O Corvette deslizava pela estrada larga que deixava Paris para
trás.
O sol da manhã espalhava-se pelos campos, ainda com um véu ténue
de neblina.
Benedita estava encostada ao banco, o olhar perdido no horizonte.
Tinha aquele ar de quem ainda não voltou por completo do sonho —
não do sono, mas de Paris —, enquanto Óscar mantinha as mãos firmes no volante,
com a expressão calma de quem, por dentro, apenas suspendeu o peso das últimas
semanas.
— Estás calado hoje… — comentou ela, sem o olhar, apenas deixando
as palavras sair num tom leve.
— Às vezes… — começou ele, como quem procura o fio da frase — …às
vezes não é preciso dizer nada. Há momentos que são só para andar. E para
pensar.
Ela sorriu de canto.
— Para ti isto é o tal “walkabout” que me disseste?
Óscar lançou-lhe um breve olhar, um dos raros em que tirava os
olhos da estrada.
— É. Mas não é para fugir… é para ver tudo com outros olhos. Até
as coisas que doem.
— Eu percebo… acho que, de certa forma, também estou a fazer o
mesmo contigo — disse ela, ajeitando-se no banco e virando-se ligeiramente para
ele.
— Sim, mas no teu caso… tu não escolheste. — A voz dele soou com
um misto de tristeza e convicção. — Por isso tenho de ter cuidado para não te
arrastar para mais dores que não são tuas.
Ela abanou a cabeça, convicta:
— Tu já me tiraste de onde eu estava. Isso basta para compensar
tudo o resto.
Óscar não respondeu de imediato. Limitou-se a apertar levemente o
volante e acelerar um pouco mais.
O Corvette rugiu como se quisesse confirmar as palavras dela.
A paisagem começou a mudar; colinas suaves surgiam, salpicadas de
vinhedos ainda verdes, e aqui e ali pequenas aldeias com torres de igreja a
rasgar o céu.
Benedita apontava de vez em quando para algo na paisagem.
— Olha lá, viste aquele moinho? — perguntou, quase colando o nariz
ao vidro. — Parece saído de um filme antigo!
— Isto é a região de Champagne… — disse Óscar, abrindo finalmente
um sorriso. — E não, não vamos parar para beber.
— Estava a ver… — respondeu ela, rindo. — Já me estava a imaginar
a tropeçar pela rua depois de um copo.
— Não quero ver-te a tropeçar… pelo menos não antes de chegares a
Reims. — Ele piscou-lhe o olho.
Chegaram à cidade a meio da manhã, quando o sol já iluminava por
completo as ruas limpas e elegantes.
O som dos pneus a rolar sobre a calçada nova fez eco entre prédios
de pedra clara.
Óscar estacionou perto da Catedral de Notre-Dame de Reims, e assim
que saíram do carro, Benedita ficou imóvel a olhar para a fachada gótica, com
as suas esculturas finas e vitrais imensos.
— É… enorme… — disse ela, quase num sussurro. — Parece que te vai
engolir.
— E ao mesmo tempo proteger — completou Óscar, erguendo o olhar. —
Aqui coroaram quase todos os reis de França.
Lá dentro, a penumbra acolhia o silêncio, quebrado apenas pelo som
dos passos deles no chão de pedra.
O sol atravessava os vitrais, pintando o ar com manchas de azul,
vermelho e dourado.
Benedita olhava para cima, para a rosácea, com um ar fascinado.
— Parece que estás a olhar para o céu… mas sem sair daqui — disse
ela, baixinho.
Óscar, sem tirar os olhos do vitral, respondeu:
— É por isso que estes lugares existem. Para te lembrar que há
sempre algo acima de ti.
Visitaram também o Palácio de Tau, onde Óscar lhe mostrou as peças
ligadas às coroações, e depois passearam pelo centro histórico, entre lojas e
cafés que ainda guardavam um charme antigo.
Ao almoço, Óscar escolheu um restaurante discreto mas reputado,
com mesas de madeira polida e toalhas brancas impecáveis.
Sentaram-se junto a uma janela larga, de onde podiam ver a rua
movimentada.
