Óscar e Benedita entraram na garagem e encontraram Laura já
sentada ao volante, o motor do Mercedes a ronronar baixo.
— Levo-vos eu hoje — disse, voltando-se para ele.
Óscar hesitou, com a mão ainda pousada na maçaneta da porta do
Corvette.
— Não é preciso… — murmurou.
— Hoje vais passar o dia no hospital. Exames, consultas… —
respondeu Laura, calma. — Se me permitires, quero acompanhar-te. Assim não tens
de te preocupar em conduzir.
O silêncio ficou suspenso alguns segundos, até que Benedita, num
gesto espontâneo, abriu a porta de trás e entrou, como se tivesse resolvido a
questão por ambos. Óscar acabou por se sentar ao lado de Laura, meio resignado.
O carro saiu da garagem, e a estrada fez-se em silêncio. Não um
silêncio pesado, como antes, mas um espaço vazio, quase pacificado. Benedita,
com os headphones, cantarolava qualquer coisa, indiferente à quietude entre
eles.
Pouco depois, deixaram-na à porta da escola. Laura despediu-se com
um sorriso, e assim que Benedita fechou a porta, o carro seguiu. Foi nesse
instante, na ausência da jovem, que Laura quebrou a pausa.
Sem olhar diretamente para ele, disse:
— Óscar… eu percebi uma coisa. O erro não foi só ter procurado
noutro lugar aquilo que faltava em nós. Não foi só o sexo. O verdadeiro erro
foi eu ter deixado de acreditar em nós enquanto par.
Ele não respondeu, os olhos fixos na estrada.
Laura respirou fundo, as mãos firmes no volante.
— O que eu te roubei não foi o corpo. Foi a fé. O pacto invisível
que sustentava tudo. Eu confundi desejo com valor, e não percebi que o nosso
pacto não era sobre desejo… era sobre entrega. E eu falhei nisso.
Óscar fechou os olhos por um momento, sentindo a frase cair sobre
ele como algo inevitável e verdadeiro.
— Eu percebi que não preciso de ser desejada para ser tua mulher.
— A voz dela tremeu, mas não vacilou. — A minha escolha já tinha sido feita há
muito, quando decidimos partilhar a vida. E escolho de novo. Escolho estar
contigo, mesmo frágil, mesmo diferente.
O silêncio voltou, mas era outro. Não vazio, nem gélido — um
silêncio pensativo, suspenso. Óscar levou o copo de whisky à boca apenas em
pensamento, mas não havia copo. Apenas um nó seco na garganta.
Quando deram por isso, estavam já a estacionar no parque do hospital.
Laura desligou o motor, pousou as mãos no volante, como se não quisesse quebrar
o instante. Óscar não disse nada. Mas, antes de sair, ficou por um momento
dentro do carro, absorvendo o que acabara de ouvir.
Ela não pediu resposta. Apenas aguardou.
E, pela primeira vez em muito tempo, o silêncio entre eles parecia
conter possibilidade.
A manhã arrastou-se em corredores brancos, salas frias e vozes de
enfermeiras chamando nomes em lista interminável. Exames, provas de esforço,
eletrocardiogramas, análises. Óscar cumpriu tudo com a impaciência habitual,
respondendo seco, movendo-se com gestos calculados, como se cada minuto gasto
em ambiente médico fosse uma afronta pessoal.
Laura conhecia bem esse lado dele. Sempre fora assim: desconfiado
de batas brancas, intolerante a esperas, ansioso por retomar o controlo que ali
lhe era retirado. Não se surpreendeu, portanto, com a sua expressão carregada,
mas manteve-se serena, acompanhando sem interferir, deixando-lhe espaço.
Depois de horas de exames, a espera prolongou-se ainda mais, agora
com um tabuleiro da cantina hospitalar pousado à frente de cada um. Sentaram-se
juntos, mas comeram quase em silêncio, com Óscar a picar a comida sem grande
vontade. Laura sabia que não havia nada a dizer que lhe aliviasse a irritação —
bastava estar.
Finalmente, chamaram-no ao consultório. O médico cumprimentou-os
com naturalidade, sentando-se diante do ecrã, abrindo a ficha eletrónica.
Passou alguns minutos a rever resultados, alternando entre leitura atenta e
pequenos murmúrios técnicos.
