O aroma a madeira
ainda pairava no ar quando Benedita abriu os olhos. A luz pálida da manhã
filtrava-se pelas cortinas finas, e, no pequeno quarto ao lado, já se ouvia o
arrastar de passos firmes.
Levantou-se, ainda
meio ensonada, e encontrou Óscar na cozinha do Airbnb, sentado à mesa, a olhar
para o vazio como se quisesse intimidar o próprio dia a começar.
— Bom dia… — disse
ela, com um bocejo. — Ou devo dizer bom humor, para ver se pega?
Óscar ergueu uma
sobrancelha, lento, como quem não tinha ainda energia para um sorriso.
— Bom humor não é uma
coisa que se sirva antes do café, menina.
Benedita puxou uma
cadeira e sentou-se, apoiando o queixo na mão.
— Pois… mas é que eu
já reparei. Tu não tens bom humor nem depois do café.
Ele virou-lhe o olhar,
sério, mas com um canto da boca a querer ceder.
— Estás atrevida esta
manhã.
— Não. Estou só a
tentar sobreviver à tua “secura matinal”. — respondeu ela, fazendo aspas no ar.
— Uma pessoa tem de se defender.
Óscar inspirou
devagar, como se o ar frio da manhã lhe trouxesse algum alívio, e percebeu que
estava a sorrir antes mesmo de ter tocado na chávena.
— Hum… parece que já
ganhaste à vontade comigo.
— Ou tu é que estás a
amolecer. — disse ela, mordendo o lábio para não se rir demasiado.
— Não abuses. —
respondeu ele, mas sem conseguir esconder que a troca lhe aquecia qualquer
coisa por dentro.
Beberam café em
silêncio por uns instantes, mas o ambiente já não era o mesmo de tantas outras
manhãs. Algo subtil mudara — não no mundo, mas no espaço entre eles.
— Anda lá. — disse
ele, erguendo-se e pegando nas chaves. — Hoje temos estrada pela frente.
Ela levantou-se
também, ainda a sorrir, e juntos saíram para a luz fria da manhã, o Corvette à
espera como um animal pronto para correr.
Saíram cedo, o céu
ainda com aquela tonalidade indefinida entre o cinzento e o azul, as árvores da
pequena aldeia alemã envoltas numa névoa suave. O Corvette ronronava baixo,
como se também acordasse devagar, e Óscar, com as mãos firmes no volante,
mantinha o olhar fixo na estrada que começava a desenrolar-se à frente.
Benedita, encostada no
banco, deixava-se embalar pelo som do motor e pelo ritmo constante do asfalto a
passar debaixo deles. Não falou de imediato. Estava longe, perdida num fio de
pensamentos que se formara ainda antes de saírem.
Aqueles dias
tinham-lhe mostrado mais do que esperara ver num ano inteiro — talvez numa
vida. Paris com as suas luzes e o rio, a catedral marcada pelo fogo mas ainda
de pé, as vitrinas onde a alta-costura parecia inacessível e, no entanto, ela
trouxe dali pedaços que lhe pertenciam. Reims, com a catedral imensa e o eco da
história nos vitrais. Verdun, silenciosa e pesada de memória, Metz com as cores
de Chagall. Estrasburgo, onde as ruas pareciam tiradas de um livro antigo.
Nürburgring, onde o rugido dos motores misturava-se com o batimento do seu
próprio coração.
E no meio de tudo
isto, Óscar. O homem que, sem promessas fáceis nem gestos grandiosos, começava
a tornar-se, dia após dia, na figura que ela nunca tivera — um porto seguro.
Ainda havia receio no que viria pela frente, é certo, mas a fé que depositava
nele começava a ser mais forte do que o medo.
Olhou de lado para o
perfil dele, concentrado, e pensou que talvez fosse assim que se começava a
sentir nostalgia — não pelo passado distante, mas por algo que ainda está a
acontecer e já se sabe que vai deixar saudade.
O caminho à frente
parecia interminável, mas não importava. Aqueles dias, aquelas estradas, as
paisagens que desfilaram diante dos seus olhos, as conversas trocadas ao acaso
e os silêncios carregados de sentido, ficariam com ela para onde quer que
fosse. Gravados não só na memória, mas na maneira como, dali em diante, veria o
mundo e a si própria.
Pararam no Luxemburgo
ainda a meio da manhã. O sol filtrava-se por entre as nuvens baixas, iluminando
as bombas de gasolina com um brilho quase metálico. Óscar estacionou junto a
uma das ilhas, desligou o motor e soltou um suspiro satisfeito.
— Vale sempre a pena
parar aqui — disse ele, enquanto começava a abastecer. — A gasolina é mais
barata, e não é pouco.
