quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 23

 



Óscar estava no escritório, rodeado de papéis de contratos. Lia cláusulas, rabiscava anotações a lápis, voltava a folhear páginas, quando o telefone vibrou sobre a secretária. Olhou para o visor.

Clara.

Hesitou por alguns segundos, respirou fundo, e atendeu sem um cumprimento:

— Diz.

Do outro lado, a voz dela soou mais trémula do que o habitual:

— Pai… podemos falar?

— Falar de quê? — devolveu ele, seco.

Seguiu-se um silêncio longo, carregado. Até que ela arriscou:

— De tudo.

Óscar manteve-se imóvel, olhando fixamente para os papéis à sua frente como se quisesse atravessá-los. Depois respondeu:

— Então vem almoçar comigo.


Clara apareceu pouco depois num pequeno restaurante discreto, a dois quarteirões do escritório da firma do pai. Um lugar acolhedor, onde os donos conheciam Óscar há muitos anos e o tratavam quase como família.

Ele já estava sentado a uma mesa de canto, de costas para a parede e visão ampla sobre a sala. Assim que a viu entrar, ergueu ligeiramente a mão, indicando-lhe o lugar à frente.

Clara aproximou-se, pousou a mala na cadeira e sentou-se.

Não disseram nada. Ficaram os dois em silêncio, cada um à espera que fosse o outro a quebrar a barreira.

O tilintar de talheres e vozes baixas de outras mesas enchia o espaço. Entre eles, apenas um peso invisível, feito de mágoa, ressentimento e coisas por dizer.

O empregado aproximou-se com a naturalidade de quem já conhecia os hábitos.

Trouxe logo a garrafa pequena de vinho tinto que sabia ser a escolha de Óscar e pousou-a na mesa sem pedir. Depois, sem sequer deixar menus, anunciou os pratos do dia em voz rápida e segura.

Óscar escolheu de imediato. Clara demorou um instante, mas acabou por decidir o mesmo. O empregado assentiu, recolheu-se, e deixou-os novamente a sós.

O silêncio voltou a pesar até que Clara, respirando fundo, arriscou:

— Pai…

A palavra ficou-lhe presa na garganta, como se se tivesse engasgado nas próprias emoções. Tentou de novo, procurando forças.

— Pai, precisava que falasses com o Daniel.

Óscar franziu o sobrolho, intrigado.

— Porquê?

Ela desviou o olhar, mexendo nervosamente no guardanapo entre os dedos.

— Desde aquela conversa… no dia antes de partires de repente, que as coisas não estão bem. A relação ficou… diferente.

Óscar manteve-se imóvel, encarando-a com frieza.

— E o que é que tu esperavas?

Clara ergueu a voz num tom mais carregado de emoção do que queria.

— Pai, eu nunca lhe dei razão nenhuma para desconfiar de mim! Nunca faria nada para o magoar!

Ele interrompeu-a sem levantar o tom, mas com a firmeza que a silenciava de imediato.

— A tua maneira de não magoar os que amas é esconderes o que não é agradável à vista. Segredos. Conluios. Dizes que não magoas, mas só mudas a forma como o fazes. Portanto, percebo muito bem o Daniel.

As palavras caíram como pedras. Clara respirou fundo, tentando recompor-se, e insistiu quase em súplica:

— Mas podes falar com ele? Por favor? O clima entre nós anda tenso… ele está desconfiado.

Óscar recostou-se na cadeira, mas o olhar nunca perdeu a firmeza. Esticou o braço e apontou-lhe o dedo, sem margem para dúvidas:

— Estás a colher o que semeaste. A única coisa que me surpreende é o Daniel só ter percebido quando eu lhe apontei que o que se passava ali era uma falta de integridade.

Clara baixou os olhos, mordendo o lábio. Ele não lhe deu tempo.

— Diz-me: como é que podes esperar que ele confie em ti?

— Pai… — tentou de novo, num tom quase implorativo. — Não podes interceder? Explicar-lhe que eu nunca faria uma coisa dessas?

Óscar inclinou-se ligeiramente para a frente, a voz cortante:

— Não? Não foi exatamente isso que fizeste comigo?

Ela ficou em silêncio, engolindo em seco.

— Já estás grandinha para lidar com os problemas que criaste. — acrescentou, agora mais frio do que duro. — Mas se queres um conselho: se queres de novo a confiança do Daniel, conquista-a com atos. Não com palavras.

O silêncio voltou, carregado. Foi nesse instante que o empregado regressou com os pratos fumegantes, pousando-os em frente de cada um.

Óscar começou a comer sem cerimónias, impávido. Clara, em contrapartida, ficou com o olhar perdido, os pensamentos a fervilhar em torno do que tinha acabado de ouvir.

Quando finalmente pousaram os talheres, Clara ergueu os olhos, hesitante.

— Pai… tu odeias-me?

Óscar não demorou.

— Não. Mas odeio o que fizeste.

