quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 32 + Epílogo

 



O telemóvel vibrou sobre a secretária, e Clara atendeu sem grande pressa. Do outro lado, ouviu a voz animada de Benedita.

— Olá, Clara! Está tudo bem?

— Está, e contigo? — respondeu Clara, sorrindo sem perceber bem porquê.

Houve uma hesitação breve, e depois Benedita lançou a pergunta de forma meio atrapalhada:

— Olha, não fiques chateada… mas a Laura pediu-me para te perguntar uma coisa.

— Então? — disse Clara, já intrigada.

— Achas que eu podia… ficar com o teu quarto? — perguntou de supetão, quase sem respirar.

Clara ficou em silêncio por uns segundos, surpreendida. Não era uma pergunta que esperasse ouvir. Por fim, soltou uma pequena gargalhada.

— O meu quarto?

— Sim, mas só se não te importares! — apressou-se Benedita a acrescentar. — A Laura disse que a cave podia ser húmida e… pronto…

Clara abanou a cabeça, ainda a sorrir.

— Está bem, miúda. Desde que guardes as minhas coisas e respeites as recordações que lá estão, por mim não há problema. Olha, se quiseres até podes ficar com a cama. Tinha um colchão ótimo, super fofo.

— Jura? — Benedita quase gritou. — Claro que sim, guardo tudo direitinho! E já estou curiosa para experimentar esse colchão mágico.

As duas acabaram a rir, cúmplices, como se tivessem partilhado um segredo.

Quando desligou, Clara ficou a olhar para o telefone, pensativa. Havia ali algo que não encaixava. Sem pensar muito, procurou logo o número da mãe e ligou.

— Mãe, está tudo bem? — perguntou, tentando soar casual.

Laura respondeu com naturalidade:

— Está, claro. Porque perguntas?

— A Benedita acabou de me ligar a pedir o quarto. Há alguma coisa que eu não saiba?

Laura riu-se, como se fosse uma preocupação desnecessária.

— Foi só uma ideia minha. Achei que a cave podia ser demasiado húmida, sabes como é… E assim ela ficava mais confortável.

— E o pai? — Clara apertou os olhos, a voz a denunciar a cautela.

Houve uma pequena pausa, e depois Laura respondeu:

— Ele está de acordo. Não há problema nenhum.

Essa resposta foi suficiente para Clara se deixar aliviar, ao menos por enquanto.

Uns dias depois, quando Clara e Daniel chegaram a casa para que ela ajudasse Benedita com a matéria da escola — como tantas vezes já tinham feito antes —, Clara notou logo algo diferente. Não era só a leveza no ar: era a mãe, que parecia mais solta, quase luminosa, como não a via há muito; e o pai, que já não se retraía quando ela entrava na sala, como se a simples presença deixasse de ser um peso.

Intrigada, Clara esperou o momento certo e perguntou a Benedita, em voz baixa, se se tinha passado alguma coisa. A miúda lançou-lhe um olhar conspirador, aproximou-se, e num tom quase de segredo murmurou:

— Desde a noite em que me mudei da cave… o Óscar voltou a dormir em casa.

Clara ficou a fitá-la por uns instantes, como a confirmar se ouvira bem. Depois, sem conseguir conter-se, deixou escapar um risinho nervoso. Benedita acompanhou-a, e em poucos segundos estavam as duas a dar pulinhos de contente, como se partilhassem uma vitória íntima. Clara, por um momento, esqueceu-se de ser adulta e comportou-se exatamente como a teenager que Benedita ainda era.

Depois do jantar, Clara estranhou quando os pais a chamaram à cozinha. O tom sério de Óscar fez o coração dela disparar. Sentaram-se os três à mesa pequena, a luz amarela da lâmpada pendente lançando sombras suaves nas paredes. Clara sentiu o nível de ansiedade crescer, como se estivesse prestes a ouvir uma sentença.

