O telemóvel vibrou sobre a secretária, e Clara atendeu sem grande
pressa. Do outro lado, ouviu a voz animada de Benedita.
— Olá, Clara! Está tudo bem?
— Está, e contigo? — respondeu Clara, sorrindo sem perceber bem
porquê.
Houve uma hesitação breve, e depois Benedita lançou a pergunta de
forma meio atrapalhada:
— Olha, não fiques chateada… mas a Laura pediu-me para te
perguntar uma coisa.
— Então? — disse Clara, já intrigada.
— Achas que eu podia… ficar com o teu quarto? — perguntou de
supetão, quase sem respirar.
Clara ficou em silêncio por uns segundos, surpreendida. Não era
uma pergunta que esperasse ouvir. Por fim, soltou uma pequena gargalhada.
— O meu quarto?
— Sim, mas só se não te importares! — apressou-se Benedita a
acrescentar. — A Laura disse que a cave podia ser húmida e… pronto…
Clara abanou a cabeça, ainda a sorrir.
— Está bem, miúda. Desde que guardes as minhas coisas e respeites
as recordações que lá estão, por mim não há problema. Olha, se quiseres até
podes ficar com a cama. Tinha um colchão ótimo, super fofo.
— Jura? — Benedita quase gritou. — Claro que sim, guardo tudo
direitinho! E já estou curiosa para experimentar esse colchão mágico.
As duas acabaram a rir, cúmplices, como se tivessem partilhado um
segredo.
Quando desligou, Clara ficou a olhar para o telefone, pensativa.
Havia ali algo que não encaixava. Sem pensar muito, procurou logo o número da
mãe e ligou.
— Mãe, está tudo bem? — perguntou, tentando soar casual.
Laura respondeu com naturalidade:
— Está, claro. Porque perguntas?
— A Benedita acabou de me ligar a pedir o quarto. Há alguma coisa
que eu não saiba?
Laura riu-se, como se fosse uma preocupação desnecessária.
— Foi só uma ideia minha. Achei que a cave podia ser demasiado
húmida, sabes como é… E assim ela ficava mais confortável.
— E o pai? — Clara apertou os olhos, a voz a denunciar a cautela.
Houve uma pequena pausa, e depois Laura respondeu:
— Ele está de acordo. Não há problema nenhum.
Essa resposta foi suficiente para Clara se deixar aliviar, ao
menos por enquanto.
Uns dias depois, quando Clara e Daniel chegaram a casa para que
ela ajudasse Benedita com a matéria da escola — como tantas vezes já tinham
feito antes —, Clara notou logo algo diferente. Não era só a leveza no ar: era
a mãe, que parecia mais solta, quase luminosa, como não a via há muito; e o
pai, que já não se retraía quando ela entrava na sala, como se a simples
presença deixasse de ser um peso.
Intrigada, Clara esperou o momento certo e perguntou a Benedita,
em voz baixa, se se tinha passado alguma coisa. A miúda lançou-lhe um olhar
conspirador, aproximou-se, e num tom quase de segredo murmurou:
— Desde a noite em que me mudei da cave… o Óscar voltou a dormir
em casa.
Clara ficou a fitá-la por uns instantes, como a confirmar se
ouvira bem. Depois, sem conseguir conter-se, deixou escapar um risinho nervoso.
Benedita acompanhou-a, e em poucos segundos estavam as duas a dar pulinhos de
contente, como se partilhassem uma vitória íntima. Clara, por um momento,
esqueceu-se de ser adulta e comportou-se exatamente como a teenager que
Benedita ainda era.
Depois do jantar, Clara estranhou quando os pais a chamaram à
cozinha. O tom sério de Óscar fez o coração dela disparar. Sentaram-se os três
à mesa pequena, a luz amarela da lâmpada pendente lançando sombras suaves nas
paredes. Clara sentiu o nível de ansiedade crescer, como se estivesse prestes a
ouvir uma sentença.