Ela respirou fundo, ganhando coragem:

— Tu podes não acreditar… mas a ideia parecia excelente. A mãe dizia-me que já andava a subir pelas paredes. Nunca esteve em causa o que sentíamos por ti, nunca. Antes pelo contrário. Só tínhamos medo de falar contigo antes da operação… tu não estavas bem, e podia desencadear uma reação…

Óscar assentiu, calmo, a voz quase serena:

— Percebo perfeitamente isso tudo.

Clara ficou a olhá-lo, surpreendida. Ele continuou:

— Mas ainda assim… o facto de a tua mãe não ter falado comigo abertamente sobre algo fundamental entre nós… destruiu a imagem que eu tinha do nosso casamento. Para mim sempre foi uma equipa: nós contra o mundo. Ela quebrou isso. Destruiu a imagem que eu tinha dela.

A pausa foi curta. A voz dele baixou, carregada.

— Nunca mais poderei confiar verdadeiramente nela. E da maneira como soube… dificilmente, para o resto da minha vida, conseguirei olhar para ela sem ter a imagem dela semi-despida, em cima da minha secretária, com outro gajo qualquer semi-despido em cima dela. Como se a urgência fosse tanta que nem tiveram tempo de tirar a roupa completamente.

Clara estremeceu. As lágrimas começaram a escorrer-lhe pelo rosto, silenciosas, enquanto assimilava talvez pela primeira vez o impacto brutal que as suas ações tinham tido.

Clara enxugou as lágrimas à pressa, respirou fundo e, com a voz ainda trémula, perguntou:

— Então… e agora?

Óscar apoiou os cotovelos na mesa, entrelaçou as mãos e olhou-a sem desviar.

— Francamente, não sei. Mas sei uma coisa: não existo para resolver os problemas que vocês criaram com as ações que tiveram.

Clara abanou a cabeça, confusa, tentando agarrar-se a qualquer argumento.

— Mas não percebo… se no fundo até entendes as intenções, se não era nossa intenção causar este caos, muito menos magoar-te…

Óscar não hesitou.

— Sim, percebo as boas intenções. Mas o pavimento da estrada para o inferno está feito delas. E aquilo que me deram, Clara… foi exatamente isso. Um inferno.

Ela abriu a boca mas não encontrou resposta. Ficou a olhá-lo, chocada, a tentar conter a torrente de emoções. As mãos tremiam-lhe por baixo da mesa. O restaurante estava cheio, vozes e talheres cruzando-se em fundo, e percebeu com clareza a escolha do pai: ali não podia explodir, ali era obrigada a ouvir até ao fim.

Clara voltou a pegar nos talheres, forçando a mão a manter-se firme, mesmo que lhe tremesse por dentro. À frente dela, o pai mantinha a mesma expressão impenetrável, fria como pedra, sem lhe dar uma única brecha onde pudesse entrar. O som metálico dos talheres dela contrastava com o burburinho constante do restaurante.

À volta, mesas cheias de trabalhadores em pausa: uns de camisa arregaçada, outros ainda de casaco, vinham em pares ou em grupos, ocupando cadeiras de qualquer maneira, rindo e falando alto sobre o trabalho, futebol ou banalidades. O staff andava apressado, equilibrando travessas e pratos, servindo copos de vinho com gestos rotineiros, completamente alheios ao que se passava naquela mesa isolada, onde o silêncio pesava mais que o ruído de todo o restaurante.

Passaram-se longos minutos até que Clara, já mais controlada, largou os talheres por um instante, respirou fundo e deixou escapar, quase num sussurro:

— Pai… eu não sei o que fazer.

Óscar pousou calmamente o guardanapo na mesa, olhou-a fixamente e respondeu sem hesitação:

— Isso é mentira.

Clara ergueu o olhar, surpreendida.

— Como assim?

Ele inclinou-se ligeiramente para a frente, a voz baixa mas firme como aço.

— Tu sabes perfeitamente o que fazer. Mas não queres admitir que estás errada.

Clara ficou a encará-lo como se tivesse acabado de ouvir que o céu era verde, incapaz de reagir.

Óscar não se deteve:

— Enquanto procurares justificações para as tuas ações, em vez de as olhares pelo que foram… vais ficar sempre presa. Presa a algo que não te deixa fazer o que sabes que deves fazer.

As palavras dele ficaram a pairar entre os dois. O silêncio instalou-se novamente, espesso, inquebrável. Clara voltou a comer devagar, mastigando quase sem sentir o sabor. Por dentro, um turbilhão. Por fora, o esforço desesperado para não deixar transparecer.

À sua frente, Óscar permanecia frio, uma muralha impossível de escalar. E isso… isso doía-lhe mais do que tudo.


2 comentários:

  1. Não consigo vislumbrar como vais dar a volta à situação tão, mas tão insólita que criaste :)
    Boa tarde, sô Gil

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. ...tem piada que esse tipo de pensamentos nunca me passam pela cabeça na altura... Mas também, se passassem, não tinha piada... Acabava por não escrever... LOL

      Eliminar

O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!