Óscar falou baixo, quase num murmúrio, como se aquelas palavras não pudessem sair dali:

— Clara… apesar de tudo o que se tem passado, eu jamais trocaria um minuto do tempo em que te vi crescer e tornar-te mulher por um milhão de euros.

Clara abriu a boca, hesitante, e tentou continuar, receosa:

— Mas…

Óscar ergueu ligeiramente a mão, interrompendo-a com suavidade mas firmeza:

— Não há mas. Só há uma pergunta que eu e a tua mãe queremos fazer. Mas quero que saibas primeiro que nada põe em causa o que tu significas para mim ou para nós.

Clara respirou fundo, engolindo em seco, e perguntou com cuidado:

— Essa pergunta é dos dois?

Nesse instante, Laura, que permanecia em silêncio ao lado de Óscar, procurou a mão dele sobre a mesa. Ele aceitou o gesto e entrelaçou os dedos nos dela. Clara observou, e aquele simples gesto confirmou-lhe aquilo que já desconfiava há dias: de alguma maneira, os dois estavam juntos. Um sorriso tímido escapou-lhe, seguido de um aceno, como quem dá permissão:

— Façam a pergunta.

Laura ajeitou-se na cadeira, olhou a filha nos olhos e assumiu a voz, como se quisesse reforçar que era uma pergunta feita em nome de ambos:

— O que acharias se nós adotássemos a Benedita?

As palavras caíram como um raio. Clara ficou em silêncio, sentindo um choque a percorrer-lhe o corpo. O rosto dela oscilou entre perplexidade, incredulidade e uma torrente de pensamentos confusos. Demorou alguns segundos até conseguir dizer qualquer coisa. Por fim, em vez de responder diretamente, perguntou:

— Já falaram com ela?

Óscar e Laura abanaram a cabeça em uníssono.

— Não — disse Laura, calma mas firme. — Ainda não lhe perguntámos sequer se ela quereria. E nunca o faríamos sem falar primeiro contigo.

Clara deixou escapar um suspiro longo, os olhos marejados, e assentiu devagar. Depois, surpreendendo-os, perguntou:

— E se eu for eu a falar com ela?

O olhar de Óscar e Laura cruzou-se por um instante, antes de ambos lhe sorrirem.

— Sim — respondeu Óscar, com a voz carregada de emoção. — Pode ser.

Clara deixou-se ficar a olhar para os dois, sentindo o peso e a beleza do momento. Pela primeira vez em muito tempo, tinha a sensação de que a família se estava a recompor — não da forma antiga, mas de uma forma nova, que podia vir a ser ainda mais forte.

Clara levantou-se com um sorriso nos lábios e saiu da cozinha. O coração batia-lhe acelerado, mas pela primeira vez em muito tempo não era de ansiedade — era de alegria. No corredor, Daniel cruzou-se com ela e, ao ver-lhe o ar radiante, não resistiu a perguntar:

— O que foi? Passou-se alguma coisa?

Clara apertou-lhe a mão, quase sem conseguir conter-se:

— Algo maravilhoso. — E puxou-o consigo, arrastando-o em direção à sala.

Quando entraram, Benedita estava ainda debruçada sobre os livros, auscultadores pendurados no pescoço, a caneta rodando distraída entre os dedos. Ao ver Clara, levantou a cabeça e abriu um sorriso espontâneo.

— Posso interromper? — perguntou Clara, já sentando-se em frente dela.

— Claro que sim! — respondeu Benedita, abrindo ainda mais o sorriso.

Daniel ficou de pé ao lado da mulher, enquanto Clara, respirando fundo, olhou para a amiga com seriedade misturada a entusiasmo.

— Acabei de falar com os meus pais…

A expressão de Benedita mudou imediatamente. O sorriso esbateu-se e os olhos brilharam de curiosidade e leve apreensão.

— E então? — perguntou, um pouco renitente.

Clara fez uma pausa, quase saboreando a importância do momento.

— Eles falaram comigo de uma possibilidade… mas só pode acontecer se tu quiseres.

Benedita inclinou-se para a frente, a respiração suspensa.

