quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Lilith - XV - Maldição

Uma e quarenta e seis da manhã

Fiquei a olhar um pouco ainda para o texto, relacionando-o com o que já sabia antes. Já tinha lido referências a ele mas nunca o tinha lido completo.

– Esta és tu?

– Sim. De uma forma algo distorcida, mas sim. Afinal isso foi escrito mil e quinhentos anos depois e quem conta um conto…

– …aumenta um ponto. Mas o que é que há aqui de real?

– Para já digo-te o que não há. Não esperes que eu crie asas e voe daqui para fora.

– Para te ser franco não me surpreenderia.

– Mas olha, a mim sim. E não esperes ver flores a nascer onde piso, nem árvores onde me sento.

– Bem, isso já não esperava. Esta casa e a de praia já seriam uma selva…

Ela riu com gosto.

– Pois – disse –, era complicado, sem dúvida. Mas este texto conta a história da fundação da civilização.

– Da Suméria?

– Sim, e basicamente de todas. Diz-me, o que achas que formou a primeira civilização?

– Penso que a descoberta da agricultura, não?

– Exacto. As pessoas deixaram de ser nómadas e seguiram as migrações da caça porque descobriram outro meio de subsistência. Mas a própria agricultura obrigava-os a permanecer no mesmo sítio durante muito tempo.

– Tem lógica.

– Logo, criaram comunidades que com o tempo foram crescendo até se tornarem culturas e mais tarde civilizações.

– Percebo. E dizes que este texto descreve esses primórdios?

– Sim. Sabes, Yahvé preparou-nos, a mim e a Adão, para uma série de coisas. Ensinou-nos a agricultura de modo a que a pudéssemos fomentar mais tarde e sermos o início da dita civilização. Quando saí do Éden trazia comigo esses conhecimentos. Desterrei-me para as margens do Mar Vermelho, para a zona que hoje é conhecida como Harrat al Birk, na Arábia Saudita. É uma zona vulcânica bastante fértil. Comecei a aplicar o que sabia e criei um pomar, jardins, cultivei as terras com cereais. Era algo de pequeno, mas o suficiente para me sustentar.

– Não me digas, os jardins que criaste ao andar e as árvores de quando te sentavas.

– Exacto. Repara, nunca ninguém o tinha feito, logo eu ganhei uma aura mística. Foram passando clãs por ali, e como havia abundância e comida foram ficando à minha volta. Fui-lhes ensinando o que sabia, e dava-lhes comida em troca do trabalho. Os pomares cresceram, bem como as terras cultivadas de cereais. E, lógico, onde há abundância, a população também.

– Mas pelo que percebo, logo a seguir vieram os problemas.

– Claro. Havia abundância da nossa parte, e havia a cobiça de clãs vizinhos que não queriam trabalhar a terra mas que invejavam o que tínhamos. Começámos a ser rodeados, cercados mesmo e acabou por haver uma guerra.

– Com o tal príncipe enamorado?

– Não, isso só fica mesmo bem na lenda. Não seria uma lenda sem uma história trágica de amor para os poetas contarem.

– É verdade! – Ri-me eu.

Não, a guerra teve mesmo objectivos mais mundanos. Queriam simplesmente apoderar-se da nossa prosperidade. No entanto, fomos tentando manter o que tínhamos construído, e conseguimos durante algum tempo. Mas o que não é para ser não é mesmo, e houve uma erupção vulcânica que acabou com o nosso sonho ali. Acabei por levar os que me quiseram seguir numa busca por um sítio pacífico onde nos pudéssemos fixar e construir algo. Acabámos por ficar onde é agora Bagdade e aí sim, fundámos qualquer coisa maior. Começámos a construir em pedra, criámos muralhas de protecção, porque não queríamos voltar a passar pala mesma situação, começámos a agregar uma cultura. Como havia prosperidade e tempo fizemos evoluir a tecelagem, a pintura, a música, desenvolvemos os transportes, a irrigação dos campos. Fundámos a primeira cidade. Para não corrermos o risco de começarmos a ser atacados e não termos defesas, formámos o primeiro exército com fins meramente defensivos. E uma vez que começou a haver gente ocupada permanentemente em coisas que não eram directamente produtivas, vimo-nos obrigados a substituir o sistema de troca directa de bens por outro, o que levou à criação da moeda corrente.

– E criaste, assim, a primeira civilização.

– Exacto. E acredita, é um passo que depois de ser dado não volta atrás.

– Mas diz-me, o resto da história, a envolvência com o tal príncipe tem algum fundamento?

