quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 17

 



O sol mal começara a tingir de dourado as colinas quando Benedita abriu os olhos. O silêncio da pequena casa estava quebrado apenas por um som suave — o do metal da cafeteira pousada sobre o fogão. Óscar já estava vestido, cabelo puxado para trás, a barba aparada, olhar vivo. Mas havia nele algo diferente: por baixo da aparência controlada, havia aquele nervoso miudinho que se sente antes de um momento que é ao mesmo tempo sonho e provação.

Ela reparou no modo como ele mexia o café — sem pressa, mas também sem distração, como se cada gesto fizesse parte de um ritual para se concentrar.

— Dormiste bem? — perguntou ele, servindo-lhe uma chávena.

— Dormi… e tu? — devolveu ela, ainda meio ensonada.

— Pouco… mas hoje não é dia para dormir. — E aquele leve sorriso, misto de ansiedade e excitação, denunciava-lhe o estado de espírito.

Pouco depois, já no Corvette, a estrada estreita que levava ao complexo de Nürburgring obrigava-o a abrandar. Óscar estava compenetrado, o volante firme nas mãos, o olhar sempre adiante, como se estivesse a medir cada curva antes de a encontrar. Benedita olhava a paisagem: vilas pequenas de telhados escuros, campos verdes salpicados de flores, e, sobretudo, uma quantidade invulgar de máquinas de sonho. Porsches, Ferraris, BMWs M, alguns modestos Golfs GTI — todos com aquele ar de estarem ali por uma razão.

— Parece que a aldeia inteira é uma montra de luxo. — comentou ela, admirada.

— Aqui… não interessa o carro que tens. — disse Óscar. — O que importa é teres coragem para o pôr naquela pista.

Chegaram ao portão principal do complexo. Óscar apresentou a carta de condução — documento que, ali, era sagrado — e, antes de qualquer coisa, houve a inspeção: o carro tinha de cumprir as normas alemãs. Pressão dos pneus, estado dos travões, ruído do escape. Tudo aprovado.

Depois veio o briefing de segurança. Numa sala ampla, com janelas que deixavam entrar a luz suave da manhã, um instrutor explicava as regras com voz firme: sem ultrapassagens pela direita, uso obrigatório de piscas para indicar a linha, respeito pelos mais rápidos, e atenção redobrada às bandeiras. Benedita observava a sala cheia: havia homens e mulheres, jovens e veteranos, alguns com ar de pilotos, outros simples entusiastas. Carros modestos ao lado de supercarros que valiam fortunas — mas todos com o mesmo brilho nos olhos.

— Isto é uma família, mesmo que não nos conheçamos. — murmurou Óscar, quase para si próprio.

No final, comprou o passe para cinco voltas. Recebeu um cartão, simples, mas que naquele momento parecia ter o peso de um bilhete para um mundo à parte. Voltaram ao carro. Óscar respirou fundo e conduziu até às cancelas. Encostou o cartão ao leitor; a luz ficou verde, e a cancela subiu com um clique metálico. Avançaram devagar, serpentearam pelos pinos dispostos em S, e então…

O mundo explodiu em velocidade.

O motor rugiu, o Corvette foi sugado para a pista como se tivesse fome. A primeira curva apareceu mais cedo do que Benedita esperava. Depois uma sequência rápida, esquerda-direita, subida. Árvores cerradas de ambos os lados criavam um túnel verde que se desfazia num clarão de céu aberto.

Óscar guiava com força, mas também com cautela. Ainda assim, alguns carros mais rápidos passavam como flechas — um Porsche GT3, um BMW M4 preparado. Houve um momento em que um Audi R8 apareceu no retrovisor tão depressa que Benedita quase se assustou.

— Calma… — disse Óscar, mantendo a linha e deixando espaço. — Aqui a regra é sobreviver.

Houve pequenos erros: uma travagem demasiado tardia que obrigou o carro a corrigir com a traseira ligeiramente solta, uma aproximação demasiado otimista a uma curva cega. Mas a tecnologia ajudava, e a adrenalina parecia afinar os sentidos de Óscar.

O famoso Karussell, curva inclinada de cimento rugoso, chegou como um soco no estômago. O carro mergulhou na parede interior, aguentou o embate, e saiu disparado como se tivesse ganho asas.

