Os jantares com a
Laura tornaram-se algo recorrente, fruto sobretudo do extremo cansaço que Óscar
ainda sentia. Embora continuasse frio com ela, a verdade é que a fúria que
conteve em si durante os primeiros dias — temperada apenas pela energia da
viagem — parecia então tê-lo mantido erguido, como se o corpo se recusasse a
ceder. Agora, esvaziada essa ira, o peso caiu-lhe inteiro sobre o peito, e o
coração, sem mais barreiras, acusava todas as pancadas do que tinha acontecido.
Carregava em silêncio
aquilo que ninguém sabia. Os pensamentos que lhe ocuparam a mente enquanto
atravessava Espanha, no dia seguinte à conversa. O quanto se sentira perdido. O
quanto a vida lhe parecia subitamente uma engrenagem sem sentido, uma marcha
contínua para lado nenhum. A sensação de insignificância a esmagar-lhe os
ossos.
Recordava-se bem da
tentação. A estrada estreita a serpentear pelas encostas dos Pirenéus, o vento
a bater-lhe nos vidros, a música do motor a ecoar como um coração em fúria. O
carro colado ao asfalto, as falésias a centímetros, o abismo sempre ali,
constante, a acompanhá-lo como um convite silencioso. Bastava um gesto. Uma
leve pressão nos dedos, um meio desvio no volante, e tudo seria engolido pelo
vazio.
E a ideia crescia,
insistente, quase sedutora. O Corvette C8 lançado no ar, o corpo a flutuar por
um instante antes do impacto final. Um caixão de metal e fogo, digno, absoluto.
A vida inteira resumida a um último estoiro contra as rochas, longe de tudo e
de todos.
O pensamento
martelava, repetia-se, tornava-se quase um refrão na sua cabeça: um só
movimento e o silêncio chega. Um só gesto e deixaria de haver dor,
desilusões, traições. Só o vento, o precipício e a queda.
E era essa clareza,
esse raciocínio quase matemático — tão simples, tão imediato — que lhe gelava
mais a alma. Porque no meio do caos, havia algo de aterradoramente lógico
naquela saída.
Sentado à mesa do
jantar, Óscar deixou-se ficar em silêncio, o garfo pousado a meio caminho do
prato. Observava Benedita, curvada sobre o telemóvel, a falar com Clara. O
entusiasmo dela ao explicar as dúvidas de uma matéria qualquer misturava-se com
a paciência de Clara do outro lado da linha, a responder-lhe ponto por ponto.
E nesse instante, a
memória assaltou-o. A imagem dela, sozinha, no meio da estrada, como um sinal
inesperado a atravessar-lhe o caminho. Recordou o modo como, sem ele perceber
bem como, a simples presença daquela jovem tinha silenciado todas as vozes que
o empurravam para o abismo. Como a responsabilidade de cuidar dela lhe dera um
propósito, um sentido, quando tudo nele gritava que já não havia nenhum.
Talvez, pensava agora,
não tivesse sido ele a salvar Benedita, mas Benedita a salvá-lo a ele.
Enquanto a via ali,
concentrada, determinada, parte de uma vida que não lhe pertencia mas que de
repente parecia tê-lo acolhido, sentiu uma estranha paz. A sua família quebrada
tinha aberto espaço para ela sem reservas, sem hesitações. Nunca duvidara que
assim fosse.
Sabia que a sua mulher
e a sua filha eram excelentes pessoas. Sempre tinham sido.
Só não tinham sido
excelentes pessoas para ele.
Esse pensamento
repetia-se-lhe como uma lâmina fria a atravessar o peito. Não porque duvidasse
da bondade delas, mas porque essa bondade parecia sempre dirigida aos outros,
como se fosse um reflexo que nunca o alcançava. Com os amigos, eram prestáveis.
Com conhecidos, generosas. Com estranhos, atenciosas. Mas com ele... com ele
tinham sido capazes de o trair naquilo que mais importava: o respeito, a
verdade, a integridade do lar que deviam partilhar.
Era isso que doía
mais: não se tratava de uma falha momentânea, um deslize irrefletido. Não.
