terça-feira, 23 de setembro de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 26

 



Os jantares com a Laura tornaram-se algo recorrente, fruto sobretudo do extremo cansaço que Óscar ainda sentia. Embora continuasse frio com ela, a verdade é que a fúria que conteve em si durante os primeiros dias — temperada apenas pela energia da viagem — parecia então tê-lo mantido erguido, como se o corpo se recusasse a ceder. Agora, esvaziada essa ira, o peso caiu-lhe inteiro sobre o peito, e o coração, sem mais barreiras, acusava todas as pancadas do que tinha acontecido.

Carregava em silêncio aquilo que ninguém sabia. Os pensamentos que lhe ocuparam a mente enquanto atravessava Espanha, no dia seguinte à conversa. O quanto se sentira perdido. O quanto a vida lhe parecia subitamente uma engrenagem sem sentido, uma marcha contínua para lado nenhum. A sensação de insignificância a esmagar-lhe os ossos.

Recordava-se bem da tentação. A estrada estreita a serpentear pelas encostas dos Pirenéus, o vento a bater-lhe nos vidros, a música do motor a ecoar como um coração em fúria. O carro colado ao asfalto, as falésias a centímetros, o abismo sempre ali, constante, a acompanhá-lo como um convite silencioso. Bastava um gesto. Uma leve pressão nos dedos, um meio desvio no volante, e tudo seria engolido pelo vazio.

E a ideia crescia, insistente, quase sedutora. O Corvette C8 lançado no ar, o corpo a flutuar por um instante antes do impacto final. Um caixão de metal e fogo, digno, absoluto. A vida inteira resumida a um último estoiro contra as rochas, longe de tudo e de todos.

O pensamento martelava, repetia-se, tornava-se quase um refrão na sua cabeça: um só movimento e o silêncio chega. Um só gesto e deixaria de haver dor, desilusões, traições. Só o vento, o precipício e a queda.

E era essa clareza, esse raciocínio quase matemático — tão simples, tão imediato — que lhe gelava mais a alma. Porque no meio do caos, havia algo de aterradoramente lógico naquela saída.

Sentado à mesa do jantar, Óscar deixou-se ficar em silêncio, o garfo pousado a meio caminho do prato. Observava Benedita, curvada sobre o telemóvel, a falar com Clara. O entusiasmo dela ao explicar as dúvidas de uma matéria qualquer misturava-se com a paciência de Clara do outro lado da linha, a responder-lhe ponto por ponto.

E nesse instante, a memória assaltou-o. A imagem dela, sozinha, no meio da estrada, como um sinal inesperado a atravessar-lhe o caminho. Recordou o modo como, sem ele perceber bem como, a simples presença daquela jovem tinha silenciado todas as vozes que o empurravam para o abismo. Como a responsabilidade de cuidar dela lhe dera um propósito, um sentido, quando tudo nele gritava que já não havia nenhum.

Talvez, pensava agora, não tivesse sido ele a salvar Benedita, mas Benedita a salvá-lo a ele.

Enquanto a via ali, concentrada, determinada, parte de uma vida que não lhe pertencia mas que de repente parecia tê-lo acolhido, sentiu uma estranha paz. A sua família quebrada tinha aberto espaço para ela sem reservas, sem hesitações. Nunca duvidara que assim fosse.

Sabia que a sua mulher e a sua filha eram excelentes pessoas. Sempre tinham sido.

Só não tinham sido excelentes pessoas para ele.

Esse pensamento repetia-se-lhe como uma lâmina fria a atravessar o peito. Não porque duvidasse da bondade delas, mas porque essa bondade parecia sempre dirigida aos outros, como se fosse um reflexo que nunca o alcançava. Com os amigos, eram prestáveis. Com conhecidos, generosas. Com estranhos, atenciosas. Mas com ele... com ele tinham sido capazes de o trair naquilo que mais importava: o respeito, a verdade, a integridade do lar que deviam partilhar.