No fim dos vinte quilómetros, quando regressaram ao parque, Óscar estava ofegante, mas sorria como um miúdo.

— Uma. — disse, piscando-lhe o olho. — Faltam quatro.

E, sem grande pausa, voltou à cancela para mais uma volta.

A segunda volta começou com o mesmo ritual: cartão no leitor, luz verde, cancela a subir, pinos em S. Mas para Benedita, desta vez, a sensação era diferente. Já sabia o que esperar — ou pensava que sabia.

Mal saíram para a reta inicial, percebeu que Óscar estava mais solto. O pé direito dele parecia mais pesado, e a confiança que trazia da primeira volta traduzia-se em curvas atacadas com mais decisão. A paisagem corria de novo ao lado deles, um borrão verde e cinzento, mas agora ela reparava menos nos detalhes e mais no que sentia.

O coração batia-lhe rápido, não só pelo medo, mas pela mistura estranha de fascínio e vulnerabilidade. Sabia que ali, um erro, por mais pequeno que fosse, podia custar caro. A cada curva cega, imaginava o que estaria do outro lado. Sentia o corpo ser empurrado contra o banco nas travagens fortes, os músculos tensos, os dedos cravados no apoio da porta.

Óscar mantinha-se firme, mas ela percebia quando os ombros dele se contraíam antes de um ponto crítico, ou quando o olhar varria rapidamente os espelhos. Uma ultrapassagem arriscada de um Lotus amarelo quase a fez prender a respiração; só voltou a soltar o ar quando o carro reapareceu à frente deles, já distante.

— Confia. — disse Óscar, sem tirar os olhos da pista. — O carro quer isto tanto quanto eu.

Ela não respondeu, mas percebeu que havia verdade ali. Naquele momento, homem e máquina pareciam falar a mesma língua.

O Karussell voltou a chegar, agora menos como um susto e mais como um teste. Entraram nele com mais velocidade, o corpo a colar-se à parede inclinada, e quando saíram disparados para a reta seguinte, Benedita soltou uma gargalhada nervosa, surpreendendo-se a si própria.

A volta terminou num misto de alívio e… pena. Pena de não durar mais, de o instante já estar a transformar-se em memória. Óscar estacionou, desligou o motor, e por alguns segundos ficaram apenas ali, a ouvir o estalar quente do metal a arrefecer.

— E agora? — perguntou ela, ainda a recuperar o fôlego.

— Agora… — ele respirou fundo, quase num suspiro — vamos comer.

Saíram do complexo e meteram-se por estradas secundárias. A velocidade tinha ficado para trás; agora o carro deslizava devagar por entre aldeias silenciosas, algumas tão pequenas que pareciam caber numa única fotografia. O verde das colinas era interrompido por casas de madeira escura com floreiras coloridas nas janelas.

Foi numa dessas aldeias, quase esquecida do mundo, que encontraram o pequeno restaurante. Não havia letreiros chamativos, apenas uma porta de madeira e um cheiro irresistível a comida caseira. Lá dentro, mesas de madeira maciça, toalhas de linho gasto, e uma senhora idosa de avental a sorrir com a calma de quem não tem pressa para nada.

Pediram o que ela recomendou: Eisbein — perna de porco cozida lentamente, com chucrute e batatas salteadas em manteiga — e para acompanhar, uma cerveja artesanal local, fresca e levemente turva.

— Isto é… — Benedita fechou os olhos no primeiro trago — quase tão bom como aquela curva inclinada.

Óscar riu-se.

— Quase.

O almoço prolongou-se mais do que esperavam, embalado pelo sabor da comida e pela tranquilidade daquele lugar onde o tempo parecia ter parado. Quando saíram, o sol já ia alto, e a tarde ainda tinha espaço para mais estradas e mais conversas.

Voltaram à pista já bem depois do almoço, com o Corvette a ronronar mais baixo, como se também tivesse aproveitado para descansar. O ar da tarde estava mais fresco, e a luz começava a ganhar aquele tom dourado que antecede o entardecer.

As duas voltas seguintes passaram num crescendo quase natural. Em cada entrada, Óscar parecia mais afinado, mais preciso, como se o carro fosse agora uma extensão perfeita dos seus movimentos. Nas curvas, já não havia hesitações, apenas a linha certa, o ponto exato para travar e a força calculada para acelerar de novo.