Depois, virou-se para Óscar com um sorriso breve:
— Parabéns. Está em muito melhor estado do que há uns meses. É
normal que ainda sinta algum cansaço, mas, no geral, está plenamente
recuperado.
Óscar manteve-se calado, apenas um levantar de sobrancelhas a
substituir qualquer reação. Laura, ao seu lado, sentiu um peso a soltar-se.
— Recuperado? — repetiu ele, como quem testa a palavra.
— Recuperado — confirmou o médico, firme. — A cirurgia foi um
sucesso. A sua evolução é excelente.
Laura sorriu de leve, mas não comentou. Deixou que fosse Óscar a
absorver aquilo no seu tempo.
O médico, antes de encerrar a consulta, ajeitou os óculos e
acrescentou com o tom mais sério:
— Mas atenção, Óscar. Recuperado não significa imortal. Nada de
loucuras. Não fique sedentário, mas também não queira recuperar vinte anos em
duas semanas. Comece com caminhadas longas, regulares. Alivie o stress. E,
sobretudo, siga o tratamento. Se o fizer, não vejo razão para não começarmos,
dentro de pouco tempo, a reduzir a medicação.
Óscar anuiu, um meio sorriso a romper pela primeira vez naquele
dia.
— Vou fazer os possíveis, doutor. Até porque, se não fizer, ainda
me sujeitam a mais destas secas. — A ironia arrancou um riso breve ao médico.
Quando saíram do consultório, Laura reparou que ele caminhava mais
ereto, o passo menos arrastado. A má disposição, ainda que não desaparecida,
tinha ganho uma fenda. Respirava fundo como quem sentia o corpo de novo aliado
e não apenas obstáculo.
Ela acompanhava-o em silêncio, com um sorriso leve, sem
reivindicar mérito por nada. Apenas presente.
Já no carro, Óscar ajeitou-se no banco do passageiro. Laura ligou
o motor e, por um instante, hesitou.
— O que é que te apetece fazer agora? Ainda temos algum tempo até
a Benedita sair.
Ele pensou pouco, o olhar fixo na estrada.
— Não me importo de irmos até à escola e esperar por ela.
Laura assentiu sem discutir. Conduziu em silêncio, com a suavidade
de quem sabia que aquele era um momento para não forçar nada.
Estacionaram em frente à escola. O motor desligado, a rua calma.
Ficaram os dois ali, lado a lado, num silêncio reflexivo, cada um preso às
próprias memórias e pensamentos, mas curiosamente menos distantes do que antes.
O silêncio instalara-se já há minutos. O som distante do recreio,
abafado pelas paredes da escola, chegava apenas como um rumor longínquo.
Óscar manteve os olhos fixos no pára-brisas, os dedos a tamborilar
devagar no joelho, até que quebrou o silêncio. A voz saiu-lhe baixa, sem
pressa, mas carregada de gravidade:
— Estar diante daquela porta… e ver-te além dela… com outro homem
em cima de ti… não foi um choque pelo acto em si.
Laura engoliu em seco. O coração acelerou-lhe, como se quisesse
antecipar o que vinha a seguir.
— Foi pelo que o acto representou. — continuou ele, sem a olhar. —
Naquele momento… percebi que não era suficiente para ti.
Laura fechou os olhos com força. Uma ardência instalou-se-lhe no
peito e as mãos tremiam-lhe discretamente sobre o volante desligado.
— Isso fez-me pôr em causa tudo. Todas as conceções que tinha da
vida. Tudo o que construí. Todo o esforço que investi. — a voz dele não
vacilava, mas o peso das palavras caía sobre ela como pedras sucessivas.
Uma lágrima escapou-lhe sem que pudesse evitar. Limpou-a rápido,
quase com raiva de si própria, mas a respiração denunciava a perturbação.
— Pôs-me em causa a mim… o meu valor. — continuou ele. — E quando
mais tarde percebi… naquela conversa… o que tinha levado a isso… apenas
aprofundou a minha convicção de falhanço.
Laura mordeu o lábio. Sentia-se cada vez mais pequena, esmagada
pelo eco da voz dele.
— Falhei naquilo que mais me definia. — concluiu. — Ser um bom
pai. E ser um bom marido.