– Se tivesse – disse ela com um sorriso maroto –, por esta altura já estarias morto, não achas?

– É verdade! – Disse eu, sentindo ainda nos lábios a suavidade do toque dos dela.

– Em relação a isso, lembras-te de na lenda hebraica Deus me ter amaldiçoado?

– Sim, lembro-me da maldição. Cem dos teus filhos morreriam todos os dias.

– Pois, mas acontece que a maldição nunca existiu e eu nunca os tive. E consegues adivinhar o porquê?

Pensei um pouco e olhei-a. Tentei pôr-me no seu lugar. E num rasgo um pensamento veio-me à ideia.

– Porque a tua maldição é outra? – Perguntei.

– Sim – respondeu ela, com o olhar a tornar-se distante de repente. – E nem é uma maldição, é apenas uma consequência.

– A dor de veres morrer tudo aquilo que amas?

Ela olhou para mim, talvez surpreendida com a minha pergunta, como se o facto de eu o dizer alto tivesse implicações maiores.

Limitou-se a acenar afirmativamente com a cabeça, enquanto os seus olhos ficavam turvos com as lágrimas que tentava conter.

– Achas que não podes amar!

– Sei que não posso.

– Mas não consegues desistir de o fazer.

– E é essa a minha maldição.

Olhei-a. Não como pretensa deusa, criatura mitológica, ou fonte de mitos, como criadora da civilização, como ser imortal, mas apenas e tão só como mulher. Como uma mulher que se revelava. Cheia de contradições, como qualquer outra. Cheia de desejos e vontades, como qualquer outra. Com a segurança que apenas a sua longevidade podia dar. Dorida, como quem já tinha tido tudo e tudo tinha perdido. E com a força que apenas passar por essa dor consegue dar.

Levantei-me, e pela primeira vez aproximei-me dela por minha vontade. Coloquei a mão na sua face, toquei nas suas lágrimas. Sentei-me ao seu lado e envolvi-a. Ela cerrou os olhos e virou a cara, com uma expressão de dor.

Eu senti-a. Era uma sensação estranha. Continuava a não sentir qualquer desejo por ela. Nenhuma paixão. A mulher mais bela que já vira e não me fazia ferver o sangue. Mas algo em mim, no fundo de mim, me fazia aproximar dela.

E, sem eu me dar conta, a minha mão puxou a sua face para a minha, os meus lábios procuraram os seus, as nossas bocas entreabriram-se, as nossas línguas tocaram-se e mergulhámos no beijo mais carregado de sensações e sentimentos que jamais tivera. E à medida que as nossas bocas se exploravam, os meus braços envolveram-na e apertei-a contra mim.

Ainda que apenas por um momento, um momento fugaz, algo indefinível e que escapa, tive a certeza absoluta de que fomos um só. Desapaixonadamente.

Lilith - XIV - A lenda Suméria

Uma e vinte e quatro da manhã.

Da varanda do meu quarto conseguia ver a cidade a estender-se em direcção ao rio. Tinha chovido há pouco e havia um brilho no ar, quase surreal, fruto da humidade no ar e do reflexo das luzes no alcatrão molhado.

Fumava o meu cigarro e pensava na cadeia de acasos e na improbabilidade da mesma. Ria-me por dentro. Sabia perfeitamente que ela me arrastara para Lisboa para isto, para destruir em mim a imagem daquela mulher que tantas sequelas deixara. Era curioso como num espaço tão curto de tempo ela passara a ser apenas um caso caricato, por oposição a uma história de vida. Lilith operara em mim uma catarse.

No entanto, não deixava de ver com estranheza as coincidências e estas não paravam de vir ao meu pensamento, criando-me inquietação e desassossego. Com quem é que eu estava a lidar afinal?

Ela chegou à varanda, tirou-me o cigarro da mão e deu uma passa longa e devolveu-o em seguida. Expirou lentamente o fumo e disse:

– Um cêntimo pelos teus pensamentos.

– Não valem assim tanto…

– Então oferece-mos…

– Pensava simplesmente em quem és tu na realidade. Se és quem afirmas, se não és. E ainda que o sejas, como é que te posso distinguir de entre as lendas à tua volta?

– Podes fazê-lo conhecendo as lendas primeiro e depois ouvindo‑me para teres a minha versão dos factos. No fim escolhes em quem acreditar. Sabes, a lenda bíblica não é a mais antiga escrita sobre mim.

– Não?

– Não. É talvez a que chegue mais perto em termos concretos, mas não é a mais antiga. Anda comigo.

