terça-feira, 9 de setembro de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 15

 




O Corvette deslizava pela estrada larga que deixava Paris para trás.

O sol da manhã espalhava-se pelos campos, ainda com um véu ténue de neblina.

Benedita estava encostada ao banco, o olhar perdido no horizonte.

Tinha aquele ar de quem ainda não voltou por completo do sonho — não do sono, mas de Paris —, enquanto Óscar mantinha as mãos firmes no volante, com a expressão calma de quem, por dentro, apenas suspendeu o peso das últimas semanas.

— Estás calado hoje… — comentou ela, sem o olhar, apenas deixando as palavras sair num tom leve.

— Às vezes… — começou ele, como quem procura o fio da frase — …às vezes não é preciso dizer nada. Há momentos que são só para andar. E para pensar.

Ela sorriu de canto.

— Para ti isto é o tal “walkabout” que me disseste?

Óscar lançou-lhe um breve olhar, um dos raros em que tirava os olhos da estrada.

— É. Mas não é para fugir… é para ver tudo com outros olhos. Até as coisas que doem.

— Eu percebo… acho que, de certa forma, também estou a fazer o mesmo contigo — disse ela, ajeitando-se no banco e virando-se ligeiramente para ele.

— Sim, mas no teu caso… tu não escolheste. — A voz dele soou com um misto de tristeza e convicção. — Por isso tenho de ter cuidado para não te arrastar para mais dores que não são tuas.

Ela abanou a cabeça, convicta:

— Tu já me tiraste de onde eu estava. Isso basta para compensar tudo o resto.

Óscar não respondeu de imediato. Limitou-se a apertar levemente o volante e acelerar um pouco mais.

O Corvette rugiu como se quisesse confirmar as palavras dela.

A paisagem começou a mudar; colinas suaves surgiam, salpicadas de vinhedos ainda verdes, e aqui e ali pequenas aldeias com torres de igreja a rasgar o céu.

Benedita apontava de vez em quando para algo na paisagem.

— Olha lá, viste aquele moinho? — perguntou, quase colando o nariz ao vidro. — Parece saído de um filme antigo!

— Isto é a região de Champagne… — disse Óscar, abrindo finalmente um sorriso. — E não, não vamos parar para beber.

— Estava a ver… — respondeu ela, rindo. — Já me estava a imaginar a tropeçar pela rua depois de um copo.

— Não quero ver-te a tropeçar… pelo menos não antes de chegares a Reims. — Ele piscou-lhe o olho.

Chegaram à cidade a meio da manhã, quando o sol já iluminava por completo as ruas limpas e elegantes.

O som dos pneus a rolar sobre a calçada nova fez eco entre prédios de pedra clara.

Óscar estacionou perto da Catedral de Notre-Dame de Reims, e assim que saíram do carro, Benedita ficou imóvel a olhar para a fachada gótica, com as suas esculturas finas e vitrais imensos.

— É… enorme… — disse ela, quase num sussurro. — Parece que te vai engolir.

— E ao mesmo tempo proteger — completou Óscar, erguendo o olhar. — Aqui coroaram quase todos os reis de França.

Lá dentro, a penumbra acolhia o silêncio, quebrado apenas pelo som dos passos deles no chão de pedra.

O sol atravessava os vitrais, pintando o ar com manchas de azul, vermelho e dourado.

Benedita olhava para cima, para a rosácea, com um ar fascinado.

— Parece que estás a olhar para o céu… mas sem sair daqui — disse ela, baixinho.

Óscar, sem tirar os olhos do vitral, respondeu:

— É por isso que estes lugares existem. Para te lembrar que há sempre algo acima de ti.

Visitaram também o Palácio de Tau, onde Óscar lhe mostrou as peças ligadas às coroações, e depois passearam pelo centro histórico, entre lojas e cafés que ainda guardavam um charme antigo.

Ao almoço, Óscar escolheu um restaurante discreto mas reputado, com mesas de madeira polida e toalhas brancas impecáveis.

Sentaram-se junto a uma janela larga, de onde podiam ver a rua movimentada.

