Laura, ao longo das
semanas, ia-se apercebendo dos pequenos sinais que denunciavam como a tensão
entre todos começava, aos poucos, a perder força. Não desaparecia — longe
disso. Era como uma corda demasiado esticada, que nunca mais voltaria ao estado
original, mas que já não ameaçava rebentar a cada instante. Via isso nas
conversas que regressavam lentamente, nos olhares que deixavam de se esquivar tanto,
nos silêncios que já não eram cortantes, mas apenas pesados.
E, acima de tudo, via
como Benedita parecia ser o elo invisível desse frágil reatar. Não fazia nada
de propósito, não dizia nada que soasse a intervenção ou tentativa de
pacificação. Mas era a sua presença, a sua leveza, a forma como entrava e saía
das divisões, como perguntava coisas com a simplicidade de quem não carrega o
peso do passado. Era ela quem, sem querer, obrigava todos a conviver, a
conversar, a olhar-se novamente.
Ainda assim, Laura
sentia-se à parte. Como se a reconstrução que via a erguer-se em volta dela
fosse uma casa da qual não possuía chave. Sabia que Daniel nunca mais a olharia
da mesma forma. Havia nos olhos dele um resquício de desconfiança que parecia
permanente, uma barreira invisível que não era feita de raiva mas de distância.
Entre ela e Clara, a relação estava ferida de maneira diferente: cada conversa
acabava tingida pela mágoa.
Não era só a mágoa de
filha para mãe. Era algo mais profundo — o reflexo da consciência. Laura
sabia-o bem. Clara tinha sido quem dera o primeiro passo, quem acenara com a
tentação, quem instigara. Mas no momento em que o fez, Laura não recuou. Pelo
contrário: abraçou aquele gesto como se fosse uma autorização. Como se a filha,
ao avançar, lhe tivesse dado a prova de que não estava errada em querer o que
queria. Que não era louca, que não era a única.
Essa sensação, na
altura, trouxera-lhe uma estranha paz. Hoje, trazia-lhe apenas dor. Porque
percebia que fora ali, naquela validação, que nascera a queda. Clara tinha
carregado a tocha, mas Laura não tinha hesitado em estender a mão para o fogo.
E essa consciência não a deixava em paz.
Com Benedita, porém,
era diferente. A jovem parecia mover-se num espaço onde nada disso existia.
Nunca lhe lançou um olhar acusador, nunca lhe mostrou julgamento. Pelo
contrário: quanto mais o tempo passava, mais se aproximava dela. Procurava-a
para confidências leves, segredos quase banais ditos em tom cúmplice. Coisas
que o Óscar não entenderia, dizia a rir. Coisas de raparigas.
Esses momentos tinham
um efeito inesperado em Laura. Eram como uma janela aberta depois de uma noite
abafada. A leveza da jovem, a confiança com que se apoiava nela, a naturalidade
com que a tratava como alguém em quem se podia confiar — tudo isso era como um
bálsamo a tocar-lhe feridas que ainda sangravam.
E, ao mesmo tempo, era
doloroso. Porque Laura percebia a ironia: era justamente a confiança de
Benedita, tão pura e gratuita, que lhe mostrava o vazio deixado por Clara. Via
no sorriso daquela jovem a prova de que ainda podia ser vista como alguém
íntegro, como alguém capaz de dar segurança. Mas ao mesmo tempo, sabia que com
a própria filha esse espaço estava turvado, cheio de sombras e lembranças que
não desapareceriam facilmente.
Era nesse contraste
que Laura vivia agora: uma mãe que perdera o caminho com a própria filha, e uma
mulher que, inesperadamente, encontrava numa jovem que não era sua o reflexo
daquilo que ainda podia ser. Benedita, sem o saber, dava-lhe algo precioso — a
prova de que não estava condenada a ser sempre o erro que carregava.
E depois havia Óscar.
Sempre cordial, sempre
frio, vivendo uma vida à parte da sua, como se habitassem a mesma casa mas em
realidades diferentes, intocáveis entre si. Era um silêncio cortante, não o
silêncio das palavras que não se dizem porque não são precisas, mas o silêncio
da distância, o silêncio que ergue muros entre duas almas que um dia se
conheceram e agora já não sabem encontrar-se.
Laura já não tinha
desculpas. Todas as justificações que antes murmurara para si própria, todas as
construções mentais que inventara para dar forma ao erro — tinham caído por
terra, uma a uma, sem deixar nada de pé. No lugar delas, apenas devastação. Não
havia como continuar a mentir-se.
