Benedita acordou com toques suaves e ritmados na porta da cave.
Acordou ainda meio estremunhada, o corpo pesado depois de dois mil quilómetros
em dois dias. Espreguiçou-se, esfregou os olhos e arrastou-se até à porta.
Encostou o olho ao óculo e viu Laura do outro lado, séria e calma.
Recordou-se do que Óscar lhe dissera e abriu apenas uma nesga,
mantendo a corrente fechada.
— Bom dia. O Óscar não está, saiu cedo.
— Eu sei — respondeu Laura. Por um instante, o rosto deixou
escapar um lampejo de irritação, rápido mas perceptível, talvez ao lembrar-se
do Tesla estacionado em cima das suas roseiras. Mas recompôs-se e continuou com
voz controlada. — Ontem não fomos devidamente apresentadas, por força das
circunstâncias. Mas já que és convidada do Óscar, és bem-vinda.
Benedita assentiu com um breve movimento.
— Já tomaste o pequeno-almoço? — perguntou Laura.
— Ainda não… — respondeu, cautelosa.
— Então vem tomar comigo. Dá a volta à casa e entra pela porta das
traseiras, que dá direto para a cozinha.
Laura afastou-se, e Benedita ficou um instante a ouvir o som dos
passos a subir o exterior da cave. Voltou ao quarto improvisado, esticou a
colcha sobre a cama, vestiu-se e saiu.
A luz da manhã batia no pátio lateral quando começou a subir. Ao
contornar a casa, deparou-se com a vista das traseiras — o rio Cávado
estendia-se preguiçoso ao fundo, a brilhar ao sol, ladeado pelas encostas
verdes. Por momentos ficou ali, a absorver o cenário.
Chegou à porta das traseiras e bateu levemente antes de empurrar.
O cheiro de chá fresco envolveu-a.
— Com licença…
— Entra à vontade — disse Laura, sentada à mesa da cozinha, ao
lado de Clara. Ambas tinham chávenas nas mãos.
Benedita aproximou-se, ainda com alguma reserva.
— Então, o que queres comer? — perguntou Laura, num tom cordial
que a apanhou desprevenida.
Benedita respondeu, num fio de voz:
— Só uma torrada… e café com leite, se faz favor.
Clara levantou-se de imediato, dirigindo-se à bancada para colocar
o pão na torradeira e ligar a máquina do café. Laura, sem tirar os olhos de
Benedita, fez-lhe sinal para se sentar.
— Anda, senta-te — disse num tom calmo e acolhedor.
Benedita sentou-se devagar, as mãos pousadas no colo, o olhar a
fugir para a bancada, sem saber bem como se comportar.
— Então… chamas-te Benedita e tens dezasseis anos, não é? —
perguntou Laura, procurando um sorriso que soava mais ensaiado do que
espontâneo.
Benedita limitou-se a acenar afirmativamente.
— E como é que conheceste o Óscar?
— Ele deu-me boleia… quando estava nos Pirenéus, perto de Andorra.
— Nos Pirenéus? — Laura arqueou as sobrancelhas. — E o que estavas
tu a fazer por lá?
— Ia para Paris.
— Para Paris? — a surpresa era genuína. — Ias à boleia?
— Sim.
— Sozinha?
— Sim.
Clara voltou à mesa com um prato de torradas fumegantes e uma
manteigueira, pousando-os à frente de Benedita. Logo depois colocou também uma
caneca de café com leite a fumegar.
Benedita começou a barrar manteiga numa das torradas. Clara,
olhando-a com curiosidade, arriscou:
— Não é demasiado perigoso para uma rapariga sozinha ir à boleia?
Benedita encolheu os ombros, como quem não quer pensar muito
nisso.
— E os teus pais? — insistiu Clara.
Benedita respondeu com a maior simplicidade do mundo, levando a
primeira dentada à torrada:
— Morreram.
Laura e Clara entreolharam-se, não apenas pela resposta, mas pelo
tom quase neutro com que foi dita. Perceberam de imediato que havia muito mais
por baixo daquela superfície de aparente indiferença. E, talvez sem se darem
conta, sentiram ambas uma pontada de pena por aquela rapariga.
Laura pousou a chávena na mesa e olhou para Benedita com um ar
calmo, mas atento.
— O Óscar falou-te alguma coisa sobre mim?
Benedita manteve o olhar na torrada.
— Só que era a mulher dele… e que a Clara era a filha.
— Mais nada? — insistiu Laura, inclinando-se ligeiramente.
Benedita não respondeu. Limitou-se a morder um pedaço de pão,
mastigando devagar. Laura deixou o silêncio cair, mas lançou um olhar rápido e
cúmplice a Clara, como se tivessem percebido as duas que havia ali mais do que
Benedita queria admitir.
Clara quebrou a pausa:
— Já conhecias o Óscar antes?
— Não.
Laura apoiou os cotovelos na mesa.
— Ias para Paris… como é que acabaste aqui?
Benedita pousou a torrada no prato.
— O Óscar, quando soube para onde ia, disse que me podia levar,
porque ficava no caminho. A viagem durou uns dias… e ele acabou por me
convencer de que não era boa ideia.
— Porquê? — perguntou Laura.
— Porque eu acabei por lhe dizer que tinha dezasseis anos.
Laura arqueou as sobrancelhas.
— Ele não sabia logo de início?
Benedita hesitou.
— Acho que desconfiou… mas eu disse-lhe que tinha dezoito.