Benedita sentia a diferença no corpo: menos solavancos, menos travagens bruscas, mais fluidez. E, no entanto, também percebia que a confiança trazia um certo perigo — aquele impulso de querer sempre um pouco mais, de entrar um pouco mais rápido, de sair um pouco mais cedo da curva.

Quando regressaram à área de estacionamento depois da segunda volta da tarde, Óscar tirou o capacete e ficou em silêncio por alguns segundos, o olhar fixo na pista à distância. Depois virou-se para ela, sério, mas com um brilho quase febril nos olhos.

— Agora… a última é para valer.

Não havia desafio na voz, apenas determinação. Ela não respondeu, apenas apertou mais o cinto, como se se preparasse para atravessar uma tempestade.

Fizeram-se à pista com o sol já a descer por trás das colinas das Eifel. As sombras alongavam-se, riscando o asfalto com faixas escuras, enquanto raios dourados se infiltravam por entre as árvores. O jogo de luz e sombra transformava cada curva numa revelação, e Benedita, mesmo com o corpo colado ao banco pela força da aceleração, não conseguia deixar de se maravilhar. Havia momentos em que o traçado desaparecia na sombra para depois emergir num clarão quase místico, como se a pista fosse um ser vivo, respirando luz e escuridão.

Óscar, no entanto, estava inteiramente focado. O volante firme nas mãos, os olhos a medir cada centímetro da estrada, o som do motor a misturar-se com o da sua respiração controlada. Foi então que, numa reta mais longa, um Porsche 911 Turbo negro surgiu no retrovisor, seguido de perto por um Ferrari F80 vermelho, brilhando como uma lâmina ao sol.

O que começou como coincidência transformou-se, sem uma palavra, numa espécie de competição amigável. Curva após curva, os três carros pareciam medir forças, cada condutor a testar os limites, não para humilhar o outro, mas para partilhar o prazer de estar ali, no limite.

Quando a volta terminou, os três estacionaram quase lado a lado, o calor dos motores a subir em ondas pelo ar fresco da tarde. Óscar saiu do carro ainda com o sorriso que não lhe cabia no rosto.

O condutor do Porsche, um alemão loiro de rosto aberto e sorriso fácil, apresentou-se com um aperto de mão firme.

Markus. Bela condução.

O do Ferrari, um inglês alto e magro, com sotaque marcado e olhos claros, estendeu a mão logo de seguida.

James. Quase te apanhava naquela última curva… quase.

Riram-se todos, e a conversa fluiu como se fossem velhos conhecidos. Mostraram os carros uns aos outros, comentaram detalhes técnicos, histórias de pistas e viagens. Ali, não havia nacionalidades, nem diferenças de vida — apenas a ligação invisível e poderosa de quem compreende o fascínio por máquinas e velocidade.

Seguindo o embalo da conversa no parque de estacionamento, Markus sugeriu:

— Há um restaurante a dez minutos daqui, pequeno mas excelente. Se quiserem, vamos todos.

Óscar olhou para Benedita, que assentiu com um sorriso, ainda com o rubor da adrenalina nas faces.

— Vamos. — disse ele. — Mas se me prometerem que não vão falar de travões cerâmicos durante todo o jantar.

Riram-se, e seguiram em comboio até uma aldeia próxima. O restaurante, de fachada em pedra e madeira, parecia tirado de um postal antigo, com janelas pequenas e cortinas de renda. Lá dentro, o ambiente era quente, iluminado por candeeiros de luz amarela suave e com o aroma de carne grelhada e pão acabado de cozer a encher o ar.

Sentaram-se os cinco a uma mesa junto à janela, e Markus chamou a empregada pelo nome, como quem já era cliente habitual. Óscar, ao apresentar Benedita, fê-lo sem hesitar:

— Esta é a minha filha, Benedita. — disse, num tom tão natural que ela sentiu um aperto quente no peito.

James, curioso, inclinou-se para ela.

— Então, primeira vez em Nürburgring?

— Primeira vez até na Alemanha. — respondeu ela, sorrindo. — Mas acho que não podia ter começado melhor.

