sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 18

 



O aroma a madeira ainda pairava no ar quando Benedita abriu os olhos. A luz pálida da manhã filtrava-se pelas cortinas finas, e, no pequeno quarto ao lado, já se ouvia o arrastar de passos firmes.

Levantou-se, ainda meio ensonada, e encontrou Óscar na cozinha do Airbnb, sentado à mesa, a olhar para o vazio como se quisesse intimidar o próprio dia a começar.

— Bom dia… — disse ela, com um bocejo. — Ou devo dizer bom humor, para ver se pega?

Óscar ergueu uma sobrancelha, lento, como quem não tinha ainda energia para um sorriso.

— Bom humor não é uma coisa que se sirva antes do café, menina.

Benedita puxou uma cadeira e sentou-se, apoiando o queixo na mão.

— Pois… mas é que eu já reparei. Tu não tens bom humor nem depois do café.

Ele virou-lhe o olhar, sério, mas com um canto da boca a querer ceder.

— Estás atrevida esta manhã.

— Não. Estou só a tentar sobreviver à tua “secura matinal”. — respondeu ela, fazendo aspas no ar. — Uma pessoa tem de se defender.

Óscar inspirou devagar, como se o ar frio da manhã lhe trouxesse algum alívio, e percebeu que estava a sorrir antes mesmo de ter tocado na chávena.

— Hum… parece que já ganhaste à vontade comigo.

— Ou tu é que estás a amolecer. — disse ela, mordendo o lábio para não se rir demasiado.

— Não abuses. — respondeu ele, mas sem conseguir esconder que a troca lhe aquecia qualquer coisa por dentro.

Beberam café em silêncio por uns instantes, mas o ambiente já não era o mesmo de tantas outras manhãs. Algo subtil mudara — não no mundo, mas no espaço entre eles.

— Anda lá. — disse ele, erguendo-se e pegando nas chaves. — Hoje temos estrada pela frente.

Ela levantou-se também, ainda a sorrir, e juntos saíram para a luz fria da manhã, o Corvette à espera como um animal pronto para correr.

Saíram cedo, o céu ainda com aquela tonalidade indefinida entre o cinzento e o azul, as árvores da pequena aldeia alemã envoltas numa névoa suave. O Corvette ronronava baixo, como se também acordasse devagar, e Óscar, com as mãos firmes no volante, mantinha o olhar fixo na estrada que começava a desenrolar-se à frente.

Benedita, encostada no banco, deixava-se embalar pelo som do motor e pelo ritmo constante do asfalto a passar debaixo deles. Não falou de imediato. Estava longe, perdida num fio de pensamentos que se formara ainda antes de saírem.

Aqueles dias tinham-lhe mostrado mais do que esperara ver num ano inteiro — talvez numa vida. Paris com as suas luzes e o rio, a catedral marcada pelo fogo mas ainda de pé, as vitrinas onde a alta-costura parecia inacessível e, no entanto, ela trouxe dali pedaços que lhe pertenciam. Reims, com a catedral imensa e o eco da história nos vitrais. Verdun, silenciosa e pesada de memória, Metz com as cores de Chagall. Estrasburgo, onde as ruas pareciam tiradas de um livro antigo. Nürburgring, onde o rugido dos motores misturava-se com o batimento do seu próprio coração.

E no meio de tudo isto, Óscar. O homem que, sem promessas fáceis nem gestos grandiosos, começava a tornar-se, dia após dia, na figura que ela nunca tivera — um porto seguro. Ainda havia receio no que viria pela frente, é certo, mas a fé que depositava nele começava a ser mais forte do que o medo.

Olhou de lado para o perfil dele, concentrado, e pensou que talvez fosse assim que se começava a sentir nostalgia — não pelo passado distante, mas por algo que ainda está a acontecer e já se sabe que vai deixar saudade.

O caminho à frente parecia interminável, mas não importava. Aqueles dias, aquelas estradas, as paisagens que desfilaram diante dos seus olhos, as conversas trocadas ao acaso e os silêncios carregados de sentido, ficariam com ela para onde quer que fosse. Gravados não só na memória, mas na maneira como, dali em diante, veria o mundo e a si própria.

Pararam no Luxemburgo ainda a meio da manhã. O sol filtrava-se por entre as nuvens baixas, iluminando as bombas de gasolina com um brilho quase metálico. Óscar estacionou junto a uma das ilhas, desligou o motor e soltou um suspiro satisfeito.

— Vale sempre a pena parar aqui — disse ele, enquanto começava a abastecer. — A gasolina é mais barata, e não é pouco.

