sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 24

 



O Corvette aproximou-se da escola no meio do burburinho de final de aulas. Os alunos saíam em grupos, mochilas a tiracolo, telemóveis na mão, rindo, empurrando-se, libertando em segundos a energia acumulada durante o dia. À beira do portão, Benedita estava sozinha, encostada a uma grade. Endireitou-se mal reconheceu a frente baixa e agressiva do carro vermelho.

Assim que o Corvette estacionou, não houve como ignorar as reações.

— Manooooo! Viste aquilo?! — exclamou um rapaz de boné virado ao contrário, quase deixando o telemóvel cair.

—É um Corvette C8! Juro! — outro, de olhos arregalados, já a apontar a câmara do telemóvel, filmava o carro como se fosse um OVNI.

Dois miúdos fizeram “thumbs up” para Óscar enquanto passavam, tentando parecer descontraídos mas rindo logo de seguida, nervosos, como se tivessem acabado de tocar num ícone vivo. Uma rapariga cochichou à amiga:

— “Apanha boleia daquele carro? Que sorte...”

Óscar assistiu a tudo aquilo com um esgar divertido. Quando Benedita se aproximou e entrou no carro, ele não resistiu a comentar:

— Ainda vais dar cabo da bateria dos telemóveis desta malta...

Benedita revirou os olhos e deixou escapar um suspiro resignado.

— Amanhã já sei o que me espera.

—O quê? — Óscar perguntou com um sorriso trocista.

— Toda a gente a querer falar comigo... mas não por minha causa. Por causa disto. — respondeu, apontando com o polegar para o Corvette.

Óscar soltou uma gargalhada curta e franca.

— Pois... suspeito que amanhã já serás bastante mais popular.

O carro arrancou e, durante alguns segundos, ficaram em silêncio, só o ronco grave do motor preenchia o espaço. Depois Benedita começou a falar.

— As disciplinas... acho que os professores são simpáticos, mas exigentes. E como já perdi uma montanha de matéria... não sei, não estou a ver como posso recuperar. Se calhar o ano já está perdido.

As palavras saíram-lhe num tom arrastado, quase derrotado, como se já tivesse aceitado o fracasso.

Óscar olhou para a frente, sem desviar os olhos da estrada, e respondeu pausadamente:

— O facto de ser extremamente difícil não o torna impossível. Mas depende de ti. Eu posso dar-te a mão... mas não posso dar os passos por ti.

Benedita ficou a olhar para ele de lado, absorvendo aquelas palavras como quem recebe algo novo, precioso, que ainda não sabe muito bem como guardar.

— E... achas que eu consigo? — perguntou, a voz baixa, carregada de uma vulnerabilidade quase infantil.

Desta vez, Óscar virou-se para ela por um instante e respondeu com firmeza tranquila:

— Sim. E ajudo-te no que for preciso. Mas só resulta se tu te empenhares.

Foi como se uma faísca acendesse algo dentro dela. Sentiu um calor no peito, um peso a desaparecer, uma estranha felicidade que parecia querer rebentar-lhe em lágrimas. Engoliu-as à pressa e fez uma promessa muda a si mesma: não iria desapontá-lo.

Já dentro da garagem, Óscar estacionou o Corvette e desligou o motor. O silêncio após o rugido soou quase solene.

Ele voltou-se para ela e acrescentou, num tom mais prático:

— Pede à Clara para te ajudar nos estudos. Ela tem jeito para ensinar e paciência.

Benedita hesitou, mordendo o lábio.

— Achas que ela aceitaria?

Óscar sorriu, meio enigmático.

— Só há uma maneira de saber... pergunta-lhe.

Ela assentiu, ainda incerta, mas já a imaginar a conversa que teria de ter.

Óscar e Benedita iam a contornar a casa, rumo à cave, quando o som de uma janela a abrir quebrou o silêncio.

Na cozinha, surgiu Laura, apoiada no parapeito. O olhar pousou primeiro em Benedita, quase maternal, mas não conseguiu disfarçar um relance nervoso na direção de Óscar.

— Já lanchaste, Benedita? Tens fome? — perguntou, num tom amável.

Benedita abanou a cabeça.

— Não... ia lanchar agora.

Laura apressou-se a aproveitar a deixa:

— Acabei de fazer um bolo de iogurte, ainda está quente. Estou a fazer chá também. Se quiseres, é só entrares.

Benedita hesitou, e voltou-se para Óscar, como que a pedir-lhe uma aprovação silenciosa.

Ele manteve o rosto sério, mas os cantos da boca traíram-no com um breve sorriso.

— O bolo da Laura é delicioso. Devias aproveitar.