Óscar falou baixo, quase num murmúrio, como se aquelas palavras
não pudessem sair dali:
— Clara… apesar de tudo o que se tem passado, eu jamais trocaria
um minuto do tempo em que te vi crescer e tornar-te mulher por um milhão de
euros.
Clara abriu a boca, hesitante, e tentou continuar, receosa:
— Mas…
Óscar ergueu ligeiramente a mão, interrompendo-a com suavidade mas
firmeza:
— Não há mas. Só há uma pergunta que eu e a tua mãe queremos
fazer. Mas quero que saibas primeiro que nada põe em causa o que tu significas
para mim ou para nós.
Clara respirou fundo, engolindo em seco, e perguntou com cuidado:
— Essa pergunta é dos dois?
Nesse instante, Laura, que permanecia em silêncio ao lado de
Óscar, procurou a mão dele sobre a mesa. Ele aceitou o gesto e entrelaçou os
dedos nos dela. Clara observou, e aquele simples gesto confirmou-lhe aquilo que
já desconfiava há dias: de alguma maneira, os dois estavam juntos. Um sorriso
tímido escapou-lhe, seguido de um aceno, como quem dá permissão:
— Façam a pergunta.
Laura ajeitou-se na cadeira, olhou a filha nos olhos e assumiu a
voz, como se quisesse reforçar que era uma pergunta feita em nome de ambos:
— O que acharias se nós adotássemos a Benedita?
As palavras caíram como um raio. Clara ficou em silêncio, sentindo
um choque a percorrer-lhe o corpo. O rosto dela oscilou entre perplexidade,
incredulidade e uma torrente de pensamentos confusos. Demorou alguns segundos
até conseguir dizer qualquer coisa. Por fim, em vez de responder diretamente,
perguntou:
— Já falaram com ela?
Óscar e Laura abanaram a cabeça em uníssono.
— Não — disse Laura, calma mas firme. — Ainda não lhe perguntámos
sequer se ela quereria. E nunca o faríamos sem falar primeiro contigo.
Clara deixou escapar um suspiro longo, os olhos marejados, e
assentiu devagar. Depois, surpreendendo-os, perguntou:
— E se eu for eu a falar com ela?
O olhar de Óscar e Laura cruzou-se por um instante, antes de ambos
lhe sorrirem.
— Sim — respondeu Óscar, com a voz carregada de emoção. — Pode
ser.
Clara deixou-se ficar a olhar para os dois, sentindo o peso e a
beleza do momento. Pela primeira vez em muito tempo, tinha a sensação de que a
família se estava a recompor — não da forma antiga, mas de uma forma nova, que
podia vir a ser ainda mais forte.
Clara levantou-se com um sorriso nos lábios e saiu da cozinha. O
coração batia-lhe acelerado, mas pela primeira vez em muito tempo não era de
ansiedade — era de alegria. No corredor, Daniel cruzou-se com ela e, ao ver-lhe
o ar radiante, não resistiu a perguntar:
— O que foi? Passou-se alguma coisa?
Clara apertou-lhe a mão, quase sem conseguir conter-se:
— Algo maravilhoso. — E puxou-o consigo, arrastando-o em direção à
sala.
Quando entraram, Benedita estava ainda debruçada sobre os livros,
auscultadores pendurados no pescoço, a caneta rodando distraída entre os dedos.
Ao ver Clara, levantou a cabeça e abriu um sorriso espontâneo.
— Posso interromper? — perguntou Clara, já sentando-se em frente
dela.
— Claro que sim! — respondeu Benedita, abrindo ainda mais o
sorriso.
Daniel ficou de pé ao lado da mulher, enquanto Clara, respirando
fundo, olhou para a amiga com seriedade misturada a entusiasmo.
— Acabei de falar com os meus pais…
A expressão de Benedita mudou imediatamente. O sorriso esbateu-se
e os olhos brilharam de curiosidade e leve apreensão.
— E então? — perguntou, um pouco renitente.
Clara fez uma pausa, quase saboreando a importância do momento.
— Eles falaram comigo de uma possibilidade… mas só pode acontecer
se tu quiseres.
Benedita inclinou-se para a frente, a respiração suspensa.