Benedita, com as mãos nos bolsos, observava os carros à volta, muitos deles com matrículas de países diferentes. Sentiu um certo gosto por aquele ponto do mapa onde toda a gente parecia estar apenas de passagem.

— Então… isto é tipo o paraíso dos condutores? — perguntou, com um meio sorriso.

Óscar ergueu um canto da boca. — Para alguns, sim. Para outros, é só uma bomba de gasolina com preços decentes.

Enquanto ele pagava, ela espreitou o interior da loja. Pouco depois estavam sentados a uma mesa alta junto à janela, partilhando uma baguete com presunto e queijo, mais dois cafés fumegantes.

— É simples… mas sabe bem. — disse ela, mastigando devagar.

— Às vezes é o que basta. — respondeu Óscar, olhando pela janela para o Corvette.

Voltaram à estrada pouco depois, e o silêncio instalou-se por um tempo. Só quando já se aproximavam de uma área de serviço perto de Orléans é que Benedita falou, com um tom que misturava curiosidade e apreensão.

— Óscar… o que achas que vai acontecer quando chegarmos?

Ele manteve os olhos na estrada.

— Muita gente vai ficar surpreendida. Sobretudo a minha mulher.

— E isso não te preocupa?

Óscar soltou um riso breve, sem humor.

— É impossível prever o futuro. Portanto, sejam quais forem as circunstâncias, vamos ter de lidar com elas e agir de acordo.

Ela insistiu, virando-se para ele.

— Mas… não te preocupa mesmo?

— Para isso era preciso importar-me. — disse, com uma calma quase desconcertante. — E neste momento tenho coisas mais importantes para fazer do que preocupar-me com o que pensam pessoas que, claramente, não me respeitam.

Benedita mordeu o lábio, tentando esconder o sorriso que lhe subia. Havia qualquer coisa naquela frieza controlada que lhe transmitia segurança, mesmo que ele não tivesse a intenção de o fazer.

— Então… seguimos em frente, aconteça o que acontecer? — perguntou, quase como se procurasse confirmação.

Óscar desviou-lhe um olhar rápido, um canto da boca a erguer-se.

— Sempre.

Chegaram à área de descanso perto de Orléans pouco depois do meio-dia. O movimento era constante: camionistas a ajeitar as cargas, famílias a esticar as pernas, turistas a olhar mapas. Óscar encostou o Corvette num canto mais sossegado do parque e, ao saírem, Benedita ergueu os braços num longo espreguiçar.

— Acho que o banco se moldou ao meu corpo… ou o meu corpo ao banco — disse, sorrindo de lado.

— E isso é mau? — perguntou Óscar, enquanto se encaminhavam para a cafetaria. — Pensa que é como um sofá… mas que anda a duzentos à hora.

Escolheram um menu simples: bifes grelhados com batatas fritas, salada e uma fatia de tarte de maçã no final. Comeram num daqueles conjuntos de mesas corridas, debaixo do zumbido constante das conversas e do tilintar dos talheres.

— Não é o melhor que já comemos… — comentou Benedita, espetando o garfo na sobremesa.

— Mas também não é o pior. E temos de guardar apetite para logo — respondeu Óscar, com um brilho cúmplice no olhar.

Pouco depois já estavam de volta à estrada. As horas passavam ao ritmo constante do motor. Ao cruzarem algumas povoações mais pequenas, Benedita ia lendo as placas.

— "Châtellerault"… soa a nome de queijo caro.

Óscar sorriu.

— Ou a uma vila onde toda a gente usa chapéu-de-chuva, mesmo no verão.

Voltaram a parar apenas em Poitiers, já a meio da tarde, para esticar as pernas e lanchar. Encontraram um pequeno café junto à estrada e partilharam um croissant com amêndoa e dois sumos frescos.

— Tens noção que isto não é muito "lanche de estrada"? — disse Óscar, olhando para o folhado elegante.

— Claro que é. — contrapôs ela. — É o lanche de estrada à francesa.

De volta ao carro, Óscar lançou-lhe um olhar rápido.

— Que dizes de ficarmos a dormir em Bordéus?

— Desde que não seja num hotel com cheiro a mofo, por mim está ótimo.

Chegaram a Bordéus já com o sol a descer, tingindo o rio Garonne de tons dourados. Óscar guiou até à zona dos cais, onde as esplanadas se enchiam de vozes e luzes. Escolheram jantar no Le 7 Restaurant, no topo da Cité du Vin, com vista sobre a cidade.

Óscar pediu um magret de pato com molho de vinho tinto e gratin dauphinois; Benedita optou por um bacalhau confitado com legumes provençais. Ele pediu uma garrafa pequena de vinho tinto local, que o empregado descreveu com orgulho quase poético.