Nesse instante, Laura não conseguiu segurar. O choro rompeu-lhe o
peito, mas abafado, contido, como se não quisesse atrapalhar a solenidade das
palavras dele. Levou a mão à boca, tentando calar-se, mas o sal das lágrimas
queimava-lhe o rosto.
Óscar respirou fundo. O olhar ainda preso ao horizonte. E então,
quase num tom monocromático, como quem relatava factos técnicos:
— Muitas vezes, a descer as curvas dos Pirenéus, forcei o carro
mais do que devia. Mais do que a lógica permitia. — fez uma pausa curta, e o
silêncio seguinte pareceu eterno. — E não poucas vezes foi mais o carro do que
a minha perícia que evitou que me despenhasse.
Laura sentiu o corpo gelar. O sangue fugiu-lhe do rosto, e um nó
formou-se-lhe na garganta. Uma náusea surda cresceu dentro dela com a
consciência tardia de quão perto estivera de perder tudo, não apenas o marido,
mas o homem, o pai, a presença que sempre fora o centro da sua vida.
O choro converteu-se num soluço baixo. Laura virou-se devagar para
ele, procurando-lhe o perfil, mas Óscar não quebrou o olhar fixo em frente.
Estava ali, mas parecia ainda a meio daquelas curvas, entre a vertigem e o
abismo.
Óscar permaneceu a olhar em frente, a voz agora mais grave:
— Foi naquela estrada, numa subida perdida no meio do nada… quando
a vi. Uma miúda, sozinha, apenas com uma pequena mochila às costas.
Laura endireitou-se ligeiramente no banco, surpresa com o desvio
do relato, mas manteve-se em silêncio.
— Parei sem saber porquê. Algo me pareceu errado. — prosseguiu. —
Nas primeiras conversas fui cru, até duro demais. Ela falava em ir para Paris
ser modelo. E eu tratei de lhe destruir os sonhos com a dureza da realidade.
As lágrimas que Laura já continha ficaram suspensas, sem cair.
Reconhecia aquela voz — era a mesma com que ele sempre lhe falava quando queria
protegê-la de algo, mesmo contra a sua vontade.
— Quando me perguntou se eu não a achava bonita o suficiente… —
Óscar fez uma pausa longa, como se ainda lhe doesse lembrar-se. — Voltei a
tentar esmagar-lhe a esperança. Mas ela ouviu. Escutou cada palavra.
Laura apertou o casaco contra si, não por frio, mas pela dor da
constatação. Mesmo perdido, mesmo mergulhado na sua própria escuridão, Óscar
permanecia igual a si próprio: incapaz de virar as costas, incapaz de deixar
alguém ao abandono.
— Mais tarde percebi que tinha mentido sobre a idade. — ele
continuou. — E confirmei aquilo que já suspeitava: estava ali sozinha porque
tinha sido deixada para trás… quando não cedeu a favores a um camionista que
lhe dera boleia.
Laura fechou os olhos, e as lágrimas desceram finalmente. Não
havia espaço para inveja, nem para comparação. O que lhe esmagava o peito era a
constatação de que, no mesmo período em que ela fraquejara, em que tinha
desistido deles, Óscar, mesmo ferido, continuava a ser o homem que sempre fora.
— Quando ouvi isso… dei-lhe um propósito. — a voz dele
suavizou-se. — Mas na verdade… foi ela que me deu um.
O coração de Laura apertou-se até quase lhe faltar o ar. Naquele
instante, a imagem dele nos Pirenéus, a conduzir para o abismo, fundiu-se com
esta: o homem que, em ruína, ainda assim encontrava força para amparar alguém.
— De alguma maneira… Benedita salvou-me. Muito mais do que eu a
ela. — concluiu. — E embora ela nunca o saiba, terei sempre para com ela uma
dívida de gratidão.
Laura levou as mãos ao rosto. Chorava, não de raiva ou posse, mas
de profunda vergonha e reverência. Percebia, com uma clareza quase cruel, que o
homem que amara a vida toda não tinha desaparecido sob a doença, nem sob a dor.
Estava ali, sempre estivera. Ela é que deixara de o ver.
