Óscar encostou-se na cadeira do gabinete, olhou para a secretária coberta
de pastas e suspirou. A manhã tinha sido uma maratona.
Assinaturas pendentes, aprovações que esperavam desde que partira,
decisões que ninguém quis tomar sem ele. Foi despacho atrás de despacho,
reunião atrás de reunião.
Quando finalmente se viu livre, já passava do meio-dia. Aceitou o
convite de Rogério Antunes para almoçarem juntos e ainda trouxe Dário Sampaio,
o advogado da empresa e amigo de infância.
No restaurante, depois de encomendarem, foi Rogério quem abriu a
conversa:
— Então, a situação da família de acolhimento… — disse, pousando o
guardanapo no colo. — O processo está no início, Óscar. Por agora não há
grandes novidades.
— Está tudo a andar — completou Dário, bebendo um gole de água. —
Mas não esperes nada rápido.
Óscar anuiu, mexendo o talher no prato. Depois, largou a pergunta
que gelou a mesa:
— E num divórcio? Quais seriam as minhas perspetivas?
Os dois pararam. Rogério ergueu as sobrancelhas, surpreso. Dário
inclinou-se para a frente:
— Espera aí… estás a falar a sério?
— Estou.
— Mas… tu e a Laura… — Dário abanou a cabeça — sempre vos vi como
o casal perfeito. O que é que se passou?
— Não quero entrar em pormenores.
Rogério encostou-se, escolhendo as palavras:
— Se for litigioso… divisão de ativos, possíveis problemas na
firma, partilha da casa…
— …e pensão de alimentos — completou Dário. — Como ela não
trabalha, é quase certo que vais ter de pagar.
Óscar passou a mão pela cara, visivelmente contrariado.
— Nada disso me agrada.
— Pois — disse Rogério. — Mas é o que há, a não ser que consigas
um acordo amigável.
— O que duvido — cortou Óscar, seco.
Dário deixou o garfo no prato e olhou-o sério:
— Então, prepara-te. Vai ser uma luta feia.
Óscar não respondeu. Limitou-se a beber o resto do café e a pedir
a conta.
Antes de saírem, Óscar apoiou os cotovelos na mesa e olhou para
Rogério:
— E quanto às hipóteses de obter a guarda permanente da Benedita?
Rogério ficou em silêncio uns segundos, pensativo. — Depende de
muita coisa… Queres adotá-la?
Óscar hesitou.
— Não sei ainda. Mas pelo menos, se conseguir a guarda permanente,
sei que posso protegê-la até atingir a maioridade.
Dário deixou escapar uma gargalhada curta.
— És sempre o mesmo… — disse, abanando a cabeça com um meio
sorriso.
Levantaram-se, e já à porta do restaurante, Rogério virou-se para
Dário:
— Começa a preparar os papéis para o pedido de guarda permanente
da menor. Vamos meter isto a andar.
Dário acenou, ajustando o casaco.
— Trato disso já amanhã.
Saíram para a rua, cada um seguindo o seu caminho, mas com um novo
processo em andamento.
Óscar chegou a casa a meio da tarde e encostou o Corvette na
garagem. O carro da filha ainda lá estava, agora parado em frente à porta que
escondia o Tesla. Olhou para o “monumento”, parado como se lhe fizesse troça.
Saiu do Corvette, pegou numa chave de fenda que estava pousada numa bancada
lateral e, sem pressa, fez um risco longo e vincado de cada lado, de uma ponta
à outra.
Largou a chave de fenda no mesmo sítio e saiu da garagem. Entrou
na casa principal como tinha feito milhares de vezes ao longo dos anos. Não se
surpreendeu ao ver Benedita sentada com Laura e Clara na sala. Não disse nada.
Passou por elas e subiu as escadas em silêncio.
Laura e Clara trocaram um olhar e foram atrás dele, chamando-o:
— Óscar… espera!
— Pai, podemos falar?
Ele não respondeu. Entrou no quarto, trancou a porta e pegou num
saco de desporto. Começou a encher com roupas e sapatos, metódico, até se dar
por satisfeito. Destrancou a porta.
Do outro lado, Laura e Clara esperavam-no, bloqueando-lhe a
passagem.
— Óscar, por favor… — começou Laura.
— Pai, não sejas assim… — tentou Clara.
Quando lhe agarraram o braço, a reação foi instantânea, explosiva,
como nunca tinham visto:
— NÃO ME TOQUEM!