O empregado aproximou-se e Óscar sugeriu que experimentassem algo típico dali.

— Quiche Lorraine para ti? — perguntou-lhe ele.

— Se tu dizes que é bom… — respondeu ela, sorrindo.

Óscar pediu para si “pâté en croûte” e, para acompanhar, um copo de champagne local.

Quando chegaram os pratos, Benedita provou a primeira garfada e fechou os olhos, saboreando.

— Isto é… sério, nunca tinha comido nada assim. Parece simples, mas é incrível.

Óscar ergueu o copo de champagne.

— Aos caminhos novos.

— Aos caminhos novos — repetiu ela, batendo levemente o copo de água no dele.

O sol do fim da manhã aqueceu-os enquanto deixavam Reims para trás. O motor era o único som que existia entre eles — um ritmo constante, imóvel — e Benedita voltou a inclinar-se para o lado, respirando a luz filtrada pela janela.

— Às vezes… penso… — começou ela, hesitante — que esta viagem é mais sobre aprender a estar bem em silêncio. Não só para ti, mas para mim, também.

Óscar injetou o carro com uma curva suave, os olhos no asfalto que desdobrava os vinhedos em todo o seu verde tímido.

— Silêncio é um território que poucos sabem atravessar. E quando o atravessas, já não podes voltar à mesma estrada.

Ela sorriu: era tão simples quanto terrivelmente verdadeiro para eles, dois que carregavam tanto para dentro, mas encontravam na estrada sua forma de respirar.

O percurso para Verdun correu com uma serenidade antiga, entre planícies encaixadas, aldeias de pedra e a luceirinha dourada dos campos que ainda guardavam o perfume das manhãs. Óscar sorvia cada instante; Benedita, perdia-se observando o mundo correr lá fora — e dentro dela.

Logo vislumbraram os muros de Verdun, pronunciando uma história com peso. Estacionaram perto da ribeira que atravessa a cidade e desceram para caminhar.

— Comecemos pela nossa catedral? — sugeriu Benedita, com um tom de quem se entrega à paisagem do coração humano.

A Catedral Notre-Dame de Verdun estava ali, imponente e discreta ao mesmo tempo: cimento e pedra medievais cuja aura parecia atravessar os séculos.

Dentro dela, o frescor e os ecos carregavam gravidade. Óscar deixou-a ir na frente, como se tudo aquilo lhe pertencesse, e Benedita sentiu um arrepio — não de medo, mas de reverência. Murmurou, quase para si:

— Estou em paz aqui... e tu, estás bem?

— Estou — respondeu ele, tão baixo, que apenas ela ouviu.

Depois, visitaram o Memorial de Verdun, com vídeos e som de tambores, fragmentos de canhões e vozes imorredouras. Saíram com os olhos marejados, as mãos entrelaçadas sem que nenhum dos dois lembrasse de ter feito isso.

À medida que o dia escalava para o fim, regressaram ao carro, cada um com algo diferente a digerir. Deixaram o memorial e rumaram ao hotel escolhido — Les Jardins du Mess, com sua fachada clássica e vista da Meuse. Era um lugar que acolhia o tempo com flores e móveis antigos. A recepção foi silenciosa, mas as chaves que Óscar recebeu tremiam-lhe nas mãos — não de fraqueza, mas de reverência àquele momento de transição.

Quando entraram no quarto, tudo cheirava a lençóis limpos e madeira aquecida. Depois de deixar as malas, desceram para jantar no restaurante do hotel mesmo.

Pediu-se pot-au-feu para ela, reconfortante como o abraço de casa, e coq au vin para ele, profundo como o coração dele. O vinho vinha de uma garrafa rústica, encorpada, e o lume das velas traçava reflexos nos copos.

— À Verdun — brindou Óscar.

— À gente que ainda aprende a escutar um ao outro — completou ela.

O jantar ficou marcado por pausas cheias. À medida que as palavras diminuíam, os olhares falavam, e aquele momento — assim, só deles — ficou suspenso como se fosse uma promessa não dita: de que, por mais que a estrada fosse longa, ali, juntos, encontravam uma casa.