Era isso que doía mais: não se tratava de uma falha momentânea, um deslize irrefletido. Não. Tratara-se de uma escolha deliberada, um pacto feito nas suas costas, com a calma de quem julga estar a proteger e, no entanto, fere mais fundo do que qualquer inimigo.

Por vezes, perguntava-se se ele não passava de uma exceção cruel nesse círculo de bondade delas. Se, na equação secreta da vida que levavam, ele era o único a quem não se aplicavam aquelas virtudes tão elogiadas por todos. Como se a dedicação, o amor e a lealdade fossem recursos infinitos para distribuir ao mundo — menos a ele, que fora deixado na sombra.

Essa verdade não lhe saía da mente. Podia disfarçar à mesa, podia sorrir de leve ao ver Benedita, mas dentro de si permanecia a constatação: eram excelentes pessoas, sim. Apenas não tinham escolhido sê-lo para com ele.

Ainda assim, Óscar sentia-se agradecido. Agradecido a Laura e a Clara, pela forma como tinham recebido Benedita, como a tinham integrado sem reservas numa casa já tão marcada pelas fissuras da sua própria história. Podia nunca mais olhar para ambas da mesma forma, podia carregar o desgosto e a desconfiança até ao fim dos seus dias — mas não era cego ao que faziam pela rapariga. E isso, no meio de tudo, era algo que lhe aquecia um recanto do peito que pensava morto.

Foi então que a voz de Laura o arrancou das suas reflexões.

— Óscar… amanhã a Clara e o Daniel vêm cá jantar… — hesitou, os olhos pousados nele com uma cautela que não passava despercebida. — …e queria saber se também vens.

Ele permaneceu alguns instantes em silêncio. O instinto imediato foi recusar, a recusa quase lhe subiu aos lábios por reflexo, mas conteve-a. Respirou fundo, desviou o olhar para Benedita que, entretida com o caderno ao lado do prato, rabiscava notas como se o mundo à volta não existisse. E, nesse instante, percebeu que a vida exigia dele mais do que o seu próprio orgulho.

— Está bem — respondeu por fim, seco, mas firme.


O jantar do dia seguinte decorreu sob uma tensão palpável.

A mesa estava posta com cuidado, mas ninguém parecia verdadeiramente relaxado. O ambiente era uma corda demasiado esticada, rangendo sob a pressão de todos os silêncios e olhares evitados, pronta a quebrar ao menor gesto em falso.

Clara esforçava-se por sorrir, Daniel mantinha uma postura reservada, Laura movia-se pela sala quase como uma anfitriã envergonhada. Óscar, sentado, observava todos com a calma fria de quem não tem pressa de falar.

Apenas Benedita conseguia, aqui e ali, quebrar a rigidez.

Com perguntas inocentes sobre a escola, pequenas histórias do seu dia ou até comentários ingénuos sobre a comida, a jovem fazia com que, por instantes, o ar se tornasse respirável. As suas palavras caíam como notas soltas de música num salão onde todos, por dentro, se debatiam com pensamentos demasiado pesados para partilhar.

Depois do jantar e do café, a sala começou a esvaziar-se lentamente. As vozes foram dando lugar a silêncios espaçados, até que Óscar, aproveitando a noite amena, decidiu retirar-se para a varanda das traseiras. Levava na mão um copo de whisky, o âmbar a brilhar sob a lua.

Sentou-se diante da paisagem. O Cávado corria abaixo, o luar reflectia-se na superfície tranquila do rio, como se uma estrada líquida de prata cortasse a escuridão. Os montes cobertos de videiras erguiam-se em sombras ordenadas, linhas de cultivo que se perdiam no horizonte. Aqui e ali, pontos de luz fixos denunciavam casas, pequenas vidas em silêncio; outros em movimento, faróis que riscavam as estradas serpenteantes, lembrando-lhe a permanência do mundo, indiferente às dores individuais. Inspirou fundo e deixou-se ficar, tentando que o whisky lhe aquietasse os músculos ainda tensos.