Óscar permaneceu em silêncio durante alguns instantes depois da
sua última frase. O som distante de crianças no recreio chegava amortecido
pelas janelas do carro, mas ali dentro o ar parecia suspenso.
De repente, ele virou-se para ela. Não com brusquidão, mas com uma
lentidão firme, como quem se decide enfim a encarar o inevitável. Os olhos dele
prenderam-se nos de Laura, fixos, tão diretos que quase a fizeram recuar no
assento.
A voz saiu grave, controlada, mas carregada de uma exigência que
ia muito além de qualquer discussão:
— Sem mentiras? Sem omissões?
Laura sentiu o coração parar por um segundo. O olhar dele parecia
trespassá-la, despindo cada camada que durante meses tentara reconstruir. Era
como se ele estivesse diante não apenas da mulher que traíra, mas do núcleo
mais profundo dela, do amago da sua alma.
Engoliu em seco. Quis baixar os olhos, mas não o conseguiu. Ali,
diante daquela pergunta, compreendeu que não havia espaço para justificações,
nem para meias verdades.
Respirou fundo, deixou que as lágrimas lhe corressem livres e,
sustentando o olhar dele com uma coragem nascida da própria dor, respondeu:
— Sem mentiras. Sem omissões.
Não foi um sussurro hesitante, mas uma afirmação clara, sólida,
quase surpreendente até para ela própria. Saiu-lhe da boca com uma certeza
absoluta, inabalável.
Por um instante, os dois permaneceram apenas a olhar-se, como se
tudo o que fosse dito dali em diante tivesse de nascer desse pacto renovado.
Óscar não desviou o olhar dela, mas deixou escapar um suspiro
fundo, como se retirasse de dentro de si uma pedra antiga.
— Vai ser difícil apagar aquela imagem da minha cabeça… — disse,
pausadamente, escolhendo cada palavra. — E, além disso, não sei se alguma vez
serei o homem que fui. Ou quando serei.
Laura não hesitou. A resposta saiu-lhe firme, serena, quase
instintiva:
— Isso não importa.
Ele arqueou ligeiramente as sobrancelhas, surpreso com a convicção
dela. Laura respirou fundo, e num impulso que misturava fragilidade e
atrevimento, deixou escapar, num tom meio brincalhão e insinuante:
— Mas… nada nos impede de tentar.
O silêncio que se seguiu foi breve, mas carregado. Óscar levantou
o sobrolho, o olhar endurecido suavizou-se, e pela primeira vez em muito tempo
os lábios dele esboçaram um meio sorriso.
— O futuro o dirá — respondeu com uma ironia leve, mas onde já não
havia o peso habitual.
Foi nesse momento que Benedita saiu pela porta da escola e correu
até ao carro. Abriu a porta de trás e atirou a mochila para o banco. Entrou
ainda a falar de algo qualquer que lhe tinha acontecido na aula, mas calou-se a
meio da frase.
Notou, com a perspicácia silenciosa da juventude, uma diferença.
Óscar estava menos rígido, o corpo mais solto, como se um peso tivesse caído
dos ombros. E Laura… apesar dos olhos inchados de quem chorara, exibia um
sorriso novo, tão inesperado que Benedita não se lembrava de alguma vez o ter
visto.
A viagem até casa decorreu tranquila, com Benedita a encher o
silêncio com pequenas histórias do dia.
À noite, à mesa do jantar, Laura trouxe o assunto à superfície de
forma quase casual:
— Benedita… estive a pensar. A cave pode ser demasiado húmida para
ti. Não gostarias de ficar com o quarto antigo da Clara?
Benedita pousou os talheres, surpreendida, e demorou-se antes de
responder.
— Não sei… não queria invadir o espaço dela.
Laura sorriu, inclinando-se ligeiramente para a frente.
— Se quiseres, pergunta à Clara. Tenho a certeza de que não se
iria opor.
Durante toda a conversa, Benedita manteve os olhos em Óscar, como
que a pedir-lhe aprovação silenciosa. O cuidado era visível: não queria dar um
passo que o contrariasse.
Óscar, por sua vez, não disse nada de imediato. Observou-as, com
aquele mesmo meio sorriso discreto, e limitou-se a acenar de leve com a cabeça.
Laura percebeu. Benedita percebeu. O pacto silencioso estava ali,
a germinar.
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