— Isto é o que chamo jantar de estrada — disse ela, provando o bacalhau.

— Então espera pela sobremesa — respondeu ele, já a saborear o creme brûlée que tinham encomendado para dividir.

Depois de jantar, caminharam calmamente até ao hotel que Óscar tinha reservado ali perto. O cansaço do dia caiu sobre eles como um cobertor pesado. Em poucos minutos, depois de um banho rápido, estavam já deitados, vencidos pelo som distante do rio e o murmúrio longínquo da cidade.

Óscar acordou antes do nascer do sol. O silêncio do quarto alugado ainda tinha aquele peso de madrugada, quebrado apenas pelo som discreto da mala a fechar-se e pelo ranger suave do soalho. Tomou um duche rápido, vestiu-se e, quando já estava pronto para sair, aproximou-se da porta do quarto de Benedita.

— Vamos, miúda… hora de arrancar. — chamou em voz baixa, mas firme.

Do outro lado, um resmungo abafado.

— Óscar… é de noite…

— É de manhã cedo. E quanto mais cedo sairmos, mais depressa chegamos.

Pouco depois, ela surgiu embrulhada no casaco, cabelo desalinhado e olhos semicerrados. Desceu as escadas quase em piloto automático, entrou no carro e afivelou o cinto sem uma palavra. Óscar conteve um sorriso ao ver a forma como ela se encolhia no banco, lutando contra o frio e o sono.

— Dorme mais um bocado — disse-lhe, ajustando o aquecimento. — Eu trato do resto.

E assim foi. A estrada ia passando sob as rodas enquanto ela, de rosto virado para a janela, se deixava embalar pelo ritmo constante do motor. Óscar, sozinho com os seus pensamentos, deixou a mente recuar até aquele domingo que mudara tudo. O dia em que a rotina ruiu e se viu obrigado a agir. Lembrou-se do vazio inicial, da raiva contida, e de como, passo a passo, aquela viagem se tinha tornado algo mais — não uma fuga, mas um caminho para encontrar qualquer coisa que ele próprio ainda não conseguia definir.

Quando o céu começou a ganhar luz, já estavam a poucos quilómetros de San Sebastián. Foi nesse momento que Benedita abriu os olhos, piscando contra a claridade.

— Onde estamos? — perguntou, ainda com a voz rouca de sono.

— Espanha. E quase a chegar ao pequeno-almoço.

Pararam numa cafetaria junto ao centro, com mesas viradas para o mar. O cheiro a café recém-moído misturava-se com o aroma quente de pão acabado de sair do forno. Óscar pediu café duplo e uma fatia generosa de torta de San Sebastián, enquanto ela optou por sumo de laranja e um croissant enorme recheado de creme.

— Isto sim é acordar como deve ser… — disse Benedita, já mais desperta.

Não ficaram muito tempo. O relógio ditava a pressa, e Óscar parecia determinado a encurtar a jornada. Retomaram a autoestrada e, pouco depois do meio-dia, entravam em Burgos. Atravessaram ruas estreitas até ao centro histórico, onde o som das malas a rolar no empedrado se misturava com o eco das conversas nas esplanadas.

Acabaram por almoçar numa pequena taberna a dois passos da catedral. O prato do dia era cordeiro assado com batatas e salada, acompanhado por um copo de vinho tinto da região. Comeram rápido, sem grandes pausas para conversa, e em menos de uma hora estavam de volta ao carro.

A tarde foi um longo traço de asfalto sob o sol. A paisagem mudava, mas a sensação era sempre a mesma: velocidade constante, quilómetros que se sucediam, a presença silenciosa da estrada como única companhia. Benedita entretinha-se a ler placas e a comentar os nomes das cidades que passavam.

— “Benavente”... soa a nome de vilão de novela — disse ela, arrancando um riso breve a Óscar.

— Também temos uma “Benavente” perto de Santarém…

Entraram em Portugal por Valença do Minho. A ponte sobre o rio, com a luz dourada do fim de tarde, pareceu a ambos uma espécie de marco simbólico. Não disseram nada, mas trocaram um olhar rápido que carregava mais do que palavras poderiam exprimir.

Pouco depois, Braga surgiu no horizonte, as suas torres e colinas recortadas contra o céu. Óscar manteve o olhar firme na estrada, mas Benedita ficou encostada ao vidro, absorvendo aquela visão como quem sabe que a viagem estava a chegar ao fim — e que, de alguma forma, já começava a sentir saudades dela.


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