Segui-a até à sala onde estava o portátil. Ela abriu-o, fez uma pesquisa rápida na internet e virou o portátil para mim.

– Aqui tens. És fluente em inglês, por isso não vais ter problemas em ler isto.

– E isto é?

– A mais antiga lenda sobre mim. O mito sumério.

Sem mais, dediquei-me a ler.

 

«Antes de as estrelas terem nascido

Antes de as pessoas terem construído grandes cidades

A grande montanha de Atlen (paraíso) tremeu

E sangrou sangue ígneo

E deu à luz Lilitu

 

A terra em toda a volta ardeu

Muitos animais e pessoas morreram

Quando Lilitu abriu os olhos

Viu as cinzas do seu nascimento

E chorou lágrimas como chuva

 

As lágrimas de Lilitu tornaram-se rios e ribeiros

Flores cresciam onde Lilitu andava

Árvores cresciam onde Lilitu se sentava

As cinzas tornaram-se solo fértil

E um pomar tornou-se a sua casa

 

No pomar de Lilitu muitos animais são

Pessoas vieram viver no paraíso

Lilitu deu-lhes grão e ensinou-os a semear e colher

Lilitu fez pão e cerveja

As pessoas rejubilaram, comeram e beberam

 

Um dia um grande príncipe chegou à terra de Atlen

Ele viu Lilitu e galanteou-a

Mas Lilitu rejeitou-o e desprezou-o

O grande príncipe ficou muito irado

Ele emboscou dois leões e matou-os

 

Lilitu chorou pelos leões

Embalou as cabeças deles nos seus braços

Os leões despertaram às lágrimas dela

Lamberam as lágrimas da sua face e ficaram fortes

Ficaram amigos leais de Lilitu

 

O grande príncipe viu isto

E novamente a galanteou

Mas ela transformou-se num pássaro

E voou para longe dele

Irado, o príncipe começou a caçar pássaros

 

Lilitu viu isto e ficou perturbada

Para ofender o príncipe ela cuspiu-lhe

E acasalou com uma serpente

Lilitu deu à luz muito depressa

A criança dela era como nenhuma outra

 

A criança tinha seis braços

A criança tinha o rabo de uma serpente

A criança era muito forte

Lilitu chamou à criança um Marilitu

O Marilitu atacou o grande príncipe

 

O grande príncipe e o Marilitu lutaram

Lutaram dia e noite

Noite após noite

E dia após dia

Mas nenhum dos dois podia ganhar a luta

 

Lilitu viu isto e acasalou novamente

Outro Marilitu nasceu

E outro e outro

Duzentos e dezasseis nasceram

Temeroso o grande príncipe fugiu

 

As pessoas do pomar rejubilaram

Os Marilitus cultivaram a terra

Os Marilitus protegeram as pessoas

Mas o grande príncipe jurou vingança

E amaldiçoou a montanha Atlen e sua terra

 

Atlen ficou irado com esta maldição

A montanha e a terra tremeram

Atlen tremeu e sangrou e chorou

Seu sangue ígneo fez fogos

E suas lágrimas fizeram inundações

 

Lilitu amedrontada transformou-se num grande pássaro

Agarrou as pessoas nos pés

Levou os animais nas suas costas

Os Marilitus e os leões também levaram pessoas

Juntos fugiram da terra de Atlen

 

Lilitu foi a ocidente e a oriente

Lilitu foi a norte e a sul

Finalmente ela veio para terra seca

As pessoas agradeceram grandemente a Lilitu

As pessoas construíram estátuas em honra dela

 

Lilitu chorou sua casa perdida

As lágrimas dela formaram dois rios

Os rios uniram-se

E fluíram para o oceano

As pessoas cultivaram grão nas margens do rio

 

As pessoas cultivaram grandes pomares

Eles construíram edifícios e torres de pedra

As pessoas cresceram saudáveis e a terra rica

Comerciantes vieram de sítios distantes

Notícias da riqueza da terra cresceram

 

O grande príncipe ouviu falar da terra

Ele enviou os seus arautos para indagar de sua senhora

Mas Lilitu alimentou seus leões com os arautos

O grande príncipe enviou um exército

Mas os Marilitus destruíram o exército dele

 

Finalmente o grande príncipe foi

Quando ele viu os pomares lindos

Quando ele viu os Marilitus de seis braços

O grande príncipe soube que a senhora era Lilitu

Temeroso disfarçou-se de mulher

 