Ouviu passos atrás de si. Virou ligeiramente a cabeça e viu Daniel, também com um copo na mão.

— Posso fazer-te companhia? — perguntou o genro, a voz baixa, respeitosa.

Óscar não respondeu de imediato. Limitou-se a levantar a mão e apontar para a cadeira ao lado. Daniel acenou e sentou-se, e durante longos minutos nada mais houve senão silêncio. Apenas o som distante da água contra as margens e o ocasional ruído de um carro a passar.

Foi Daniel quem, ao fim de alguns goles, se mexeu primeiro. Respirou fundo, pousou o olhar no rio e disse:

— Desculpa, Óscar.

O dono da casa voltou-se para ele, erguendo uma sobrancelha, surpreendido. Não disse nada, apenas aguardou.

— Fui estúpido… — continuou Daniel. — Deixei-me ir atrás de uma lógica distorcida, sem pensar bem nas implicações, sem perceber até onde isso nos podia levar.

Óscar inclinou-se para trás na cadeira, medindo-o em silêncio. Depois, num tom neutro, perguntou:

— E como é que estão as coisas contigo e a Clara?

Daniel passou a mão livre pela barba curta, pensativo.

— Tivemos uma conversa… dura, mas necessária. — Fez uma pausa. — Pela primeira vez desde que isto começou, senti que ela está realmente a perceber o que fez. Não só as intenções que teve, mas as consequências. Admitiu que estava errada… que te traiu, não pelo que aconteceu fisicamente, mas por te ter retirado a escolha, por te ter posto de parte.

Bebeu mais um gole antes de prosseguir:

— Disse-me que sabe que foi ela quem colocou esta pedra gigante no nosso caminho… mas que faria tudo para a remover. E não prometeu voltar ao que era antes — até porque não dá para voltar — mas sim construir algo novo, melhor, sobre o que aprendemos.

Daniel calou-se um instante, como se ainda estivesse a digerir as palavras que partilhava. Depois, acrescentou:

— Pedi-lhe apenas uma coisa: lealdade e sinceridade. Sempre. Que os problemas de um sejam dos dois, sem esconder, sem fingir.

A noite voltou a pesar em silêncio entre eles, densa mas de alguma forma mais clara.

Óscar rodou lentamente o copo entre os dedos, deixando o silêncio prolongar-se antes de falar:

— E diz-me… sentes que a Clara está a ser sincera contigo?

Daniel respirou fundo, mantendo o olhar no rio.

— Acho que sim… mas ao mesmo tempo sinto que ela está numa luta interna. E como é que eu algum dia poderei ter a certeza absoluta?

Óscar fitou-o, sério, a voz grave mas sem agressividade:

— Isso é a fé. A fé não é só para Deus… ou para qualquer deus. Também é para aqueles que temos à nossa volta. — Fez uma pausa curta, quase solene. — Tens fé na Clara?

Daniel hesitou. O silêncio pareceu pesar mais do que antes. Finalmente, ergueu ligeiramente os ombros e respondeu num tom baixo:

— Sim.

Óscar estreitou os olhos.

— E achas que essa fé é justificada?

Daniel demorou ainda mais tempo a responder, como se pesasse cada palavra. Por fim, disse:

— Sinto que sim.

Óscar acenou devagar, pousando o copo sobre a mesa de ferro da varanda.

— Espero sinceramente que consigam resolver tudo o que há para resolver. E seguir em frente.

Manteve o ar sério com que estivera a noite inteira, mas um traço quase imperceptível de humanidade atravessou-lhe o olhar quando acrescentou:

— Apesar de seres um bocado bronco… até gosto de ti. E detestava deixar de te chamar genro.

Daniel virou-se para ele, apanhado de surpresa. Um sorriso discreto, apenas com o canto do lábio, formou-se-lhe no rosto. Levantou o copo.

— Eu brindo a isso.

Óscar ergueu também o seu copo. O som do cristal a tilintar ecoou suave na noite, misturando-se com o correr distante do rio.

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