Tratara-se de uma escolha deliberada, um pacto feito nas suas costas, com a
calma de quem julga estar a proteger e, no entanto, fere mais fundo do que
qualquer inimigo.
Por vezes,
perguntava-se se ele não passava de uma exceção cruel nesse círculo de bondade
delas. Se, na equação secreta da vida que levavam, ele era o único a quem não
se aplicavam aquelas virtudes tão elogiadas por todos. Como se a dedicação, o
amor e a lealdade fossem recursos infinitos para distribuir ao mundo — menos a
ele, que fora deixado na sombra.
Essa verdade não lhe
saía da mente. Podia disfarçar à mesa, podia sorrir de leve ao ver Benedita,
mas dentro de si permanecia a constatação: eram excelentes pessoas, sim. Apenas
não tinham escolhido sê-lo para com ele.
Ainda assim, Óscar
sentia-se agradecido. Agradecido a Laura e a Clara, pela forma como tinham
recebido Benedita, como a tinham integrado sem reservas numa casa já tão
marcada pelas fissuras da sua própria história. Podia nunca mais olhar para
ambas da mesma forma, podia carregar o desgosto e a desconfiança até ao fim dos
seus dias — mas não era cego ao que faziam pela rapariga. E isso, no meio de
tudo, era algo que lhe aquecia um recanto do peito que pensava morto.
Foi então que a voz de
Laura o arrancou das suas reflexões.
— Óscar… amanhã a
Clara e o Daniel vêm cá jantar… — hesitou, os olhos pousados nele com uma
cautela que não passava despercebida. — …e queria saber se também vens.
Ele permaneceu alguns
instantes em silêncio. O instinto imediato foi recusar, a recusa quase lhe
subiu aos lábios por reflexo, mas conteve-a. Respirou fundo, desviou o olhar
para Benedita que, entretida com o caderno ao lado do prato, rabiscava notas
como se o mundo à volta não existisse. E, nesse instante, percebeu que a vida exigia
dele mais do que o seu próprio orgulho.
— Está bem — respondeu
por fim, seco, mas firme.
O jantar do dia
seguinte decorreu sob uma tensão palpável.
A mesa estava posta
com cuidado, mas ninguém parecia verdadeiramente relaxado. O ambiente era uma
corda demasiado esticada, rangendo sob a pressão de todos os silêncios e
olhares evitados, pronta a quebrar ao menor gesto em falso.
Clara esforçava-se por
sorrir, Daniel mantinha uma postura reservada, Laura movia-se pela sala quase
como uma anfitriã envergonhada. Óscar, sentado, observava todos com a calma
fria de quem não tem pressa de falar.
Apenas Benedita
conseguia, aqui e ali, quebrar a rigidez.
Com perguntas
inocentes sobre a escola, pequenas histórias do seu dia ou até comentários
ingénuos sobre a comida, a jovem fazia com que, por instantes, o ar se tornasse
respirável. As suas palavras caíam como notas soltas de música num salão onde
todos, por dentro, se debatiam com pensamentos demasiado pesados para
partilhar.
Depois do jantar e do
café, a sala começou a esvaziar-se lentamente. As vozes foram dando lugar a
silêncios espaçados, até que Óscar, aproveitando a noite amena, decidiu
retirar-se para a varanda das traseiras. Levava na mão um copo de whisky, o
âmbar a brilhar sob a lua.
Sentou-se diante da
paisagem. O Cávado corria abaixo, o luar reflectia-se na superfície tranquila
do rio, como se uma estrada líquida de prata cortasse a escuridão. Os montes
cobertos de videiras erguiam-se em sombras ordenadas, linhas de cultivo que se
perdiam no horizonte. Aqui e ali, pontos de luz fixos denunciavam casas,
pequenas vidas em silêncio; outros em movimento, faróis que riscavam as
estradas serpenteantes, lembrando-lhe a permanência do mundo, indiferente às
dores individuais. Inspirou fundo e deixou-se ficar, tentando que o whisky lhe
aquietasse os músculos ainda tensos.