O grande príncipe foi ao templo de Lilitu

O seu disfarce enganou as pessoas

Mas os leões conheciam o seu cheiro

Os dois leões advertiram Lilitu

E ela preparou uma armadilha


Lilitu chamou trinta e seis homens jovens

Encheu uma sala com trinta e seis travessas prateadas

Ordenou a morte de trinta e seis animais

E quando estava pronta

Convidou as pessoas ao banquete

 

Pessoas vieram de toda a terra

O grande príncipe também veio

O grande príncipe chegou disfarçado

Mas Lilitu conheceu-o

E deu-lhe as boas-vindas como um convidado honrado

 

O grande príncipe aceitou a hospitalidade dela

Sentou-se diante de todas as pessoas

Os trinta e seis homens jovens foram chamados

«Por favor escolha um homem», Lilitu ordenou

Não querendo ser rude o grande príncipe escolheu um

 

Lilitu pediu ao grande príncipe para sentar ao lado do jovem

As travessas prateadas foram trazidas

As pessoas festejaram na carne dos trinta e seis animais

Grandes presentes foram trazidos

Lilitu deu-os ao grande príncipe

 

Confundido o grande príncipe aceitou

Então o banquete acabou finalmente

Curioso, o grande príncipe questionou Lilitu

«Você dá sempre tais grandiosos presentes a estranhos?»

«Só no seu casamento», Lilitu respondeu

 

Ao perceber o que tinha acontecido o grande príncipe ficou irado

Tirou o disfarce

Empunhou a espada e o punhal

«Por que me fez casar com este homem?» perguntou

«Para que nunca possa casar-se comigo», respondeu Lilitu

 

Enfurecido o grande príncipe atacou Lilitu

Os dois lutaram incansavelmente pois Lilitu era muito forte

Sempre que o príncipe se tornava mais ousado

Lilitu transformava-se num pássaro

O grande príncipe caiu ao chão e chorou em desespero

 

O grande príncipe professou o seu amor por ela

Prometeu que nunca a deixaria

Preparou-se para cortar a sua própria garganta

Finalmente Lilitu cansou-se deste jogo

Sentia piedade pelo grande príncipe

 

«Eu conceder-lhe-ei um beijo», declarou Lilitu

Desesperado o grande príncipe aceitou

E no momento em que o beijo foi dado

O corpo dele inundou-se de vida e depois morte

Tão grande foi o prazer de um beijo que ele morreu

 

Lilitu chorou o grande príncipe

Mas o grande príncipe permaneceu morto

Lilitu entristecida soube que nunca poderia amar

Nenhum homem mortal poderia provar o beijo dela e viver

As suas lágrimas trouxeram vida, mas o seu beijo trouxe morte.»

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Lilith - XIII - Diana

Cinco e meia da tarde.

Estacionava o carro em frente a casa. Parámos na entrada do prédio para eu recolher o correio e subimos em seguida as escadas até ao primeiro andar e entrámos. A casa tinha um leve cheiro a mofo por estar fechada há tanto tempo. A última vez que cá tinha estado tinha sido entrada por saída, quando vim buscar o portátil. Pousei o correio na mesa da sala e apressei-me a ir abrindo as janelas, à medida que lhe mostrava a casa, e deixando entrar ar e luz.

De seguida fui ver o correio, cheio da publicidade e das contas de sempre, com um ou outro ocasional convite misturado, que ainda se davam ao trabalho de me mandar. Fui descartando envelopes um a um. Lilith estava sentada no sofá ao meu lado enquanto fazia isso. Quando dispensei uma carta com um convite, ela pediu-me:

– Posso ver isso?

– Podes, mas não é interessante.

– É o quê?

– É um convite para uma festa qualquer.

Ela abriu o envelope.

– Uma exposição de pintura. Parece interessante…

– Achas? Para mim nunca é…

– Porquê?

– Porque estão lá sempre as mesmas pessoas, a pseudo-elite intelectual com as suas grandes ideias e os seus julgamentos do trabalho dos outros, bem como a gentinha do jet-set que não tem talento para nada a não ser para aparecer.

– Não me digas que nunca há gente interessante?

– Claro que não digo. Há pessoas interessantes. Mas acabas por passar muito mais tempo a falar com os outros…

– Devíamos ir.

Olhei para ela de soslaio.

– Porquê?

– Porque era giro e ficou claro que não gostas de discotecas e afins e eu quero ver gente.

– Mas temos de ir a rigor e tudo.

– Sim, mas eu posso levar qualquer coisa da tua ex. Ainda aí tens roupas dela, não?

– Tenho, ela não levou nada.

