Fizeram-se novamente à estrada na manhã seguinte, o ar fresco da manhã
a entrar pelo ligeiro entreabrir da janela. A paisagem deslizava em tons de
verde e castanho, campos intercalados com pequenas povoações adormecidas.
— Para onde vamos? — perguntou Benedita, ainda com a voz
sonolenta.
Óscar manteve os olhos na estrada, as mãos firmes no volante.
— Para um dos circuitos mais famosos do mundo: Le Mans.
Ela arqueou as sobrancelhas.
— O que é que tem de tão especial?
— Le Mans não é só uma pista… — começou, com um tom mais vivo. — É
a casa das 24 Horas, a corrida de resistência mais dura e lendária. Carros e
pilotos a rodar sem parar, dia e noite, durante um dia inteiro. É um teste à
mecânica, à resistência e à mente.
Fez uma breve pausa antes de continuar:
— Mas também tem a sua tragédia. Em 1955, houve um acidente horrível…
um carro descontrolou-se, embateu contra as bancadas e matou mais de oitenta
pessoas. Foi um dos piores momentos da história do desporto automóvel.
Benedita manteve-se em silêncio, absorvendo cada palavra.
— E depois houve a guerra entre a Ford e a Ferrari — acrescentou.
— A Ford queria vencer ali a qualquer custo. Foi nessa altura que criaram o
GT40, que acabou por dominar durante anos. O filme Ford vs Ferrari conta
parte dessa história.
— Acho que percebo porque queres ir — disse ela, com um leve
sorriso.
— Não é só paixão por carros — murmurou ele, quase num tom
pessoal. — É pelo que simboliza.
Perto da hora de almoço, avistaram um pequeno restaurante de beira
de estrada, com fachada de pedra e toldo vermelho já desbotado. O interior
cheirava a comida caseira e vinho novo. Sentaram-se junto a uma janela e, dessa
vez, escolheram pratos que ainda não tinham provado: Óscar pediu rillettes du
Mans, carne de porco cozinhada lentamente e desfiada, servida com
pão fresco; Benedita optou por galette de sarrasin, uma fina panqueca de
trigo-mourisco recheada com queijo e presunto curado.
Comeram devagar, trocando poucas palavras mas num ambiente
tranquilo. No final, Óscar pediu um café curto e forte, pagou a conta e saíram
para o carro.
Ao sentar-se, ligou o telemóvel. O ecrã iluminou-se de imediato
com uma avalanche de notificações, mensagens e e-mails por ler. Ele percorreu
rapidamente alguns, sem grande reação, antes de pousar o telefone no suporte.
Voltaram à estrada.
Poucos minutos depois, o visor do carro acendeu-se novamente,
desta vez com o nome Daniel. Óscar manteve o olhar fixo na estrada, mas
atendeu. A voz saiu pelo altifalante, preenchendo o habitáculo:
— Óscar? — A surpresa era evidente. — Estás bem?
— Estou — respondeu ele secamente.
— Ainda bem que atendeste… A Laura e a Clara estão muito
preocupadas contigo.
Óscar manteve a voz firme.
— Então diz à minha mulher e à minha filha que estou bem. E que
não precisam de mandar a polícia atrás de mim.
Houve um breve silêncio do outro lado, antes de Daniel insistir:
— Onde é que estás?
— Isso não te diz respeito. Nem a ti, nem a elas.
— Vais voltar?
Óscar respirou fundo e devolveu apenas uma não resposta, carregada
de indiferença:
— Logo se vê.
O silêncio prolongou-se por alguns segundos. A voz de Daniel
voltou mais hesitante:
— Óscar… tenho pensado muito no que me disseste naquela conversa.
Acho que cometi um erro brutal. Tenho pensado bastante e… não sei se posso
confiar na Clara.
Óscar soltou uma gargalhada seca, sem qualquer humor.
— Se calhar era melhor teres pensado nisso antes.
— As tuas palavras, nessa altura… foram duras.
— A verdade normalmente é — respondeu ele, frio. — Sobretudo para
quem não quis encarar quando devia.
Sem mais, Óscar terminou a chamada, desligando o altifalante.
O resto da viagem foi em silêncio, ele com o semblante fechado, um
humor carregado que parecia impregnar o ar do carro. Benedita, percebendo que
não havia espaço para perguntas, limitou-se a olhar pela janela.
Só quando começaram a aproximar-se das placas que anunciavam Le
Mans é que o seu olhar se suavizou e um brilho ténue lhe voltou aos olhos.
Ao entrarem na cidade,
as placas que indicavam Circuit des 24 Heures du Mans despertaram um
brilho diferente nos olhos de Óscar. O caminho levou-os até à entrada do
complexo, onde o icónico pórtico azul e branco parecia guardar um templo do
automobilismo.
Logo ao estacionar
junto ao paddock, Benedita reparou no som inconfundível de motores a alta
rotação a ecoar pelo ar. Não eram carros de estrada normais. A vibração, o
cheiro a gasolina de alto octanagem e pneus quentes criavam uma atmosfera
densa, quase palpável.
— Está a decorrer um track
day — disse Óscar, com um sorriso de miúdo.
Dirigiu-se à
secretaria do evento e perguntou como poderia inscrever-se. O funcionário, um
homem de meia-idade com colete fluorescente, explicou-lhe que o dia já estava a
terminar e que só restavam vinte minutos de pista aberta.
— Não me importa —
respondeu Óscar, num tom decidido. — Ainda vou a tempo de aproveitar.