Foi nesse vazio que o
seu ego finalmente ruiu. Pela primeira vez, olhou-se no espelho da alma e
percebeu, com brutal clareza, o que tinha feito. Não apenas a traição em si,
mas tudo o que ela representava. Tinha estilhaçado não só a imagem que Óscar
guardava dela — a mulher em quem podia confiar, a parceira de uma vida inteira
— mas também a imagem que ela própria sempre teve de si mesma. E o que
encontrou nos estilhaços foi insuportável: um reflexo que não reconhecia.
Laura nunca fora a
pessoa que acreditava capaz de cometer aqueles atos. Sempre pensara que havia
linhas que jamais cruzaria, princípios inabaláveis que a sustentavam. Mas, no
fim, atravessara-as como se fossem nada. E quando percebeu isso, uma sensação
de estranheza apoderou-se dela, como se vivesse dentro de um corpo que já não
lhe pertencia. Como se fosse outra, uma estranha, uma impostora que usava o seu
rosto.
Queria
desesperadamente falar com Óscar. Queria aproximar-se dele e tentar, de alguma
forma, dizer algo que refizesse ao menos uma parte do que destruíra. Mas não
sabia que palavras usar. O léxico da desculpa tinha-se esgotado. Já não havia
justificações possíveis — e, de certa forma, compreendia que ele nem as
desejasse ouvir. O silêncio dele era o reflexo cruel dessa verdade: tudo o que
havia para ser dito tinha morrido no momento em que o respeito se perdera.
E por isso, calava-se.
Porque qualquer frase
que ensaiasse na mente parecia inútil, pequena, insignificante perante o abismo
que os separava.
E assim vivia, entre a
ânsia de se aproximar e o medo de o fazer. Entre a culpa que a esmagava e a
ausência de caminho para a redimir. O coração preso num impasse: a vontade de
falar, esmagada pela certeza de que já não havia nada a dizer.
As noites com a casa
cheia tornaram-se uma rotina curiosa. Mais cheia do que alguma vez tinha sido
antes. Clara e Daniel eram presenças constantes: ela com o pretexto genuíno de
ajudar Benedita nos estudos, ele por não ter vontade de ficar sozinho em casa.
Às vezes vinham também amigas de Clara — como Patrícia, sempre faladora, que
com entusiasmo tentava decifrar com Benedita conceitos de filosofia que nem
Clara compreendia bem. O resultado eram serões animados, vozes misturadas,
gargalhadas ocasionais, discussões de ideias, movimento em todas as divisões.
E ainda assim, para
Laura, eram noites vazias.
Nunca se sentira tão
só como naquelas horas em que, rodeada de gente, percebia que não pertencia
verdadeiramente a nenhum lugar. Na cozinha, arrumava a loiça quase
mecanicamente, tentando não escutar a vida a acontecer noutras divisões da
casa. Clara e Patrícia, na sala de jantar, inclinavam-se sobre cadernos e
livros abertos, rindo-se de equívocos e complicando explicações. Benedita
absorvia tudo com olhos atentos e ansiosos, como quem bebe água depois de
atravessar um deserto. Na sala, Daniel e Óscar comentavam um debate qualquer na
televisão, vozes masculinas a cruzarem-se, concordando ou refutando, criando
ali uma cumplicidade natural que a excluía por completo.
E ela, Laura, ficava
no espaço intermédio. Nem na luz cálida do estudo, nem na gravidade tranquila
da sala. Apenas na cozinha. Apenas no silêncio.
Foi aí que a dor
começou a subir, inesperada, avassaladora. Um nó apertou-lhe a garganta, e de
repente as lágrimas romperam. Primeiro uma, depois outra, até a corrente se
tornar incontrolável. Escorriam-lhe pela face sem pedir licença, como se a alma
tivesse encontrado uma fenda por onde finalmente sangrar. Encostada à bancada
da cozinha, com as mãos ainda húmidas do pano de loiça, Laura chorava baixinho.
Um choro quieto, quase vergonhoso, como se tivesse medo que alguém ouvisse — e,
ao mesmo tempo, desejasse desesperadamente que alguém ouvisse.
Foi nesse instante que
ouviu passos.
Óscar entrou na
cozinha, um copo vazio na mão.
Laura congelou,
tentando disfarçar, esfregando apressadamente o rosto com a manga. O coração
disparou como se tivesse sido apanhada em flagrante. Ele passou por trás dela,
sem abrandar, com o mesmo andar calmo, quase pesado, que lhe era
característico. Foi direto ao armário onde guardava a garrafa, pousou o copo no
balcão e começou a servir-se, como se nada tivesse visto.