Ouviu passos atrás de
si. Virou ligeiramente a cabeça e viu Daniel, também com um copo na mão.
— Posso fazer-te
companhia? — perguntou o genro, a voz baixa, respeitosa.
Óscar não respondeu de
imediato. Limitou-se a levantar a mão e apontar para a cadeira ao lado. Daniel
acenou e sentou-se, e durante longos minutos nada mais houve senão silêncio.
Apenas o som distante da água contra as margens e o ocasional ruído de um carro
a passar.
Foi Daniel quem, ao
fim de alguns goles, se mexeu primeiro. Respirou fundo, pousou o olhar no rio e
disse:
— Desculpa, Óscar.
O dono da casa
voltou-se para ele, erguendo uma sobrancelha, surpreendido. Não disse nada,
apenas aguardou.
— Fui estúpido… —
continuou Daniel. — Deixei-me ir atrás de uma lógica distorcida, sem pensar bem
nas implicações, sem perceber até onde isso nos podia levar.
Óscar inclinou-se para
trás na cadeira, medindo-o em silêncio. Depois, num tom neutro, perguntou:
— E como é que estão
as coisas contigo e a Clara?
Daniel passou a mão
livre pela barba curta, pensativo.
— Tivemos uma
conversa… dura, mas necessária. — Fez uma pausa. — Pela primeira vez desde que
isto começou, senti que ela está realmente a perceber o que fez. Não só as
intenções que teve, mas as consequências. Admitiu que estava errada… que te
traiu, não pelo que aconteceu fisicamente, mas por te ter retirado a escolha,
por te ter posto de parte.
Bebeu mais um gole
antes de prosseguir:
— Disse-me que sabe
que foi ela quem colocou esta pedra gigante no nosso caminho… mas que faria
tudo para a remover. E não prometeu voltar ao que era antes — até porque não dá
para voltar — mas sim construir algo novo, melhor, sobre o que aprendemos.
Daniel calou-se um
instante, como se ainda estivesse a digerir as palavras que partilhava. Depois,
acrescentou:
— Pedi-lhe apenas uma
coisa: lealdade e sinceridade. Sempre. Que os problemas de um sejam dos dois,
sem esconder, sem fingir.
A noite voltou a pesar
em silêncio entre eles, densa mas de alguma forma mais clara.
Óscar rodou lentamente
o copo entre os dedos, deixando o silêncio prolongar-se antes de falar:
— E diz-me… sentes que
a Clara está a ser sincera contigo?
Daniel respirou fundo,
mantendo o olhar no rio.
— Acho que sim… mas ao
mesmo tempo sinto que ela está numa luta interna. E como é que eu algum dia
poderei ter a certeza absoluta?
Óscar fitou-o, sério,
a voz grave mas sem agressividade:
— Isso é a fé. A fé
não é só para Deus… ou para qualquer deus. Também é para aqueles que temos à
nossa volta. — Fez uma pausa curta, quase solene. — Tens fé na Clara?
Daniel hesitou. O
silêncio pareceu pesar mais do que antes. Finalmente, ergueu ligeiramente os
ombros e respondeu num tom baixo:
— Sim.
Óscar estreitou os
olhos.
— E achas que essa fé
é justificada?
Daniel demorou ainda
mais tempo a responder, como se pesasse cada palavra. Por fim, disse:
— Sinto que sim.
Óscar acenou devagar,
pousando o copo sobre a mesa de ferro da varanda.
— Espero sinceramente
que consigam resolver tudo o que há para resolver. E seguir em frente.
Manteve o ar sério com
que estivera a noite inteira, mas um traço quase imperceptível de humanidade
atravessou-lhe o olhar quando acrescentou:
— Apesar de seres um
bocado bronco… até gosto de ti. E detestava deixar de te chamar genro.
Daniel virou-se para
ele, apanhado de surpresa. Um sorriso discreto, apenas com o canto do lábio,
formou-se-lhe no rosto. Levantou o copo.
— Eu brindo a isso.
Óscar ergueu também o
seu copo. O som do cristal a tilintar ecoou suave na noite, misturando-se com o
correr distante do rio.
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