O jantar começou com pratos de Flammkuchen, finas massas cobertas de creme fresco, cebola e bacon fumado, que desapareceram quase tão depressa como chegaram. Markus contou como, desde os 18 anos, fazia peregrinações anuais à pista, sempre com um carro diferente, e James falou das corridas amadoras em que participava em Inglaterra, entre viagens de negócios.

Quando a conversa se voltou para Óscar, Markus perguntou:

— E tu? O que te trouxe aqui, amigo?

Óscar pousou calmamente o garfo, deu um gole na cerveja artesanal, e respondeu com um meio-sorriso.

— Digamos que… precisava de um pouco de estrada.

James insistiu:

— Estrada há em todo o lado. Nürburgring é… outra coisa.

Óscar encolheu os ombros, lançando um olhar rápido e quase cúmplice a Benedita.

— É um lugar onde se vem para encontrar qualquer coisa… ou perder. — disse, deixando a frase morrer no ar.

Benedita limitava-se a ouvir, absorvendo aquele momento como quem grava uma memória preciosa. Era estranho como, num lugar onde todos se conheciam há poucas horas, o ambiente era de camaradagem antiga. Óscar, mais solto, até se riu alto algumas vezes — algo raro desde que ela o conhecia.

Quando as sobremesas chegaram — strudel de maçã com creme — a noite já ia avançada. Markus pagou uma rodada final de schnapps para brindar “aos encontros improváveis” e James levantou o copo:

— E às voltas que ainda hão de vir.

Saíram para o ar fresco da noite, despediram-se com apertos de mão e promessas de se encontrarem outra vez na pista. Óscar abriu a porta do Corvette para Benedita, que entrou ainda com um sorriso leve. Ele contornou o carro, sentou-se, e antes de ligar o motor ficou por um momento a olhar para as luzes distantes da pista.

— Foi um bom dia. — disse ele.

— Foi um dia incrível. — respondeu ela, com a certeza de que não o esqueceria.

O motor rugiu suave, e partiram de volta ao pequeno Airbnb, embalados por um silêncio confortável que dispensava qualquer palavra.

No regresso, o ronronar do Corvette preenchia o silêncio confortável que se instalara depois do jantar. Foi já na estrada para o Airbnb que Óscar, com o olhar fixo no negro da noite à frente, quebrou a quietude:

— Amanhã começamos a viagem de volta.

As palavras, ditas num tom calmo, tiveram o efeito de apagar um pouco do brilho que ainda dançava nos olhos de Benedita. Ela desviou o olhar para a janela, como se quisesse guardar para si a pequena mágoa que sentiu.

Óscar notou. Não comentou, mas inspirou fundo antes de prosseguir:

— Sabes… quando és uma pessoa de bem, quando tentas viver com princípios, por vezes perdes coisas a curto prazo. — falou devagar, como se pesasse cada sílaba. — Mas a longo prazo… a maneira como os outros te vêem é diferente.

Benedita manteve-se em silêncio, ouvindo.

— Pôr de lado o que é certo… ignorar a consciência… pode até dar-te um ganho imediato. Mas isso não dura. — continuou. — Mais cedo ou mais tarde, as pessoas percebem quem és. O que fazes, como ages… e passam a conhecer-te por isso. E não há máscara que aguente para sempre.

Ela olhou-o de soslaio, percebendo que aquelas palavras eram mais do que uma lição — eram uma confissão disfarçada.

— É por isso que, quando surgiu a tua situação… — prosseguiu, sem tirar os olhos da estrada — um juiz amigo meu, que me conhece há anos, não hesitou em dar-me a tua guarda temporária. Pelo menos até investigarem a fundo a tua família de acolhimento.

Por um instante, Benedita ficou imóvel. Depois, a alegria voltou-lhe aos olhos com a força de um relâmpago. Só não se atirou para lhe dar um abraço porque ele ia a conduzir, mas a vontade estava ali, a latejar-lhe nas mãos.

O resto da viagem fez-se com o silêncio bom de quem não precisa de mais palavras. Chegaram ao pequeno Airbnb e prepararam-se para a noite, cada um imerso nos próprios pensamentos, já com a partida do dia seguinte a pairar no horizonte.


Sem comentários:

Enviar um comentário

O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!