segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 25

 



Clara entrou em casa, pousou as chaves no aparador e tirou os sapatos de salto como quem largava um peso.

Na sala, surpreendeu-se ao ver Daniel já sentado no sofá, o casaco ainda dobrado de lado, como se tivesse chegado há pouco. O rosto dela abriu-se num sorriso genuíno, quase aliviado.

— Qual é a efeméride para estares em casa tão cedo? — perguntou com uma leve ironia doce, pousando a mala e caminhando na direção dele.

Aproximou-se para o abraçar e beijar, mas no instante em que os braços o envolveram, sentiu a hesitação. O corpo dele não respondeu com a mesma entrega de sempre.

Daniel inspirou fundo, os olhos a evitarem os dela antes de finalmente perguntar:

— Onde estiveste?

A pergunta não a surpreendeu. Nos últimos tempos, aquela confiança sólida entre os dois, que antes parecia uma autoestrada larga e sem curvas, tornara-se uma linha estreita, instável, onde dançavam em equilíbrio precário.

Ainda tinha na cabeça a conversa com o pai. Ainda sentia a deriva da tarde perdida, a vaguear pelo shopping sem rumo, sem ver as montras, como se estivesse num limbo. Embora magoada, agora tinha maior clareza.

Clara pousou a mão na dele e respondeu, tranquila:

— Fui almoçar com o meu pai… e depois dei uma volta pelo centro comercial.

Daniel assentiu, um pequeno gesto com a cabeça, mas intranquilo, como quem aceitava a resposta sem realmente acreditar nela.

Ela, magoada mas sem querer prolongar o abismo, inclinou-se de novo para o abraçar. O gesto foi correspondido, mas apenas a meio caminho, sem o calor de antes. Mesmo assim, Clara beijou-o. Não prolongou o beijo — deixou-o breve, contido, quase frágil.

Encostou os lábios ao ouvido dele e murmurou:

— Eu nunca conseguiria magoar-te…

Daniel fechou os olhos, os maxilares contraídos, e respondeu baixo:

— Também não querias magoar o teu pai. Antes pelo contrário. Mas não magoar… pode simplesmente querer dizer esconder melhor.

Clara afastou-se ligeiramente, a palidez a subir-lhe ao rosto. Sentou-se no sofá, o corpo a perder forças, e num murmúrio quase inaudível, mais para si própria do que para ele:

— Eu estava errada…

Daniel permaneceu estático, o olhar fixo nela, como se aquelas palavras fossem inesperadas demais para processar de imediato.

Daniel ficou simplesmente a olhar para ela, sem uma palavra, o olhar interrogativo a pedir mais do que qualquer frase.

Clara, sentindo a pressão daquele silêncio, repetiu com mais firmeza:

— Eu estava errada.

Ele inclinou-se ligeiramente para a frente, os cotovelos apoiados nos joelhos, as mãos entrelaçadas.

— Elabora.

Clara respirou fundo. Sabia que não podia continuar a esconder-se atrás de justificações.

— Ainda que todas as intenções fossem boas… e tu sabes que eram. Tu próprio, quando te contámos, concordaste, ou pelo menos disseste que percebias.

Daniel não reagiu. O silêncio dele obrigou-a a continuar.

— Mas a verdade é que nós não traímos o meu pai pelo sexo em si. Não foi por a minha mãe ter ido para a cama com outro homem. A traição foi mais profunda. — a voz dela começou a tremer, mas não parou — Foi ao ponto de destruir a imagem que ele tinha de nós. Nós tirámos-lhe uma escolha. Desrespeitámo-lo… profundamente. E pusemo-lo de parte.

As palavras ecoaram na sala, como se a própria casa tivesse prendido a respiração.

Daniel ficou a observá-la, o olhar pesado, absorvendo cada sílaba. Não era a primeira vez que ouvia aquelas conclusões — já as tinha sentido na pele quando Óscar lhas tinha atirado sem rodeios, como uma lâmina crua que rasgava sem pedir licença. Foi esse o momento em que o pano caiu para ele, em que deixou de ver apenas a razão das intenções e começou a ver a nudez fria das ações.

Agora, diante dele, Clara parecia finalmente percorrer o mesmo caminho. Pela primeira vez, não se refugiava no porquê, mas encarava o o que foi feito.

Daniel manteve-se em silêncio, imóvel, mas dentro de si reconhecia — com um misto de dor e alívio — que a mulher à sua frente começava a ver aquilo que até ali recusara olhar de frente.

Clara manteve-se de olhos fixos nos de Daniel, mesmo que o coração lhe batesse como se fosse fugir-lhe do peito.

— Eu sei… — a voz dela saiu quase como um sussurro, mas firme — eu sei que fui eu própria, pelas minhas ações, que coloquei este enorme calhau no meio do nosso caminho. Respirou fundo, sentindo as lágrimas a quererem voltar. — Mas eu faço tudo, Daniel… tudo o que for necessário… para o retirar.

Daniel ergueu o olhar para ela, olhos sombrios, o peso de meses de silêncio e mágoa a pairar na sala.

— E tu achas… que tudo pode voltar a ser como era antes?

Clara abanou a cabeça de imediato, sem hesitação.