O empregado aproximou-se e Óscar sugeriu que experimentassem algo
típico dali.
— Quiche Lorraine para ti? — perguntou-lhe ele.
— Se tu dizes que é bom… — respondeu ela, sorrindo.
Óscar pediu para si “pâté en croûte” e, para acompanhar, um copo
de champagne local.
Quando chegaram os pratos, Benedita provou a primeira garfada e
fechou os olhos, saboreando.
— Isto é… sério, nunca tinha comido nada assim. Parece simples,
mas é incrível.
Óscar ergueu o copo de champagne.
— Aos caminhos novos.
— Aos caminhos novos — repetiu ela, batendo levemente o copo de
água no dele.
O sol do fim da manhã
aqueceu-os enquanto deixavam Reims para trás. O motor era o único som que
existia entre eles — um ritmo constante, imóvel — e Benedita voltou a
inclinar-se para o lado, respirando a luz filtrada pela janela.
— Às vezes… penso… —
começou ela, hesitante — que esta viagem é mais sobre aprender a estar bem em
silêncio. Não só para ti, mas para mim, também.
Óscar injetou o carro
com uma curva suave, os olhos no asfalto que desdobrava os vinhedos em todo o
seu verde tímido.
— Silêncio é um
território que poucos sabem atravessar. E quando o atravessas, já não podes
voltar à mesma estrada.
Ela sorriu: era tão
simples quanto terrivelmente verdadeiro para eles, dois que carregavam tanto
para dentro, mas encontravam na estrada sua forma de respirar.
O percurso para Verdun
correu com uma serenidade antiga, entre planícies encaixadas, aldeias de pedra
e a luceirinha dourada dos campos que ainda guardavam o perfume das manhãs. Óscar
sorvia cada instante; Benedita, perdia-se observando o mundo correr lá fora — e
dentro dela.
Logo vislumbraram os
muros de Verdun, pronunciando uma história com peso. Estacionaram perto da
ribeira que atravessa a cidade e desceram para caminhar.
— Comecemos pela nossa
catedral? — sugeriu Benedita, com um tom de quem se entrega à paisagem do
coração humano.
A Catedral Notre-Dame de Verdun estava
ali, imponente e discreta ao mesmo tempo: cimento e pedra medievais cuja aura
parecia atravessar os séculos.
Dentro dela, o frescor
e os ecos carregavam gravidade. Óscar deixou-a ir na frente, como se tudo
aquilo lhe pertencesse, e Benedita sentiu um arrepio — não de medo, mas de
reverência. Murmurou, quase para si:
— Estou em paz aqui...
e tu, estás bem?
— Estou — respondeu
ele, tão baixo, que apenas ela ouviu.
Depois, visitaram o Memorial de Verdun, com vídeos e som
de tambores, fragmentos de canhões e vozes imorredouras. Saíram com os olhos marejados,
as mãos entrelaçadas sem que nenhum dos dois lembrasse de ter feito isso.
À medida que o dia
escalava para o fim, regressaram ao carro, cada um com algo diferente a
digerir. Deixaram o memorial e rumaram ao hotel escolhido — Les Jardins du Mess, com sua fachada
clássica e vista da Meuse. Era um lugar que acolhia o tempo com flores e móveis
antigos. A recepção foi silenciosa, mas as chaves que Óscar recebeu tremiam-lhe
nas mãos — não de fraqueza, mas de reverência àquele momento de transição.
Quando entraram no
quarto, tudo cheirava a lençóis limpos e madeira aquecida. Depois de deixar as
malas, desceram para jantar no restaurante do hotel mesmo.
Pediu-se pot-au-feu para ela, reconfortante
como o abraço de casa, e coq au vin
para ele, profundo como o coração dele. O vinho vinha de uma garrafa rústica,
encorpada, e o lume das velas traçava reflexos nos copos.
— À Verdun — brindou Óscar.
— À gente que ainda
aprende a escutar um ao outro — completou ela.
O jantar ficou marcado
por pausas cheias. À medida que as palavras diminuíam, os olhares falavam, e
aquele momento — assim, só deles — ficou suspenso como se fosse uma promessa
não dita: de que, por mais que a estrada fosse longa, ali, juntos, encontravam
uma casa.
