguém, avançou e quando olhou para a sala viu Marie sentada no sofá, pálida, tremula, com uma expressão de dor. Ainda estava vestida com a roupa do dia anterior.

Largou a sua mala no chão atabalhoadamente e foi ter com ela, sentou-se ao seu lado, abraçou-a e perguntou.

“O que se passou?”

Marie respirava em fôlegos curtos e ansiosos, com soluços à mistura e finalmente lá respondeu:

“Ele foi-se embora. Deixou-me. Diz que nunca mais me quer ver na vida.”

“Foi-se embora? Para onde?”

“Não sei. Estava no aeroporto…”

Lisa recusava-se a acreditar.

“Como?”

“Disse-me que aceitou uma posição num sítio para onde ninguém queria ir, aceitou a promoção e estavam tão necessitados de alguém lá que lhe arranjaram voo umas horas depois.

Lisa acenou.

“Já comeste alguma coisa?”

“Não quero”

Lisa levantou-se dirigiu-se à cozinha, pôs água a aquecer para fazer um chá e ligou a máquina do café para si.

Procurou pêlos armários da cozinha e encontrou as saquetas de vários chás. Tirou uma de Camomila. Enquanto esperava que a água aquecesse ligou ao marido.

“Fernando, desculpa estar a incomodar-te, mas… podias vir ter comigo e trazeres alguma coisa para jantarmos? Mas qualquer coisa mesmo muito leve. Uma canja ou um caldo de legumes… Eu, tu e a mulher do Alex… Sim, esse Alex…. Não ele não está e é esse o problema… basta seguires o GPS para onde está o meu telemóvel… Sim para nós podes trazer o que quiseres… Tu sabes o que eu gosto… Eu sabia que podia contar contigo… Já vais perceber quando cá chegares” e desligou.

Procurou novamente pêlos armários da cozinha e encontrou uma chávena e um pires, preparou o chá e tirou um café para si e levou o café para a sala. Sentou-se ao lado de Marie colocando o chá á sua frente, na mesa de apoio.

“Bebe. Precisas de te acalmar. Estás em choque.”

Ela reagiu, e agarrou na chávena, e começou a beberricar, espaçadamente.

Ao fim de algum tempo o telemóvel de Lisa tocou. Ela atendeu.

“Sim é mesmo essa porta. Eu vou abrir, escusas de bater”

Levantou-se e foi à porta, abrindo-a e deixando Fernando entrar. Fernando perguntou onde era a cozinha e foi para lá, levado por Lisa, para deixar os sacos com a comida. De caminho Viu Marie sentada na sala e percebeu que algo de grave se tinha passado. 

Lisa voltou à sala.

“Marie, o meu marido trouxe comida, tens ali uma canja. Sei que não queres comer, mas tens de te alimentar. Já falaste com mais alguém?” Ela abanou a cabeça negativamente “E os teus filhos?” novo abanar de cabeça.

Lisa agarrou no telemóvel de Maria e procurou o numero da filha. Ligou.

“Oi mãe, estava mesmo a pensar em ti…”

“Oi Patrícia. Não é a tua mãe. Não sei se te lembras de mim, sou a Lisa, uma amiga dela…”

“Passou-se alguma coisa com a minha mãe?” Perguntou a rapariga preocupada. “E o meu pai?”

“Patrícia, passou-se sim. O teu pai deixou a tua mãe e ela está à beira de um esgotamento.”

“O meu pai o quê? Deixou-a? Porquê?”

“É complicado falar disso agora. Não acho que deva ser eu a dizer-te e a tua mãe não está em condições de falar. Mas estes são os factos e acho que ela vai precisar de ajuda, de ti e do teu irmão.”

Patrícia ficou um pouco em silêncio. Depois disse:

“Vou avisar o meu irmão e arrancar para aí agora. Só devo chegar perto da meia noite. Podes ficar com ela até eu chegar?”

“Não te preocupes e não venhas com pressa. Se for preciso eu passo aqui a noite com ela.”

Desligaram a chamada e Lisa esticou a mão para Marie.

“Anda. Tens de sair de dentro dessas roupas e tomar um banho. Depois vamos comer. Importas-te que o Fernando acenda a televisão enquanto tratamos de ti?”

“Claro que não.” Respondeu Marie debilmente enquanto se levantava com esforço. Lisa fê-la ir à frente enquanto subiam as escadas para o quarto.