Laura permaneceu
imóvel, encostada à bancada, ainda a tentar recompor-se.
Óscar não lhe disse
nada.
Nem uma pergunta, nem
uma observação. Apenas a presença dele, tão próxima e tão distante, a encher o
espaço da cozinha.
E essa indiferença
magoava tanto como o próprio silêncio.
Óscar encheu o copo
com o gesto automático de quem já não pensa, apenas repete. O líquido âmbar
caiu pesado, encheu metade do vidro, e logo a garrafa foi devolvida ao armário.
Fechou-o com calma, como se cada ação tivesse o seu peso próprio, e virou-se
para regressar à sala.
Laura sentiu o pânico
subir-lhe pelo peito. Queria que ele saísse, que não a visse assim, desfeita em
lágrimas, com os olhos vermelhos e a voz trémula. Queria esconder-se atrás da
porta do frigorífico ou mergulhar nas sombras da cozinha, qualquer coisa para
que ele não a encarasse naquela fragilidade exposta.
Mas as palavras
escaparam-se-lhe antes que a razão as pudesse prender.
— Eu roubei-te algo…
A voz soou num
sussurro rouco, mas suficientemente clara para se impor no silêncio.
Laura ficou de
imediato surpreendida com o que dissera. Não fora uma escolha, fora como se o
subconsciente tivesse finalmente empurrado o ego para o lado e lhe tivesse
arrancado a verdade à força. As lágrimas rebentaram de novo, incontroláveis, e
o peito abriu-se num soluço que parecia o primeiro respirar depois de ter
estado demasiado tempo debaixo de água.
Óscar parou
abruptamente.
Ficou de costas para
ela, estático, a mão ainda a segurar o copo como se tivesse congelado no meio
do gesto de dar o primeiro gole. O silêncio que se instalou era quase físico,
tão denso que parecia ter peso.
Laura sentiu as pernas
fraquejarem, mas encontrou forças para prosseguir, a voz a partir-se como
vidro:
— Roubei-te algo
sagrado…
Foi só então que Óscar
se virou. Lentamente.
O olhar pousou nela,
sério, escuro, carregado de tudo aquilo que nunca dissera. Não havia fúria, nem
piedade. Apenas a gravidade de quem ouve uma confissão tardia, mas inevitável.
Laura susteve a
respiração. O coração batia descompassado, e ainda assim, naquele instante,
sentiu que tinha finalmente vindo à tona.
Laura permaneceu de
costas, o corpo inclinado ligeiramente sobre a bancada, os dedos húmidos ainda
apoiados no lavatório como se dele dependesse para se manter de pé. Sentia o
olhar de Óscar cravado nela, como uma lâmina fria que não precisava de palavras
para cortar. A garganta secou-lhe, mas a voz saiu, baixa, quase trémula:
— Eu… sempre acreditei
— engoliu em seco, tentando controlar as lágrimas —, sempre acreditei que o
corpo era meu, que a escolha era minha.
Enquanto pronunciava
estas palavras, quase sentiu o ar gelar entre os dois. Era como se o espaço
tivesse ficado mais estreito, como se o peso da verdade tivesse enchido a
cozinha até aos cantos. Ainda assim, forçou-se a continuar.
— Isso é verdade… mas
o que eu me esqueci — e aqui a voz quebrou-lhe por um instante, antes de
recuperar —, o que me esqueci é que essa escolha eu já a tinha feito. Há muito
tempo. No dia em que nós dois decidimos que íamos passar a vida juntos.
As palavras ecoaram na
cozinha em silêncio absoluto. Óscar não disse nada, mas ela sentia que cada
sílaba pousava nele como ferro incandescente.
— No dia em que me
ofereci a ti, e tu a mim. No dia em que nos tornámos pertença um do outro. O
casamento só formalizou… mas a escolha, Óscar… a escolha já estava feita.
Ele não se moveu. O
olhar mantinha-se fixo nela, sem endurecer mais, mas também sem suavizar.
Apenas absorvia.
Laura respirou fundo,
lágrimas a escorrer-lhe pelo rosto sem que tentasse limpá-las.
— A minha escolha
tinha sido dar-me a ti. Toda. E se me dei… já não era só minha. Era nossa. Era
tua.
A sua voz tornou-se um
fio, mas claro o suficiente para se gravar:
— Eu roubei-te isso.
Roubei-te o que era teu. Roubei-te a mim mesma.