— Não. Não é isso que eu quero. — aproximou-se dele, tocando-lhe levemente no braço, quase com medo de ser rejeitada. — Eu não quero que volte a ser como antes. O que eu quero é construir algo ainda melhor… porque agora eu me entendo melhor a mim própria. E sei o que não posso voltar a fazer.

Um longo silêncio caiu entre os dois. Daniel recostou-se no sofá, os olhos perdidos em algum ponto da parede, tão quieto que quase parecia uma estátua. Clara, inquieta, esperou. Não sabia se ele ia explodir, se ia rir, ou simplesmente levantar-se e sair.

Por fim, incapaz de aguentar mais aquele silêncio, deixou escapar a pergunta que lhe queimava a garganta:

— O que é que tu precisas de mim, Daniel?

As palavras ficaram suspensas no ar, carregadas de uma vulnerabilidade que ela raramente deixava transparecer.

Daniel demorou. O silêncio dele alongou-se de tal forma que Clara quase sentiu o ar rarear à sua volta. Estava como que encurralada, sem saída, mas ainda assim atenta, como se cada segundo fosse vital, na esperança de que a sinceridade das suas palavras pudesse, de alguma forma, ser o ponto de partida para reconstruírem algo mais sólido do que o que agora ameaçava ruir.

Por fim, Daniel ergueu o olhar, firme, a voz baixa mas carregada de peso:

— A única coisa que eu quero verdadeiramente de ti… é a tua lealdade. E a tua sinceridade. Que os problemas de um sejam dos dois. Não em tudo, não a todos os níveis… mas em tudo o que importa na relação que temos. Quero que sejas sincera, mesmo que saibas que vai doer o que tens para dizer. Desde que nunca sejas cruel. E eu prometo-te que farei o mesmo.

Clara manteve os olhos presos nos dele, e depois de alguns segundos murmurou, com uma intensidade quase solene:

— Na saúde e na doença… até que a morte nos separe.

Não ficou tudo bem. Não foi uma absolvição, nem um recomeço imediato. Mas algo se alterou: a tensão que enchia o ar pareceu aliviar, e até a própria casa em volta deles pareceu, por um instante, respirar.

Daniel estendeu o braço e puxou-a contra si. O abraço foi apertado, longo, sentido. Clara fechou os olhos e conteve as lágrimas que ameaçavam romper-lhe as defesas. Ficaram assim, imóveis, como se o tempo tivesse parado.

Foi ela quem, quase num sussurro trémulo, perguntou baixinho junto ao ouvido dele:

— O que queres para o jantar?

O jantar decorria sereno, ainda envolto num silêncio pensativo, mas sem o peso que antes os esmagava. Clara e Daniel comiam devagar, cada um perdido nos seus próprios pensamentos, quando o telemóvel de Clara, pousado sobre a mesa, se iluminou com uma chamada.

Um número desconhecido.

Daniel lançou-lhe um olhar imediato, breve mas inquisitivo. Estendeu a mão, quase instintivamente, como se fosse para desligar a chamada, mas deteve-se. Havia no seu rosto aquela dúvida que Clara já reconhecia: a velha sombra da desconfiança.

Clara inspirou fundo, pegou no telefone e, num gesto de transparência, colocou-o em alta-voz.

— Sim?

Do outro lado, uma voz tímida, juvenil, soou hesitante:

— É a Clara?

Clara piscou os olhos, surpreendida.

— Sim, sou eu. Quem fala?

— Sou a Benedita… — respondeu a voz, quase envergonhada. — O Óscar… o teu pai deu-me o teu número. Disse... disse-me para ligar. Ele mandou-te uma mensagem, viste?

Clara franziu o sobrolho, puxou o telemóvel para si e reparou, de facto, na notificação por abrir. Abriu a mensagem do pai: Número da Benedita. Ela vai ligar-te.

Um aperto suave formou-se-lhe no peito, mas a voz saiu terna:

— Sim, já vi. Então, diz lá, Benedita.

Do outro lado houve um breve silêncio, como se a rapariga ganhasse coragem:

— Eu… queria pedir-te uma coisa… É que… preciso de ajuda com os estudos. Perdi muita matéria e... não sei como recuperar. Achas que me podias dar uma ajuda?

Clara sorriu, e a suavidade dessa expressão passou para a voz:

— Claro que sim. Combinamos depois com calma, está bem? Eu ajudo-te.

Do outro lado, ouviu-se um obrigada envergonhado antes da chamada terminar.

Clara pousou o telemóvel e, quando levantou os olhos, encontrou Daniel a observá-la, agora com um leve sorriso a quebrar a rigidez do rosto. Ele ergueu as mãos e fez aspas no ar:

— A tua nova ‘irmã’, hã?

Clara riu-se baixinho e abanou a cabeça.

— Pelos vistos… sim. E digo-te já, vais gostar de a conhecer. É uma miúda fixe.

O jantar prosseguiu então num tom mais leve, com uma nova corrente de cumplicidade a insinuar-se entre os dois.


1 comentário:

  1. Estes dois parece já estarem a recompor-se da porcaria feita pela Clara , agora os outros dois serão outros 500, penso eu de que... :)
    Boa noite, sô Gil

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O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!