O dia nasceu suave
sobre Verdun, filtrando-se pelas cortinas com uma luz quase tímida. Benedita
abriu os olhos primeiro e ficou uns instantes a ouvir o silêncio do quarto — um
silêncio denso, mas não pesado. Óscar respirava fundo, virado para o lado, como
quem ainda sonha com estradas.
Quando desceram para o
pequeno-almoço no Les Jardins du Mess,
encontraram o salão inundado por aromas de pão fresco, manteiga e café forte.
Ficaram junto à janela, de onde se via a Meuse acordar lentamente. Benedita
deixou-se perder a olhar a corrente, e Óscar, ao ver-lhe o rosto sereno, sentiu
que aquele instante valia mais que mil palavras.
— Dormiste bem? —
perguntou ele, servindo-lhe sumo de laranja.
— Dormi… melhor do que
pensei — respondeu ela, com um sorriso discreto.
Pouco depois, deixaram
Verdun para trás, mergulhando nas estradas que levavam a Metz. A manhã estava limpa e o ar
parecia mais leve. Chegaram ainda antes do meio-dia, estacionando perto da Catedral de Saint-Étienne.
A imponência da
fachada quase os silenciou. Lá dentro, os vitrais de Marc Chagall incendiaram-se com a luz da manhã — azuis profundos,
vermelhos que pareciam arder, formas que se dissolviam em sonho. Benedita ficou
estática.
— É… como estar dentro
de uma canção — murmurou.
Óscar, sem a
interromper, apenas assentiu, como quem entende que certas coisas não precisam
de tradução.
Passearam depois pelo
bairro medieval, com as suas ruas estreitas, fachadas tortas e placas que
pareciam resistir ao tempo. Encontraram uma lojinha tão antiga que parecia
saída de um conto — cheiro a madeira e pó doce, prateleiras apinhadas de
bugigangas e postais amarelados. Saíram com um saco onde cabiam apenas souvenirs ridículos: uma miniatura
exageradamente brilhante da catedral e uma caneca com uma vaca sorridente.
— Isto é horrível… —
riu-se Benedita, abanando a caneca.
— É por isso mesmo que
vai connosco — respondeu Óscar.
Saíram de Metz ainda
antes do almoço. Acabaram por parar numa área de descanso de autoestrada,
comendo menus de hambúrguer e batatas fritas.
— O glamour francês no
seu auge — ironizou Óscar, mordendo o hambúrguer.
— Isto também é
cultura — retorquiu ela, rindo.
Voltaram à estrada,
agora rumo a Estrasburgo. Óscar
talvez tivesse pisado mais o acelerador do que o costume, porque chegaram pouco
depois da hora de almoço.
Estrasburgo acolheu-os
com a mistura única de França e Alemanha: a Catedral de Notre-Dame erguendo-se no centro, ruas cheias de casas
em enxaimel e canais que se deixavam atravessar por pontes floridas. Visitaram
o interior da catedral, subiram a torre para ver a cidade em ângulo aberto, e
depois perderam-se em La Petite France,
onde as janelas abertas deixavam escapar o cheiro de bolos e o som de riso.
— Aqui parece que o
tempo se senta connosco à mesa — comentou Benedita.
— Talvez seja por isso
que as pessoas nunca têm pressa de ir embora — respondeu Óscar.
Ficaram até ao final da
tarde, quando o sol começou a pintar o rio de cobre. Então, retomaram o caminho
para Wissembourg, já na
fronteira alemã. Chegaram com a luz a dissolver-se e instalaram-se num pequeno
hotel acolhedor, paredes de pedra e flores nas janelas.
Jantaram no Restaurant du Cygne, famoso pelas
especialidades da Alsácia. Óscar pediu choucroute
garnie, enquanto Benedita se deixou seduzir por um baeckeoffe fumegante. O vinho branco,
fresco e aromático, vinha de vinhas a poucos quilómetros dali.
No fim, brindaram. Não
a nada em particular, mas ao simples facto de estarem ali, juntos, no fim de
mais um dia de estrada.
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