Benedita, com as mãos
nos bolsos, observava os carros à volta, muitos deles com matrículas de países
diferentes. Sentiu um certo gosto por aquele ponto do mapa onde toda a gente
parecia estar apenas de passagem.
— Então… isto é tipo o
paraíso dos condutores? — perguntou, com um meio sorriso.
Óscar ergueu um canto
da boca. — Para alguns, sim. Para outros, é só uma bomba de gasolina com preços
decentes.
Enquanto ele pagava,
ela espreitou o interior da loja. Pouco depois estavam sentados a uma mesa alta
junto à janela, partilhando uma baguete com presunto e queijo, mais dois cafés
fumegantes.
— É simples… mas sabe
bem. — disse ela, mastigando devagar.
— Às vezes é o que
basta. — respondeu Óscar, olhando pela janela para o Corvette.
Voltaram à estrada
pouco depois, e o silêncio instalou-se por um tempo. Só quando já se
aproximavam de uma área de serviço perto de Orléans é que Benedita falou, com
um tom que misturava curiosidade e apreensão.
— Óscar… o que achas
que vai acontecer quando chegarmos?
Ele manteve os olhos
na estrada.
— Muita gente vai
ficar surpreendida. Sobretudo a minha mulher.
— E isso não te
preocupa?
Óscar soltou um riso
breve, sem humor.
— É impossível prever
o futuro. Portanto, sejam quais forem as circunstâncias, vamos ter de lidar com
elas e agir de acordo.
Ela insistiu,
virando-se para ele.
— Mas… não te preocupa
mesmo?
— Para isso era
preciso importar-me. — disse, com uma calma quase desconcertante. — E neste
momento tenho coisas mais importantes para fazer do que preocupar-me com o que
pensam pessoas que, claramente, não me respeitam.
Benedita mordeu o
lábio, tentando esconder o sorriso que lhe subia. Havia qualquer coisa naquela
frieza controlada que lhe transmitia segurança, mesmo que ele não tivesse a
intenção de o fazer.
— Então… seguimos em
frente, aconteça o que acontecer? — perguntou, quase como se procurasse
confirmação.
Óscar desviou-lhe um
olhar rápido, um canto da boca a erguer-se.
— Sempre.
Chegaram à área de
descanso perto de Orléans pouco depois do meio-dia. O movimento era constante:
camionistas a ajeitar as cargas, famílias a esticar as pernas, turistas a olhar
mapas. Óscar encostou o Corvette num canto mais sossegado do parque e, ao
saírem, Benedita ergueu os braços num longo espreguiçar.
— Acho que o banco se moldou
ao meu corpo… ou o meu corpo ao banco — disse, sorrindo de lado.
— E isso é mau? —
perguntou Óscar, enquanto se encaminhavam para a cafetaria. — Pensa que é como
um sofá… mas que anda a duzentos à hora.
Escolheram um menu
simples: bifes grelhados com batatas fritas, salada e uma fatia de tarte de
maçã no final. Comeram num daqueles conjuntos de mesas corridas, debaixo do
zumbido constante das conversas e do tilintar dos talheres.
— Não é o melhor que
já comemos… — comentou Benedita, espetando o garfo na sobremesa.
— Mas também não é o
pior. E temos de guardar apetite para logo — respondeu Óscar, com um brilho
cúmplice no olhar.
Pouco depois já
estavam de volta à estrada. As horas passavam ao ritmo constante do motor. Ao
cruzarem algumas povoações mais pequenas, Benedita ia lendo as placas.
—
"Châtellerault"… soa a nome de queijo caro.
Óscar sorriu.
— Ou a uma vila onde
toda a gente usa chapéu-de-chuva, mesmo no verão.
Voltaram a parar
apenas em Poitiers, já a meio da tarde, para esticar as pernas e lanchar.
Encontraram um pequeno café junto à estrada e partilharam um croissant com
amêndoa e dois sumos frescos.
— Tens noção que isto
não é muito "lanche de estrada"? — disse Óscar, olhando para o
folhado elegante.
— Claro que é. —
contrapôs ela. — É o lanche de estrada à francesa.
De volta ao carro, Óscar
lançou-lhe um olhar rápido.
— Que dizes de
ficarmos a dormir em Bordéus?
— Desde que não seja
num hotel com cheiro a mofo, por mim está ótimo.
Chegaram a Bordéus já
com o sol a descer, tingindo o rio Garonne de tons dourados. Óscar guiou até à
zona dos cais, onde as esplanadas se enchiam de vozes e luzes. Escolheram
jantar no Le 7 Restaurant, no
topo da Cité du Vin, com vista sobre a cidade.
Óscar pediu um magret
de pato com molho de vinho tinto e gratin dauphinois; Benedita optou por um
bacalhau confitado com legumes provençais. Ele pediu uma garrafa pequena de
vinho tinto local, que o empregado descreveu com orgulho quase poético.