— O quê?

Clara mordeu o lábio, e então, com uma ternura inesperada, deixou escapar:

— Queres ser minha irmã?

O choque estampou-se no rosto de Benedita.

— Como assim? — murmurou, a voz a tremer.

Clara segurou-lhe as mãos e explicou devagar, como quem desenha um sonho com palavras:

— O meu pai e a minha mãe gostavam de te adotar. Mas só se tu quiseres.

Por um instante, Benedita ficou imóvel, paralisada. Depois, como se a represa dentro dela tivesse cedido, os olhos encheram-se-lhe de lágrimas e ela começou a chorar, incapaz de dizer mais nada.

Nesse momento, Óscar e Laura entraram na sala. Vendo-os, Benedita levantou-se de rompante e correu para Óscar, atirando-se ao seu peito e abraçando-o com uma força desesperada, como se tivesse medo que ele desaparecesse.

Óscar, surpreendido, olhou por cima da cabeça dela para Clara e Laura, antes de lhe pousar as mãos nas costas, firme, acolhedor. Laura aproximou-se em silêncio, com lágrimas nos olhos, completando aquele abraço.


Epilogo 

Óscar olhou profundamente nos olhos de Benedita. A respiração dela tremia um pouco, mas o olhar estava firme, decidido.

— Tens mesmo a certeza de que queres fazer isto? — perguntou-lhe, baixo, como se ainda houvesse uma última porta de saída.

— Mais do que tudo. — respondeu ela sem hesitar.

Óscar tentou insistir, a ironia a suavizar-lhe o tom:

— Ainda vamos a tempo de fugir. Podíamos simplesmente sair daqui…

Benedita ergueu uma sobrancelha, divertida:

— Metíamo-nos no Corvette e arrancávamos para o “Inferno Verde”? O que tu querias mesmo era que eu ficasse solteirona.

— Claro. — disse ele, fingindo gravidade. — Para cuidares de mim e da tua mãe quando já estivermos a cair aos pedaços.

Ela riu-se e abanou a cabeça, antes de lhe lançar um olhar terno:

— Pai, eu nunca vos vou deixar. Nem a ti, nem à mãe.

A palavra ficou suspensa no ar. Pai. Não o título que a vida impõe pelo sangue, mas o que nasce da escolha, da entrega. Óscar sentiu o peso e a grandeza daquilo, um orgulho silencioso a encher-lhe o peito. Por um instante, relembrou o caminho doloroso até ali, cada silêncio, cada queda, cada noite perdida — e percebeu que tinha valido a pena.

Ainda assim, não resistiu à provocação:

— Mas olha que o rapaz é um pateta.

— É o meu pateta. — devolveu Benedita, sorridente. — E tu também chamas bronco ao Daniel, mas adoras o homem.

Óscar fez um sorriso enviesado e suspirou.

— No fim, o Pedro também não é mau rapaz.

Nesse momento, a marcha nupcial ecoou pela nave. As portas abriram-se, revelando a igreja decorada com flores e cheia de olhares atentos. Óscar ajeitou o braço de Benedita no seu e caminhou com ela pelo corredor central. Cada passo parecia ressoar com mais peso do que os sinos lá fora.

Quando chegaram ao altar, Clara e Daniel aguardavam como padrinhos. Do outro lado, Pedro fitava-o com um misto de nervosismo e respeito. Óscar estendeu-lhe a mão. O jovem apertou-a firme, num gesto breve mas carregado de reverência. Num só olhar trocaram mais do que palavras alguma vez poderiam dizer: respeito mútuo, aceitação e promessa.

Óscar afastou-se, encontrou o lugar ao lado de Laura e sentou-se. Procurou a mão dela, entrelaçando os dedos. Ela correspondeu, sem precisar de palavras.

E foi nesse instante, em meio à música e às vozes, que ele soube. Apertou-lhe a mão com força e olhou-a nos olhos.

Apesar de tudo, ainda estavam ali.

Não intactos, mas inteiros.

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