— O quê?
Clara mordeu o lábio, e então, com uma ternura inesperada, deixou
escapar:
— Queres ser minha irmã?
O choque estampou-se no rosto de Benedita.
— Como assim? — murmurou, a voz a tremer.
Clara segurou-lhe as mãos e explicou devagar, como quem desenha um
sonho com palavras:
— O meu pai e a minha mãe gostavam de te adotar. Mas só se tu
quiseres.
Por um instante, Benedita ficou imóvel, paralisada. Depois, como
se a represa dentro dela tivesse cedido, os olhos encheram-se-lhe de lágrimas e
ela começou a chorar, incapaz de dizer mais nada.
Nesse momento, Óscar e Laura entraram na sala. Vendo-os, Benedita
levantou-se de rompante e correu para Óscar, atirando-se ao seu peito e
abraçando-o com uma força desesperada, como se tivesse medo que ele
desaparecesse.
Óscar, surpreendido, olhou por cima da cabeça dela para Clara e
Laura, antes de lhe pousar as mãos nas costas, firme, acolhedor. Laura
aproximou-se em silêncio, com lágrimas nos olhos, completando aquele abraço.
Epilogo
Óscar olhou profundamente nos olhos de Benedita. A respiração dela
tremia um pouco, mas o olhar estava firme, decidido.
— Tens mesmo a certeza de que queres fazer isto? — perguntou-lhe,
baixo, como se ainda houvesse uma última porta de saída.
— Mais do que tudo. — respondeu ela sem hesitar.
Óscar tentou insistir, a ironia a suavizar-lhe o tom:
— Ainda vamos a tempo de fugir. Podíamos simplesmente sair daqui…
Benedita ergueu uma sobrancelha, divertida:
— Metíamo-nos no Corvette e arrancávamos para o “Inferno Verde”? O
que tu querias mesmo era que eu ficasse solteirona.
— Claro. — disse ele, fingindo gravidade. — Para cuidares de mim e
da tua mãe quando já estivermos a cair aos pedaços.
Ela riu-se e abanou a cabeça, antes de lhe lançar um olhar terno:
— Pai, eu nunca vos vou deixar. Nem a ti, nem à mãe.
A palavra ficou suspensa no ar. Pai. Não o título que a vida impõe
pelo sangue, mas o que nasce da escolha, da entrega. Óscar sentiu o peso e a
grandeza daquilo, um orgulho silencioso a encher-lhe o peito. Por um instante,
relembrou o caminho doloroso até ali, cada silêncio, cada queda, cada noite
perdida — e percebeu que tinha valido a pena.
Ainda assim, não resistiu à provocação:
— Mas olha que o rapaz é um pateta.
— É o meu pateta. — devolveu Benedita, sorridente. — E tu também
chamas bronco ao Daniel, mas adoras o homem.
Óscar fez um sorriso enviesado e suspirou.
— No fim, o Pedro também não é mau rapaz.
Nesse momento, a marcha nupcial ecoou pela nave. As portas
abriram-se, revelando a igreja decorada com flores e cheia de olhares atentos.
Óscar ajeitou o braço de Benedita no seu e caminhou com ela pelo corredor
central. Cada passo parecia ressoar com mais peso do que os sinos lá fora.
Quando chegaram ao altar, Clara e Daniel aguardavam como
padrinhos. Do outro lado, Pedro fitava-o com um misto de nervosismo e respeito.
Óscar estendeu-lhe a mão. O jovem apertou-a firme, num gesto breve mas
carregado de reverência. Num só olhar trocaram mais do que palavras alguma vez
poderiam dizer: respeito mútuo, aceitação e promessa.
Óscar afastou-se, encontrou o lugar ao lado de Laura e sentou-se.
Procurou a mão dela, entrelaçando os dedos. Ela correspondeu, sem precisar de
palavras.
E foi nesse instante, em meio à música e às vozes, que ele soube. Apertou-lhe
a mão com força e olhou-a nos olhos.
Apesar de tudo, ainda estavam ali.
Não intactos, mas inteiros.
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