— Isto é o que chamo
jantar de estrada — disse ela, provando o bacalhau.
— Então espera pela
sobremesa — respondeu ele, já a saborear o creme brûlée que tinham encomendado
para dividir.
Depois de jantar,
caminharam calmamente até ao hotel que Óscar tinha reservado ali perto. O
cansaço do dia caiu sobre eles como um cobertor pesado. Em poucos minutos,
depois de um banho rápido, estavam já deitados, vencidos pelo som distante do
rio e o murmúrio longínquo da cidade.
Óscar acordou antes do
nascer do sol. O silêncio do quarto alugado ainda tinha aquele peso de
madrugada, quebrado apenas pelo som discreto da mala a fechar-se e pelo ranger
suave do soalho. Tomou um duche rápido, vestiu-se e, quando já estava pronto
para sair, aproximou-se da porta do quarto de Benedita.
— Vamos, miúda… hora
de arrancar. — chamou em voz baixa, mas firme.
Do outro lado, um
resmungo abafado.
— Óscar… é de noite…
— É de manhã cedo. E
quanto mais cedo sairmos, mais depressa chegamos.
Pouco depois, ela
surgiu embrulhada no casaco, cabelo desalinhado e olhos semicerrados. Desceu as
escadas quase em piloto automático, entrou no carro e afivelou o cinto sem uma
palavra. Óscar conteve um sorriso ao ver a forma como ela se encolhia no banco,
lutando contra o frio e o sono.
— Dorme mais um bocado
— disse-lhe, ajustando o aquecimento. — Eu trato do resto.
E assim foi. A estrada
ia passando sob as rodas enquanto ela, de rosto virado para a janela, se
deixava embalar pelo ritmo constante do motor. Óscar, sozinho com os seus
pensamentos, deixou a mente recuar até aquele domingo que mudara tudo. O dia em
que a rotina ruiu e se viu obrigado a agir. Lembrou-se do vazio inicial, da
raiva contida, e de como, passo a passo, aquela viagem se tinha tornado algo
mais — não uma fuga, mas um caminho para encontrar qualquer coisa que ele
próprio ainda não conseguia definir.
Quando o céu começou a
ganhar luz, já estavam a poucos quilómetros de San Sebastián. Foi nesse momento
que Benedita abriu os olhos, piscando contra a claridade.
— Onde estamos? —
perguntou, ainda com a voz rouca de sono.
— Espanha. E quase a
chegar ao pequeno-almoço.
Pararam numa cafetaria
junto ao centro, com mesas viradas para o mar. O cheiro a café recém-moído
misturava-se com o aroma quente de pão acabado de sair do forno. Óscar pediu
café duplo e uma fatia generosa de torta de San Sebastián, enquanto ela optou
por sumo de laranja e um croissant enorme recheado de creme.
— Isto sim é acordar
como deve ser… — disse Benedita, já mais desperta.
Não ficaram muito
tempo. O relógio ditava a pressa, e Óscar parecia determinado a encurtar a
jornada. Retomaram a autoestrada e, pouco depois do meio-dia, entravam em
Burgos. Atravessaram ruas estreitas até ao centro histórico, onde o som das
malas a rolar no empedrado se misturava com o eco das conversas nas esplanadas.
Acabaram por almoçar
numa pequena taberna a dois passos da catedral. O prato do dia era cordeiro
assado com batatas e salada, acompanhado por um copo de vinho tinto da região.
Comeram rápido, sem grandes pausas para conversa, e em menos de uma hora estavam
de volta ao carro.
A tarde foi um longo
traço de asfalto sob o sol. A paisagem mudava, mas a sensação era sempre a
mesma: velocidade constante, quilómetros que se sucediam, a presença silenciosa
da estrada como única companhia. Benedita entretinha-se a ler placas e a
comentar os nomes das cidades que passavam.
— “Benavente”... soa a
nome de vilão de novela — disse ela, arrancando um riso breve a Óscar.
— Também temos uma “Benavente”
perto de Santarém…
Entraram em Portugal
por Valença do Minho. A ponte sobre o rio, com a luz dourada do fim de tarde,
pareceu a ambos uma espécie de marco simbólico. Não disseram nada, mas trocaram
um olhar rápido que carregava mais do que palavras poderiam exprimir.
Pouco depois, Braga
surgiu no horizonte, as suas torres e colinas recortadas contra o céu. Óscar
manteve o olhar firme na estrada, mas Benedita ficou encostada ao vidro,
absorvendo aquela visão como quem sabe que a viagem estava a chegar ao fim — e
que, de alguma forma, já começava a sentir saudades dela.
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