– Então… Vais ver, arranjamo-nos. Vais-te alinhar, que estás uma desgraça, vais tomar um banho, fazer a barba, pôr um bom after shave. Eu vou vasculhar os teus armários, vou-te escolher uma roupinha catita para quando saíres do banho e ponho na tua cama. E entretanto tenho a certeza de que arranjo qualquer coisa para mim também. Calculo que não tenhas cá nada que se coma…

– Pois, por acaso não tenho.

– Então vá, vamo-nos arrumar e vamos jantar fora com tempo. Anda vai…

E despachou-me. Não adiantava argumentar fosse o que fosse e eu sabia-o.

Levei roupa interior comigo para a casa de banho do meu quarto, onde tomei um duche longo e bem relaxante, por sinal. Fiz a barba com calma, com atenção, dando-me importância, coisa que raramente fazia. Penteei-me com cuidado. Pensava «Se vou sair com esta mulher é melhor caprichar um bocadinho!».

Quando saí da casa de banho tinha em cima da cama a roupa que ela tinha escolhido para mim. Um fato preto liso com um casaco de corte cintado, uma camisa branca com riscas verticais espaçadas em cinzento claro e uns sapatos. Vesti-me com calma. Quando acabei dei mais um toque no cabelo. Finalmente saí para a sala, já vestido. Ela aguardava-me.

Quando a vi fiquei parado, literalmente parado. Tinha apanhado o cabelo deixando apenas um longo caracol a desenrolar-se de cada lado da face, abaixo do ombro, emoldurando-lhe o rosto, mas realçando o pescoço comprido e elegante. Usava um vestido que só me lembrava de ter visto uma vez a Diana, muito decotado, a realçar‑lhe o busto, num cetim púrpura que caía naturalmente ao longo das curvas do seu corpo dando-lhe um ar imperial e ao mesmo tempo suave. Os realces da luz no tecido aumentavam ainda mais a sensação de fluidez e de que ela flutuava em vez de andar. Nos pés uns sapatos de estilo italiano, clássicos, mas que alimentavam na perfeição a ilusão de que as suas pernas seriam mais compridas, aumentando o efeito de elegância. Pela primeira vez via-a maquilhada, com um rímel preto e uma sombra castanha que fazia com que os seus olhos azuis, já de si ofuscantes, parecessem atravessar tudo o que tocavam. Nos lábios o batom castanho brilhante realçava o desenho tornando-os ainda mais carnudos. Estava linda, bela, e quase não me apetecia sair só para ela não passar a vergonha de ser vista comigo.

Ela caminhou para mim, alinhou-me o colarinho da camisa e desabotoou-lhe mais um botão.

– Assim ficas melhor, mais desportivo – disse. – Vamos então?

Encolhi os ombros.

– Vamos.

Jantámos num restaurante perto de onde era a galeria de arte. Já passava das dez e meia quando finalmente nos dirigimos para lá. Mostrámos o convite à entrada. Mal entrámos, ela sussurrou-me ao ouvido:

– Vou retocar a maquilhagem. – E afastou-se rapidamente deixando-me sozinho num sítio onde eu não queria estar. Olhei em volta. Localizei o bar, dirigi-me lá, sentei-me num banco alto, pedi um whisky de malte. Deixei-me ficar virado para o bar, sem vontade de ver ninguém ou de ser incomodado. Apenas queria fazer o meu tempo ali. Lilith que se divertisse, se quisesse.

– Olha só o que arrastaram da rua para aqui…

Uma voz que eu já não ouvia há 10 anos. Continuava carregada com o mesmo desprezo que tinha na fita gravada. Continuava inconfundível. E se a minha noite já não mostrava grandes perspectivas, acabara de ser pura e simplesmente arruinada. Bebi o whisky de um trago. Precisava da anestesia só para me virar na cadeira. Voltei-me.

– Olá, Diana – disse mesmo antes de a ver, enquanto me voltava.

E depois vi, e os dez anos volvidos apenas pareciam ter aumentado nela qualquer coisa de mau, continuava a ver desprezo nos seus olhos. Era ainda uma mulher bonita, mas a sua pele acusava os anos passados. Tinha o cabelo pintado de loiro platinado, o que não lhe ficava mal, uma vez que tinha a pele clara, mas preferia de longe vê-la com o seu castanho cobre natural. Estava mais magra do que eu me lembrava dela. Usava um vestido justo muito trabalhado em tons de bordeau e preto, comprido, quase até aos pés.

A acompanhá-la estava alguém que eu não fazia ideia de quem era. Um homem elegante, de meia-idade, alto e com o rosto de traços vincadamente masculinos e simétricos.