Laura piscou os olhos, surpreendida. Aproveitou para acrescentar:

— E tu, Óscar... não precisas de ser convidado. Esta é — sempre foi — a tua casa.

Aquelas palavras pairaram no ar, pesadas. Benedita, sentindo a tensão, ergueu os olhos para Óscar com um pedido quase suplicante para não entrar sozinha.

Óscar respirou fundo, olhou primeiro para Benedita, depois para Laura, e por fim cedeu:

— Na verdade... o bolo até vale a pena. — disse, piscando o olho a Benedita.

Mudou de direção e seguiu Benedita para a cozinha, resignado, mas curioso.

Entraram na cozinha. O ambiente estava impregnado com o cheiro doce do bolo ainda quente, misturado ao aroma subtil do chá acabado de fazer.

Óscar dirigiu-se a um armário, abriu a porta sem pedir licença — como quem conhece cada canto daquela casa — e retirou de lá uma garrafa e um copo. Com um gesto rápido, encheu-o, piscando o olho a Benedita.

— Prefiro outro tipo de chá.

Ela soltou uma risada cúmplice, abafada pela mão.

Sentaram-se os três à mesa. O silêncio que pairava não era de hostilidade aberta, mas de uma tensão frágil, quase palpável. Laura mantinha os gestos suaves, cuidadosos, como quem anda sobre gelo fino e tem medo de o quebrar.

Empurrou a travessa com o bolo para perto de Benedita:

— Anda, prova. Está mesmo bom agora que ainda está quente.

Benedita sorriu, cortou uma fatia generosa e mordeu com gosto. Os olhos brilharam.

— Está delicioso! Sério, está mesmo bom!

Laura deixou escapar um sorriso genuíno.

— Se quiseres, eu ensino-te a receita.

— Claro que quero! — respondeu Benedita com entusiasmo imediato.

Laura pousou a boleira mais perto de Óscar, numa espécie de convite silencioso. Ele olhou, hesitou um instante, depois serviu-se de uma fatia também. Só então Laura cortou a sua.

Enquanto Benedita falava animada, sem poupar elogios, Laura deixou-se ficar uns segundos a observar Óscar. Ele não lhe devolveu o olhar. O rosto mantinha-se sério, distante... mas, quando os olhos se desviavam para Benedita, Laura surpreendeu nele um sorriso suave, quase imperceptível, de quem se deixa enternecer com a alegria simples da rapariga.

Esse detalhe, tão pequeno, foi-lhe como uma punhalada. O aperto no peito não era ciúme de Benedita, mas a dor crua de ver Óscar ali tão perto, partilhando a mesa, e ao mesmo tempo sentir a distância entre eles como um abismo intransponível.

Quando a última migalha desapareceu dos pratos, Benedita limpou os lábios com o guardanapo e levantou-se com energia:

— Tenho mesmo de ir estudar…

Óscar acompanhou o gesto, recolhendo o copo que tinha usado. Os dois caminharam lado a lado para a porta da cozinha.

Foi então que, a meio do passo, Óscar parou. Voltou-se ligeiramente para Laura, que ainda estava sentada, e fixou-a com um olhar firme.

— Obrigado.

A palavra soou simples, mas carregada de um peso diferente. O tom não tinha nada de formalidade fria; havia sinceridade e uma profundidade inesperada.

Laura sentiu-se desarmada. Percebeu de imediato que aquele agradecimento não era apenas pelo bolo, nem pelo chá. Era pela forma como ela tinha recebido Benedita, pelo cuidado com que a tratara, pela delicadeza com que se esforçara para lhe dar lugar à mesa.

O coração apertou-lhe de emoção.

Óscar desviou o olhar e voltou a caminhar para fora da cozinha. Laura seguiu-o com os olhos, como se cada passo dele a afastasse ainda mais. E, movida por um impulso, arriscou:

— Óscar…

Ele parou, mas não se virou.

Laura sentiu a voz prender-se na garganta. Queria dizer-lhe tudo — pedir-lhe desculpa, explicar, gritar que o amava, que ainda o amava desesperadamente. Mas nada daquilo saiu. Só o nó, a dificuldade de respirar. No fim, conseguiu apenas:

— Se quiseres… eu trato do jantar. Assim descansas um pouco. A Benedita pode estudar sem preocupações.

Houve um segundo de silêncio pesado, como se o ar tivesse parado.

Óscar manteve-se de costas, mas respondeu de forma calma, quase seca:

— Está bem. Avisa quando estiver pronto.

E seguiu, deixando a cozinha.

Laura ficou imóvel, com o guardanapo ainda entre os dedos. Mas dentro dela, contra toda a razão, contra tudo o que conhecia da frieza dele… uma pequena chama reacendeu-se. Uma esperança frágil, mas viva.


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