Óscar acendeu um
interruptor junto à porta. As lâmpadas nuas penduradas do teto ganharam vida,
rasgando a escuridão com uma luz crua e amarelada. Benedita semicerrava os olhos,
ajustando-se ao clarão repentino.
— Vais deixá-la ali? —
perguntou, ainda de pé junto à porta, num tom que oscilava entre a curiosidade
e a incredulidade.
O rosto sério de Óscar
manteve-se imóvel por um instante, mas um pequeno sorriso, quase impercetível,
surgiu no canto dos lábios.
— É uma escolha dela.
— respondeu, tranquilo. — Pode sempre ir-se embora.
Agora que via o espaço
com clareza, Benedita ficou de boca ligeiramente aberta. A cave era muito maior
do que esperava — um espaço amplo que se estendia até aos quartos ao fundo. Num
canto, uma kitchenette nova com bancadas limpas e uma ilha de cozinha ao
centro; dali, o chão transitava suavemente para uma ampla área comum. Duas
portas ao fundo davam acesso a duas suítes, cada uma com guarda-roupa e casa de
banho privativa.
Apesar do tamanho, a
falta de decoração saltava à vista. As camas, ainda com plásticos a envolver os
colchões, estavam encostadas às paredes. Na cozinha, os eletrodomésticos
brilhavam, mas pareciam nunca ter sido usados. Um sofá enorme ocupava a zona
comum, isolado no meio do espaço, e no teto, apenas lâmpadas simples penduradas
por fios.
— Minimalista… —
comentou Benedita, com ironia, mas depois, percorrendo o espaço com o olhar,
acrescentou com sincera admiração: — Mas enorme.
Óscar fechou a porta e
pousou a sua pequena mala junto a uma parede.
— A cave tem o tamanho
todo da casa lá em cima. — disse, enquanto tirava o casaco. — Espaço é a única
coisa que não falta aqui.
Deixaram a bagagem no
corredor entre os dois quartos. Óscar fez um gesto para ela.
— Escolhe tu.
Benedita optou pela
suíte mais próxima da área comum, e Óscar ficou com a outra. Pouco depois, ele
foi até à cozinha, tirou a pizza da caixa e colocou-a no forno pré-aquecido. O
cheiro começou a espalhar-se pelo ar, misturando-se com o silêncio pesado que
pairava no espaço novo.
A pizza já ia nas
últimas fatias quando se ouviu um bater seco na porta. Benedita ergueu os
olhos, surpresa.
— Não vais ver quem é?
— perguntou, limpando as mãos a um guardanapo.
Óscar nem levantou a
cabeça do prato.
— Deve ser a Laura.
Não estou interessado.
A curiosidade
venceu-a. Levantou-se, caminhou até à porta e espreitou pelo óculo. Voltou-se
para ele, intrigada.
— Não é a Laura.
Óscar, ainda de garfo
na mão, levantou uma sobrancelha e fixou o olhar na porta. Só depois de um par
de segundos se levantou. Não espreitou. Girou a chave e abriu a porta com
firmeza.
O ar dele mudou —
aquela expressão de pedra, impenetrável.
— O que é que tu
queres? — perguntou, seco como uma lâmina.
Do outro lado, Clara
ficou de repente mais pequena. A brusquidão dele atingiu-a como um soco
invisível, e por um instante pareceu não saber onde pôr os olhos. Mas
recompôs-se depressa, endireitando-se ligeiramente.
— Voltaste… — disse,
num tom que misturava surpresa, espanto e… quase uma pergunta.
— Sim. E? — respondeu
ele, a voz sem qualquer calor.
Clara engoliu em seco,
calou-se por um momento, mas acabou por dizer:
— Temos de falar.
Óscar soltou uma
gargalhada breve, carregada de ironia, que ecoou na cave.
— Temos? —
repetiu, cuspindo a palavra como se lhe soubesse mal. Ficou a encará-la com uma
intensidade que a fez dar um passo involuntário para trás. — Que dívida é que
achas que eu tenho contigo… ou com seja quem for… para ser obrigado a alguma
coisa?
Ela abriu a boca, mas
nenhuma palavra saiu. O silêncio entre os dois pesou como chumbo.
Clara respirou fundo,
tentando recompor-se.
— Pai… tu percebeste
tudo mal… — disse, num tom quase suplicante.
Óscar nem pestanejou.
— Eu percebi mal? — a
voz dele era cortante, crua. — Tu ajudaste a tua mãe a arranjar um amante?
Clara recuou meio
passo, hesitando.
— Não era um amante…
era só… para preencher aquele vazio que ela sentia. Não havia ali sentimentos…
Óscar inclinou-se
ligeiramente para a frente, o olhar fixo, implacável.
— Isto não tem nada a
ver com sexo. — disse, frio como gelo.
As palavras caíram
como um golpe seco. Clara ficou de boca aberta, atónita, sem saber o que
responder. O silêncio prolongou-se, pesado, sufocante.
Tentando quebrar o
impasse, Clara desviou o olhar por cima do ombro dele. Reparou em Benedita,
meio encolhida junto à parede, como se quisesse fundir-se com o papel de parede
e desaparecer.
— Quem é aquela? —
perguntou, surpreendida.
Nesse instante, Óscar
fechou-lhe a porta na cara.
Benedita observou-o
voltar para a mesa com uma expressão interrogativa, mas antes de abrir a boca
acabou por responder à sua própria pergunta, com um meio sorriso malandro:
— Já sei… pode sempre
ir-se embora.
Ele não respondeu, mas
um canto do lábio ergueu-se. Os dois sorriram. Prepararam as camas no silêncio
confortável que se tinha instalado, e acabaram vencidos pelo cansaço da viagem.
Na manhã seguinte,
Óscar acordou cedo. Foi até ao quarto de Benedita e bateu à porta.
— Acorda. — disse-lhe,
só para dar algumas indicações. — Não te levantes, deixa-te estar. Eu vou sair.
Ficas por aqui, dentro da propriedade. Se a Laura ou a Clara aparecerem e te
sentires ameaçada, não abras a porta. Mas se forem amigáveis, não cries barreiras.
— Está bem. — murmurou
ela, ainda ensonada.
— Acredito que não te
vão tratar mal… mas tem cuidado com o que partilhas.
Saiu, atravessou o
jardim e entrou na garagem. O sorriso desapareceu assim que viu o Corvette
bloqueado pelo carro da filha, estacionado mesmo à entrada da garagem do lado
que o Corvette estava.
Suspirou, abriu as
portas da garagem e tirou o Tesla, conduzindo-o lentamente para fora… até o
estacionar no jardim da frente, por cima das roseiras de Laura. O canto do
lábio ergueu-se de novo, desta vez num sorriso satisfeito.
Dentro da garagem,
manobrou o Corvette com cuidado, dando-lhe a volta. Assim que saiu pelo portão,
ligou o rádio.
Bon Scott gritou-lhe
nos ouvidos: I’m on a highway to hell.
Óscar sorriu.
Sem comentários:
Enviar um comentário
O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!