O dia nasceu suave sobre Verdun, filtrando-se pelas cortinas com uma luz quase tímida. Benedita abriu os olhos primeiro e ficou uns instantes a ouvir o silêncio do quarto — um silêncio denso, mas não pesado. Óscar respirava fundo, virado para o lado, como quem ainda sonha com estradas.

Quando desceram para o pequeno-almoço no Les Jardins du Mess, encontraram o salão inundado por aromas de pão fresco, manteiga e café forte. Ficaram junto à janela, de onde se via a Meuse acordar lentamente. Benedita deixou-se perder a olhar a corrente, e Óscar, ao ver-lhe o rosto sereno, sentiu que aquele instante valia mais que mil palavras.

— Dormiste bem? — perguntou ele, servindo-lhe sumo de laranja.

— Dormi… melhor do que pensei — respondeu ela, com um sorriso discreto.

Pouco depois, deixaram Verdun para trás, mergulhando nas estradas que levavam a Metz. A manhã estava limpa e o ar parecia mais leve. Chegaram ainda antes do meio-dia, estacionando perto da Catedral de Saint-Étienne.

A imponência da fachada quase os silenciou. Lá dentro, os vitrais de Marc Chagall incendiaram-se com a luz da manhã — azuis profundos, vermelhos que pareciam arder, formas que se dissolviam em sonho. Benedita ficou estática.

— É… como estar dentro de uma canção — murmurou.

Óscar, sem a interromper, apenas assentiu, como quem entende que certas coisas não precisam de tradução.

Passearam depois pelo bairro medieval, com as suas ruas estreitas, fachadas tortas e placas que pareciam resistir ao tempo. Encontraram uma lojinha tão antiga que parecia saída de um conto — cheiro a madeira e pó doce, prateleiras apinhadas de bugigangas e postais amarelados. Saíram com um saco onde cabiam apenas souvenirs ridículos: uma miniatura exageradamente brilhante da catedral e uma caneca com uma vaca sorridente.

— Isto é horrível… — riu-se Benedita, abanando a caneca.

— É por isso mesmo que vai connosco — respondeu Óscar.

Saíram de Metz ainda antes do almoço. Acabaram por parar numa área de descanso de autoestrada, comendo menus de hambúrguer e batatas fritas.

— O glamour francês no seu auge — ironizou Óscar, mordendo o hambúrguer.

— Isto também é cultura — retorquiu ela, rindo.

Voltaram à estrada, agora rumo a Estrasburgo. Óscar talvez tivesse pisado mais o acelerador do que o costume, porque chegaram pouco depois da hora de almoço.

Estrasburgo acolheu-os com a mistura única de França e Alemanha: a Catedral de Notre-Dame erguendo-se no centro, ruas cheias de casas em enxaimel e canais que se deixavam atravessar por pontes floridas. Visitaram o interior da catedral, subiram a torre para ver a cidade em ângulo aberto, e depois perderam-se em La Petite France, onde as janelas abertas deixavam escapar o cheiro de bolos e o som de riso.

— Aqui parece que o tempo se senta connosco à mesa — comentou Benedita.

— Talvez seja por isso que as pessoas nunca têm pressa de ir embora — respondeu Óscar.

Ficaram até ao final da tarde, quando o sol começou a pintar o rio de cobre. Então, retomaram o caminho para Wissembourg, já na fronteira alemã. Chegaram com a luz a dissolver-se e instalaram-se num pequeno hotel acolhedor, paredes de pedra e flores nas janelas.

Jantaram no Restaurant du Cygne, famoso pelas especialidades da Alsácia. Óscar pediu choucroute garnie, enquanto Benedita se deixou seduzir por um baeckeoffe fumegante. O vinho branco, fresco e aromático, vinha de vinhas a poucos quilómetros dali.

No fim, brindaram. Não a nada em particular, mas ao simples facto de estarem ali, juntos, no fim de mais um dia de estrada.


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