Minutos depois,
regressava com dois capacetes alugados, entregando um a Benedita.
— Vai ser divertido —
disse, embora o brilho nos olhos denunciasse algo mais: uma paixão quase
religiosa pela velocidade.
Entraram no carro.
Óscar fixou o capacete e ajustou o cinto de quatro pontos improvisado a partir
do de estrada. Benedita, ainda um pouco hesitante, imitou-o, ajeitando a correia
do capacete por baixo do queixo.
Passaram a barreira
que dava acesso à pista e, de repente, o mundo mudou. O asfalto largo e limpo,
as zebras pintadas com cores vivas e as arquibancadas vazias criavam um cenário
solene.
— Pronta? — perguntou
ele, já com o motor a roncar impaciente.
Ela mal teve tempo de
responder antes de sentir o corpo colar-se ao banco. O carro arrancou como se
tivesse acabado de ser libertado de correntes invisíveis. A aceleração
esmagou-a contra o encosto, e o som grave do motor subiu até um grito metálico.
A primeira curva
surgiu como um golpe súbito. Óscar travou no limite, o corpo dela projetou-se
para a frente e, logo a seguir, para o lado, enquanto ele contornava o ápice
com precisão. A vibração através do banco e do volante fazia o coração de
Benedita acelerar tanto quanto o motor.
Na reta principal, o
vento uivava junto ao carro e o velocímetro subia rápido demais para ela
acompanhar. O som do motor misturava-se com o eco metálico das barreiras e o
ruído abafado do capacete. Sentia-se como se estivesse a voar rente ao chão.
O carro parecia vivo —
um animal liberto, finalmente solto no seu habitat natural. Óscar guiava com
uma concentração fria, os olhos fixos nos pontos de travagem e nas linhas
perfeitas das curvas.
— Isto é… loucura! —
gritou ela, sem saber se ria ou gritava de medo.
— É liberdade! —
respondeu ele, elevando a voz acima do rugido do motor.
Nas últimas voltas,
Benedita deixou o medo dissolver-se em pura adrenalina. Cada curva, cada
aceleração, cada mudança de marcha era um soco de energia que a deixava sem
fôlego. Quando finalmente entraram nas boxes e o carro parou, ela percebeu que
estava a sorrir como não se lembrava de ter sorrido há muito tempo.
Óscar retirou o
capacete, respiração pesada, olhos brilhantes.
— E então? —
perguntou, como quem já sabe a resposta.
Ela abanou a cabeça,
ainda atordoada.
— Acho… que quero
outra volta.
Ele riu-se, um riso
breve mas genuíno, antes de desligar o motor e deixar que o silêncio da
mecânica a arrefecer preenchesse o ar.
O sorriso de Benedita
não se apagou nem quando saíram do circuito e voltaram à estrada. Era como se
ainda sentisse o vento a fustigar-lhe o rosto, o rugido do motor nos ouvidos e
aquela força invisível que a prendia ao banco nas curvas. Não conseguia parar de
falar da experiência, descrevendo cada curva, cada reta, cada sensação como se
quisesse fixar tudo na memória antes que o tempo a esbatesse.
Óscar ouvia,
divertido, deixando-a falar, intervindo apenas com um ou outro comentário
técnico que a fazia rir. Ele próprio estava mais descontraído, e havia algo no
brilho dela que parecia contagiar-lhe o humor.
Quando chegaram ao
centro de Le Mans, escolheram um restaurante de fachada discreta mas com cheiro
irresistível a comida acabada de fazer. Sentaram-se numa mesa junto à janela,
ainda com o lusco-fusco a pintar a rua de tons dourados. Ela pediu rillettes du Mans e ele optou por pintade fermière rôtie — pratos
simples, mas de sabor profundo. Entre garfadas, ela continuava a sorrir, como
se cada lembrança da pista lhe aquecesse o peito.
Depois do jantar,
caminharam alguns minutos até ao hotel que Óscar tinha reservado. Era um
edifício de linhas modernas, com um quarto amplo e duas camas individuais.
Benedita deixou-se cair numa delas, rindo sozinha, enquanto ele verificava
discretamente alguns papéis que tinha na mala do carro e os guardava.
Foi ela quem foi tomar
banho primeiro. A água quente pareceu intensificar a leveza que sentia desde a
tarde — como se o peso que carregava nos ombros desde há anos tivesse ficado
para trás, algures numa curva de alta velocidade. Saiu de cabelo molhado,
enrolada na toalha, e sentou-se na cama a secá-lo lentamente com o secador
enquanto Óscar entrava para o duche.
O som da água na casa
de banho misturava-se com o zumbido baixo do secador, e ela olhava de vez em
quando para a porta, como se o que queria dizer lhe pesasse na língua.
Quando ele saiu, com o
cabelo ainda húmido e uma t-shirt simples, ela pousou o secador, levantou-se e
foi até ele. Sem uma palavra, passou-lhe os braços à volta do tronco e encostou
o rosto ao peito.
— Obrigada — disse,
num sussurro carregado de sinceridade. — Obrigada pelo melhor dia de sempre.
Óscar ficou por um
momento imóvel, como se as palavras o apanhassem desprevenido. Depois,
retribuiu o abraço, firme mas silencioso, fechando os olhos por um instante.
Não respondeu com frases feitas; apenas pousou uma mão na nuca dela e ficou
assim, deixando que o gesto falasse por si.
Sem comentários:
Enviar um comentário
O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!