– Então? Resolveste sair de debaixo da pedra onde tens estado enfiado?

– Não, por acaso, não. Fui arrastado.

– Arrastado? Mas que bem. Vejo que não mudaste nada.

– Acho que mudei o suficiente. Já tu estás, obviamente, quase na mesma.

– Quase?

– Sim, quase.

– Porquê quase?

– Porque estás mais velha.

– Também não estás mais novo…

– Pois não, mas ao contrário de ti, isso não me preocupa – disse com um sorriso.

Era curioso o que sentia neste primeiro frente a frente ao fim de todos estes anos. Sentia que finalmente conseguia encará-la e não digo que a desprezasse como ela o fazia a mim, mas sentia-me totalmente desprendido dela.

E eis que Lilith entra pela sala e caminha na minha direcção com a segurança habitual. É notório o efeito que ela tem em todos à medida que atravessa sem olhar para ninguém. Desviei os olhos de Diana e olhei-a. Ela sorriu.

Veio direita a mim, passou pela Diana e pelo seu acompanhante, encostou-se a mim, abraçando-me e disse:

– Tiveste saudades minhas?

– Muitas… – respondi.

Olhou-me com um olhar maroto.

– Ainda bem – disse, e dizendo inclinou-se para a frente beijando‑me com suavidade, ignorando e fazendo-me ignorar por completo tudo o que nos rodeava. Depois afastou-se um pouco ficando com a cara a centímetros da minha, os seus olhos nos meus, uma expressão de miúda que está prestes a fazer uma travessura e perguntou:

– Não me apresentas os teus amigos?

– Claro… – disse.

Ela virou-se para eles permitindo que eu fizesse as apresentações.

– Querida, esta é a Diana Almeida, a minha ex-mulher, e este senhor é o…

– Ricardo… – apressou-se ele cumprimentando-a. – Ricardo Gomes.

Virei-me para eles e apresentei-a.

– Esta é Lilith.

– Lilith? – Perguntou Diana – Nome interessante.

– É de origem hebraica.

– É judia, então?

– Pode dizer-se que sim, mas não propriamente. Creio ser mais um bocadinho de cada cultura que vou absorvendo.

– E o que é que uma jovem como você poderá ter a dizer do mundo?

– Muita coisa, sabe. A idade não se mede pela pele mas pelo que se viveu, não acha? – Não esperou pela resposta e virou-se para mim: – Querido, vamos dar uma volta por aí?

– Ainda estou a acabar a bebida, e já não via a Diana há dez anos. Não queres ir tu indo?

– Sozinha? Achas? Não, sozinha não! – E com isto lança um olhar ao Ricardo que foi de tal forma que quase podia jurar que os joelhos dele tremeram. – Ainda há para ai alguém mal intencionado…

– Linda, eu sei que davas conta dele, se houvesse.

– Mas não, amor. Sozinha… Já sei! Só se o Ricardo me acompanhar e assim ainda falavas um bocadinho com ela. Que dizes?

– Se o Ricardo não se importar…

– Claro que não me importo – disse Ricardo solícito, se calhar até demasiado solícito.

– Então vamos… – disse ela dando-lhe o braço. – Até já, amor. – E seguiram os dois pela galeria.

Ficamos a vê-los ir, eu e Diana, e vimo-los desaparecer por entre as pessoas que se juntavam com opiniões, de certeza esclarecidas, em frente aos quadros. Já eu estava sem qualquer curiosidade para os ver, muito menos para encontrar algumas pessoas com quem teria de manter conversa de circunstância.

Estava também sem perceber muito bem o que queria Lilith. Percebi que queria jogar de alguma maneira, e fui a jogo com ela, mas o objectivo escapava-me. Neste momento estava sozinho com a última pessoa no mundo com quem queria falar, e embora não me sentisse tão desconfortável como imaginava quando via mentalmente este encontro, a verdade é que ter uma conversa com ela era quase impossível.

Sentei-me novamente no banco alto, de costas para o bar, pedi outra bebida, e deixei-me estar mergulhado nas minhas considerações. Foi Diana quem quebrou o silêncio.

– Onde é que desencantaste esta miúda?

Miúda. Eis um termo giro para a definir.

– Bateu-me à porta no outro dia.

Ela riu.

– Caiu-te do céu?

– Bem se pode dizer que sim.

– Só mesmo tu… Mas não achas que ela é, sei lá, talvez um pouco nova para ti?

– Se eu te respondesse talvez ficasses surpreendida. Além disso, não és tu que gostas deles mais novos? Aliás, até estou surpreendido com o Ricardo. Que idade tem ele? Trinta e cinco? Quarenta? Não está já velho demais para ti? Ou já te sentes assim tão velha?