O silêncio parecia uma
parede entre eles. Laura fechou os olhos, apertou o lavatório até os nós dos
dedos ficarem brancos. E, com o coração a latejar, deixou cair as últimas
defesas:
— Não há… não há uma
única justificação válida para o que fiz. — O peito contraiu-se num soluço
contido. — Só… só te posso pedir desculpa.
Foi então que se
voltou. Devagar, como se aquele gesto lhe custasse mais do que qualquer
palavra. Encarou-o. Deixou-o vê-la em toda a sua vulnerabilidade: olhos
vermelhos, rosto molhado de lágrimas, o corpo cansado de resistir.
Óscar permaneceu
sério, a expressão marcada pelo peso de tudo o que ouvira. Mas já não era a
frieza cortante de antes. Havia ali qualquer coisa mais contida, menos
distante. Depois de alguns segundos que pareceram eternos, fez-lhe apenas um
pequeno aceno com a cabeça — um gesto simples, que Laura não conseguiu
interpretar como perdão, mas como aceitação do momento.
Sem acrescentar
palavra, virou-se e retirou-se da cozinha. Mas não foi um gesto brusco, nem de
desprezo. Laura sentiu-o mais como um espaço que ele lhe deixava, uma forma de
respeito para que pudesse recompor-se.
E ficou suspenso no
ar, como uma chama ténue mas teimosa, o pressentimento de que aquela conversa
não estava terminada. Que poderia voltar a ter seguimento.
Laura recompôs-se como
pôde. Terminou de arrumar a cozinha num silêncio quase cerimonial, cada prato e
cada copo pousado no seu devido lugar como se essa ordem externa pudesse
acalmar a desordem interna. Foi até à casa de banho, lavou o rosto com água
fria, respirou fundo diante do espelho e ensaiou um ar neutro, um disfarce
aceitável para regressar ao convívio dos outros.
Quando voltou à sala,
encontrou Óscar e Daniel ainda juntos, cada um com um copo na mão, sentados em
silêncio confortável, cúmplices na contemplação da televisão onde um debate
político se arrastava. Laura não tentou intermeter-se. Limitou-se a sentar-se
num canto, numa poltrona lateral, deixando-os no espaço deles. Observava-os, em
silêncio, como quem testemunha um fragmento de normalidade que já não lhe
pertence inteiramente.
A noite foi avançando.
Benedita despediu-se com o entusiasmo de quem aprendera algo novo, subindo
apressada em direção à cave, os livros apertados contra o peito. As amigas de
Clara recolheram-se, Daniel anunciou que já se fazia tarde. Um a um, os ruídos
da casa foram desaparecendo.
Óscar, por fim, entrou
na cozinha, pousou o copo vazio na bancada e pareceu pronto para sair. Laura,
ainda na soleira da porta, deixou as palavras escapar antes que pudesse
hesitar:
— Porque é que
riscaste o Tesla?
Óscar parou por um
instante, surpreendido pela pergunta. Virou-se ligeiramente, meio sorriso a
vincar-lhe os lábios — mas não era um sorriso leve, antes um gesto de
resignação com um fundo de ironia amarga.
— Aquele Tesla… —
respondeu, pausado — simboliza tudo aquilo em que cedi o que queria em favor da
conveniência… ou da vontade dos outros. É o lembrete perfeito de como não me
estenderam a mesma cortesia.
As palavras ficaram no
ar, duras mas calmas. Laura anuiu devagar, absorvendo o peso daquela resposta.
Depois, num tom sereno, perguntou:
— E o que gostarias
que estivesse no lugar do Tesla?
Desta vez foi a vez de
Óscar levantar as sobrancelhas, surpreendido. Olhou-a por alguns segundos,
tentando perceber se havia ali ironia, mas encontrou apenas genuinidade.
Laura sustentou-lhe o
olhar e acrescentou:
— Por mais fixe que o
Corvette seja… não serve para dar uma volta em família. Nem para ir às compras
ao supermercado.
Um leve esgar de
quase-riso surgiu-lhe no rosto. Óscar abanou a cabeça, e pela primeira vez
naquela noite a sua expressão suavizou-se.
— É capaz de teres
razão. — fez uma pausa, como se escolhesse bem as palavras. — Na verdade, há
bastantes carros interessantes, familiares… capazes de pôr um sorriso no rosto
de alguém que gosta de conduzir.
Laura limitou-se a
acenar, como quem compreende que a conversa era menos sobre carros e mais sobre
tudo o resto. Não insistiu, não tentou prolongar. Deixou a resposta assentar
como uma semente que talvez germinasse.
Óscar passou por ela
sem mais nada dizer. E seguiu o seu caminho.
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