— E o que te fez confessar? — Laura não disfarçava a curiosidade.
Benedita olhou um instante para a mesa, antes de falar:
— Num hotel pediram-me identificação. Ele disse que eu era filha
dele, e não pediram mais nada. Mais tarde, no quarto, perguntei-lhe por que é
que tinha dito aquilo. Ele perguntou-me se eu queria mesmo mostrar a minha
identificação… e, quando não respondi, perguntou se eu tinha mesmo dezoito
anos. Acabei por dizer a verdade.
Laura encostou-se na cadeira, pensativa, enquanto Clara se
limitava a observá-la, tentando perceber onde é que aquela conversa ia parar.
Laura apoiou o queixo na mão e perguntou:
— Foi aí que o Óscar te fez desistir da ideia?
Benedita abanou a cabeça.
— Não. Ele só me deu umas doses de realidade… que me fizeram
desistir sozinha.
Clara soltou um sorriso breve.
— Típico do pai…
Laura manteve-se a observá-la.
— E como é que conseguiste ir?
— Fugi — disse Benedita, com a naturalidade de quem já repetiu
aquela frase demasiadas vezes. — Estava num lar de acolhimento… onde era
maltratada. Quando consegui, fugi. A minha ideia era ir para Paris e ser
modelo.
Laura recostou-se ligeiramente.
— Se calhar devíamos ir às autoridades.
Benedita abanou de novo a cabeça.
— O Óscar já tratou de tudo. Fez uma denúncia da família de
acolhimento… e tratou de ter a minha guarda temporária.
Clara deixou escapar uma pequena gargalhada irónica.
— Isso é igualmente típico do pai…
Laura cruzou os braços sobre a mesa, num gesto descontraído, mas
com evidente curiosidade.
— E afinal… qual era o destino do Óscar?
Benedita, sem conseguir disfarçar, deixou escapar um brilho quase
infantil nos olhos.
— Nürburgring.
Clara franziu o sobrolho.
— O quê?
Benedita endireitou-se na cadeira, animada.
— É uma pista de corridas na Alemanha. Mas não é uma pista
qualquer… é um circuito enorme, histórico. Fomos lá, demos voltas… foi
espectacular.
Clara esboçou um sorriso que escondia mal uma ponta de ciúmes.
— Aposto que foi…
— Foi! — disse Benedita, acenando com entusiasmo. — Fomos
depressa, mas não a caminho. Na ida parámos muito pelo caminho, vimos marcos
históricos, conhecemos cidades… até demos um desvio de propósito para ir a Le
Mans.
— A Le Mans? — repetiu Laura, tentando acompanhar.
— Sim! Outra pista. Foi lá que vi o Corvette a andar a sério pela
primeira vez.
Enquanto Benedita falava, o rosto iluminado, as mãos a gesticular,
Laura sentia uma pontada estranha no peito. Não era raiva… mas uma pena imensa.
Pena por não ter sido ela a viver tudo aquilo ao lado de Óscar. Clara, calada,
tinha o mesmo pensamento — só que misturado com um ciúme silencioso de filha.
— E vocês… na volta, vieram devagar também? — perguntou Clara,
tentando disfarçar o tom.
— Não. A volta foi directa, fizemos cerca de mil quilómetros por
dia… mas a ida foi calma. À volta só paramos para descansar, comer e dormir.
Laura observou-a um instante antes de fazer a pergunta seguinte.
— Sabes porque é que ele decidiu ir para Nürburgring?
Benedita sorriu.
— Ele disse-me que tinha o carro há dois dias e, a caminho do
trabalho, parado num cruzamento, pensou: “Este carro deve ser espectacular lá”.
Em vez de seguir em frente… virou à esquerda.
Clara abanou a cabeça, quase a rir.
— Mesmo, mesmo típico do pai…
Laura deixa que Benedita acabe de comer em paz, observando-a em
silêncio enquanto o som suave das torradas a estalar entre os dentes preenchia
a cozinha. Parecia estar a organizar as próprias ideias, escolhendo com cuidado
as próximas palavras. Quando falou, fê-lo num tom calmo, quase maternal.
— É óbvio que já sabes que há um desaguisado entre o Óscar, eu e a
Clara — começou, fitando Benedita de forma serena. — Mas isso é uma coisa
pessoal entre nós. Não há qualquer problema contigo.
Benedita apenas acenou, sem grande reação, mas registando mentalmente
a frase.
— Olha… — prosseguiu Laura, com um breve sorriso que tentou
suavizar o ambiente — se não tiveres nada combinado, podias vir connosco ao
supermercado. E… fica para o almoço, almoçamos todas juntas.
Clara, que até ali tinha permanecido mais em silêncio, olhou para
Benedita com uma expressão de expectativa.
— Sim, vem. — acrescentou, num tom quase de desafio amigável.
Benedita hesitou apenas um instante antes de aceder.
— Está bem.
Enquanto Laura e Clara acabavam o chá, a conversa voltou ao tema
inevitável: a viagem. As perguntas iam surgindo com a curiosidade expectável —
detalhes da estrada, das cidades, das pessoas que tinham encontrado. Benedita
respondia sempre, sem recusar nenhuma pergunta, mas de forma medida.
Recordava-se bem do que Óscar lhe tinha dito na véspera: “Não
partilhes demais.”
Por isso, cada resposta era uma seleção cuidadosa, como quem monta
um puzzle deixando algumas peças guardadas na caixa.
Sem comentários:
Enviar um comentário
O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!