– Ora, o Ricardo é apenas um amigo…

– E ele sabe disso? Ou continuas com os velhos hábitos de ir dando umas quecas por fora?

– Porquê a pergunta? Chateia-te o que eu faço ou deixo de fazer?

– Não, de maneira nenhuma. Só queria perceber se mudaste. Mas as pessoas não mudam, não é? Só se adaptam.

Ela riu-se com uma gargalhada sonora.

– Pois não. Basta olhar para ti. Continuas tão profundo…

Era verdade. Ela não mudara e eu também não. Ela adaptara-se, depois do nosso divórcio, para tentar manter um nível de vida a que se habituara, e eu adaptei-me à minha solidão e reclusão. Tinha deixado de gostar de pessoas, tornara-me desconfiado e selectivo, usando sempre a Diana como medida para alguém que eu conhecesse. E apercebia-me agora que tinha errado. Cada pessoa era por si só, era um conjunto único de defeitos e virtudes, irrepetível, mesmo quando essa pessoa quer ser igual a alguém. Ao estabelecer pontes de comparação neguei inevitavelmente a hipótese a qualquer dessas pessoas de chegarem até mim. Só havia uma Diana, e essa estava à minha frente neste momento.

A percepção de tudo isto fez-me rir. Dei uma gargalhada com vontade. Acredito que ela pensasse que me ria em resposta a ela, mas não, ria porque me apercebi que passei dez anos da minha vida numa solidão auto-imposta sem qualquer motivo.

– Acho que não tanto como tu julgas… – acabei por responder. – Mas diz-me, quem é este Ricardo?

– Estás assim tão curioso?

– Um bocadinho. Sempre me apercebo o porquê de ele ser tão… «velho» para ti.

– É filho do dono de uma rede de agências imobiliárias, é formado em economia, tem dinheiro e como viste não é nada mal jeitoso…

– Tem cuidado, não vá aparecer por aí uma caçadora de homens qualquer que te roube o homem…

– Sabes que ainda tenho os meus talentos.

– Acredito que sim, mas não estás mesmo a ficar mais nova, e ao virar da esquina há sempre outra versão de ti, mais nova, com a pele mais suave e que tem mais talentos que tu. E não te esqueças que aquilo que queres há mais quem queira…

– Meu querido – disse ela com a voz carregada de ironia –, desde que ele me dê o que eu quero, o que é que me importa se ele tem mais uma ou duas ou uma dúzia de amantes por fora?

– Se fosse a ti importava-me. Há uma altura em que temos demais e começamos a descartar o que achamos supérfluo…

– E eu pareço-te supérflua?

– De onde eu estou, cada vez mais…

Ela acusou o toque. Viu que qualquer efeito que tivesse tido em mim no passado se tinha desvanecido e eu cheguei com agrado à mesma conclusão.

– E se fôssemos à procura dos nossos pares? – Disse ela desviando a conversa. Pousei o copo vazio e concordei.

– Vamos.

Fomos percorrendo a galeria, dando atenção a um ou outro quadro, sem nos determos por muito tempo à frente de nenhum. Fui encontrando caras conhecidas aqui e ali, que me iam cumprimentando e fazendo as exclamações e perguntas da praxe, «Há quanto tempo…», «O que é feito…», levando-me sempre às mesmas respostas vagas que procurava evitar. Ao fim de um bocado localizámos o par que procurávamos.

Estavam em frente a uma pintura e falavam acerca de algo. Lilith estava de braço dado com ele e atraía, como sempre, todas as atenções em volta, mas em especial as de Ricardo. Este olhava para ela directamente, numa tentativa clara de sedução, e fosse o que fosse que ela lhe dizia, bebia todas as palavras dela. Ela olhava-o directamente com aquele olhar magnético e falava-lhe com um sorriso. Era óbvio que ele estava completamente enfeitiçado por ela.

Via a expressão de Diana, a mulher segura que ela costumava ser, que brincava e seduzia quem queria a seu belo prazer, e que de repente se dava conta da sua própria fragilidade e via à sua frente a confirmação das minhas palavras. Eram notórios a ira e o ciúme nos seus olhos. Ela podia não dar grande importância ao Ricardo, mas dava-se a si própria. Sentia-se despeitada, traída. Era transparente nela, tanto como o era a maneira como tentava manter a compostura.