As duas ficaram imóveis, apanhadas de surpresa pela violência da
voz dele. Óscar avançou, passando entre elas, desceu as escadas e virou-se para
Benedita, que estava na sala a olhar a cena com atenção.
— Vens?
Ela levantou-se de imediato e seguiu-o até à cave isolada.
Assim que a porta da
cave se fechou atrás deles, Óscar mudou. A rigidez desapareceu, os ombros
relaxaram e o rosto de pedra que levara até ali desfez-se. Olhou para Benedita
e perguntou com simplicidade:
— Então… como foi o
teu dia?
Benedita contou-lhe
que Laura a tinha acordado de manhã, a convidara para o pequeno-almoço e que aí
conhecera Clara. Falou de como as duas lhe fizeram perguntas com curiosidade,
quase em tom de entrevista.
Óscar ouviu e
limitou-se a comentar:
— É normal.
Ela continuou:
contara-lhes dos sítios por onde tinham passado na viagem, acompanhara-as às
compras, almoçara com elas.
Óscar inclinou-se para
a frente, interessado:
— E o que lhes
disseste exatamente da viagem?
— Falei dos sítios… só
isso. — respondeu Benedita.
Ele acenou,
satisfeito.
— Fizeste bem.
Depois de um silêncio
breve, perguntou-lhe:
— E… o que achaste da
Laura e da Clara?
Benedita hesitou um
segundo, mas respondeu:
— Foram simpáticas.
Acolheram-me bem.
Óscar deixou escapar
um sorriso pequeno.
— Não esperava outra
coisa.
Benedita olhou-o, como
se a dúvida lhe pesasse demasiado para ficar calada:
— Tu… tu odeias a
Laura e a Clara?
A pergunta fez Óscar
ficar em silêncio. O olhar perdeu-se por um instante antes de responder, com
calma mas firmeza:
— Não. Eu não odeio
quem elas são. Pelo contrário… são as duas pessoas no mundo que mais significam
para mim.
Benedita ficou a
observá-lo.
Ele suspirou fundo e
acrescentou:
— O que eu odeio é o
que fizeram… e o facto de ainda não terem compreendido o que provocaram.
Óscar levantou-se,
como que a encerrar o assunto anterior, e tirou uma pequena caixa de dentro de
um saco. Estendeu-a a Benedita.
— Toma.
Ela recebeu-a com
curiosidade, abriu e ficou de olhos muito abertos ao ver um smartphone novo.
Não disse nada de imediato.
— Assim estás
contactável. — explicou ele. — E também podes ligar-me quando precisares.
Benedita sorriu, ainda
surpreendida.
— Ah… e outra coisa. —
continuou. — Falei com alguns amigos durante a tarde. Consegui transferir o teu
processo escolar para uma escola aqui perto. Como tenho a guarda temporária,
não houve problema. Começas amanhã. Por isso convém deitares-te cedo, vais ter
de madrugar.
Ela acenou, ainda sem
palavras.
Óscar mudou de tom,
mais leve:
— E agora… o que é que
te apetece jantar? Para eu reservar um restaurante.
Benedita abanou a
cabeça.
— Não é preciso. Eu
posso cozinhar qualquer coisa. Quando fomos às compras, a Laura insistiu para
que comprasse algumas coisas para trazer para aqui… até disse que tinha a
certeza que tu não ias voltar tão cedo à casa principal.
Óscar ergueu uma
sobrancelha, meio divertido.
— Ah é? E tu sabes
cozinhar?
— Sei. — respondeu
convicta.
Ele soltou um riso
curto.
— Agora deixaste-me
curioso. Vamos lá ver esses teus dotes.
Benedita foi até à
kitchenette, partiu ovos, cortou fiambre, queijo, cebola e salsa. Movia-se com
uma segurança inesperada. Pouco depois, colocou no prato uma omelette dourada e
bem recheada.
Óscar provou a
primeira garfada e, com um ar surpreendido, admitiu:
— Está deliciosa,
verdade seja dita.
Ela sorriu,
satisfeita.
Jantaram os dois sem
pressa, e depois ficaram no sofá durante algum tempo. Óscar mostrou-lhe como
configurar e explorar o novo telefone, pacientemente. Quando se deu por
satisfeito, levantou-se.
— Está na hora de
irmos para os nossos quartos. Amanhã o dia começa cedo.
Ambos seguiram para os
respetivos quartos, o cansaço a pesar, mas o ambiente mais leve do que antes.
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