Pela primeira vez apercebi-me da fragilidade dela. Ela, que sempre tinha sido tão grande, era afinal tão oca que uma pequena coisa podia fazê-la ruir por dentro e dei comigo a pensar como foi possível dar-lhe tanta importância por tanto tempo.

Lilith murmurou qualquer coisa ao ouvido de Ricardo, como se houvesse entre os dois uma cumplicidade de há muito. Diana não se conteve e chegou-se a eles.

– Então… – disse com um tom irónico na voz –, divertidos?

– Sim – afirmou Lilith –, o Ricardo é uma excelente companhia e um verdadeiro cavalheiro.

– Eu sei – disse Diana. – É por isso que gosto tanto dele.

– É melhor que o trate bem – e dizendo isto, olhou bem nos olhos de Ricardo, avisando: – Pode sempre aparecer alguém que o queira roubar…

Ricardo mordeu o lábio. Eu ri-me por dentro. Os olhos de Diana inflamaram de ódio.

– Não se preocupe – continuou Lilith –, não seria eu a fazê-lo de certeza. – Foi visível a desilusão nos olhos de Ricardo. Ela largou-o e dirigiu-se a Diana – Sabe, se eu quisesse alguém sem ser o Miguel – pôs-lhe a mão na cintura, acima da anca –, preferia, sem dúvida – puxou-a suavemente para si, e Diana deixou-se ir, completamente incapaz de parar, ou resistir – … uma mulher… – os corpos delas colaram-se, Ricardo estava de boca aberta, toda a galeria ficou em suspenso como tinha ficado a discoteca, todos os olhos postos nelas, Diana suspendeu a respiração – como tu.

Os lábios das duas tocaram-se tão ao de leve que quase não deu para ninguém se aperceber do beijo. Rolaram algumas lágrimas dos olhos de Diana, fazendo linhas na sua maquilhagem carregada. Lilith largou-a.

– Como tu não – disse. – Talvez uma mulher com mais vida. Com mais mundo. Talvez alguém que valesse a pena e não fosse tão absolutamente oco e movido por interesses pessoais. Talvez uma mulher que tivesse um fundo bom.

As lágrimas corriam pela cara de Diana enquanto ouvia isto. Lilith voltou-se para mim.

– Querido, já conversaste tudo com ela?

– Sim, linda. Acho que já dissemos tudo um ao outro.

– Então, deixemo-los.

Abraçou-se a mim e afastámo-nos deles. Seguimos como se nada se tivesse passado. Ricardo ficou onde estava, atónito com o que presenciara, espantado talvez pela maneira como tinha sido ignorado. Diana, ao fim de alguns instantes de imobilidade, saiu apressadamente da sala, fazendo questão de não olhar para ninguém. Aos poucos o ambiente voltou ao normal e as atenções sobre nós esbateram-se.

– Foste cruel – disse eu a Lilith.

– Fui mulher.

Ri-me. Era óbvio o que dizia. Sim, tinha sido sobretudo mulher.

– Por momentos pensei que levavas o Ricardo contigo e lho roubavas.

– Sabes – disse ela –, isso não teria grande significado. Não lhe roubaria algo que já não é dela de qualquer maneira.

– Como assim?

– Para o Ricardo ela era apenas uma boa queca, uma conquista fácil, mas que, quando ele estivesse cansado seria facilmente substituível. Estaria com ela enquanto ele quisesse o que ela tinha para dar e não aparecesse outra qualquer mais apelativa. Para ela o Ricardo era apenas um meio para um fim, não significava nada.

– Concordo contigo, aliás, disse-lho antes de irmos ter convosco.

– Pois. Mas sabes, dizes que eu fui cruel, mas se calhar nem tanto. De certa forma posso até ter sido piedosa.

– Porquê?

– Porque agora ela tem tudo na mão. Acho que se apercebeu de muita coisa hoje, mas sobretudo apercebeu-se que tem de mudar. E se ela o fizer, então fui piedosa. Se ela teimar em seguir o caminho que tem seguido até aqui, então fui cruel para ela. Mas não para o resto do mundo.

A verdade das palavras dela era clara. Inegável, mesmo.

– Sabias que a Diana estaria aqui hoje?

– Ora, Miguel, achas que sim?

– Não há acasos, pois não? Quer dizer, contigo não há acasos.

Ela sorriu.

– Quem sabe, Miguel. Mas uma coisa eu sei.

– O quê?

– Estás diferente. Por dentro estás diferente. Estás mais parecido com quem foste.

– E que sabes tu de quem eu fui?

– Eu sei muita coisa, Miguel.

Não duvidei e achei melhor não perguntar mais. Podia não estar ainda preparado para as respostas.