Óscar estava no
escritório, rodeado de papéis de contratos. Lia cláusulas, rabiscava anotações
a lápis, voltava a folhear páginas, quando o telefone vibrou sobre a
secretária. Olhou para o visor.
Clara.
Hesitou por alguns
segundos, respirou fundo, e atendeu sem um cumprimento:
— Diz.
Do outro lado, a voz
dela soou mais trémula do que o habitual:
— Pai… podemos falar?
— Falar de quê? —
devolveu ele, seco.
Seguiu-se um silêncio
longo, carregado. Até que ela arriscou:
— De tudo.
Óscar manteve-se
imóvel, olhando fixamente para os papéis à sua frente como se quisesse
atravessá-los. Depois respondeu:
— Então vem almoçar
comigo.
Clara apareceu pouco
depois num pequeno restaurante discreto, a dois quarteirões do escritório da
firma do pai. Um lugar acolhedor, onde os donos conheciam Óscar há muitos anos
e o tratavam quase como família.
Ele já estava sentado
a uma mesa de canto, de costas para a parede e visão ampla sobre a sala. Assim
que a viu entrar, ergueu ligeiramente a mão, indicando-lhe o lugar à frente.
Clara aproximou-se,
pousou a mala na cadeira e sentou-se.
Não disseram nada.
Ficaram os dois em silêncio, cada um à espera que fosse o outro a quebrar a
barreira.
O tilintar de talheres
e vozes baixas de outras mesas enchia o espaço. Entre eles, apenas um peso
invisível, feito de mágoa, ressentimento e coisas por dizer.
O empregado
aproximou-se com a naturalidade de quem já conhecia os hábitos.
Trouxe logo a garrafa
pequena de vinho tinto que sabia ser a escolha de Óscar e pousou-a na mesa sem
pedir. Depois, sem sequer deixar menus, anunciou os pratos do dia em voz rápida
e segura.
Óscar escolheu de
imediato. Clara demorou um instante, mas acabou por decidir o mesmo. O empregado
assentiu, recolheu-se, e deixou-os novamente a sós.
O silêncio voltou a
pesar até que Clara, respirando fundo, arriscou:
— Pai…
A palavra ficou-lhe
presa na garganta, como se se tivesse engasgado nas próprias emoções. Tentou de
novo, procurando forças.
— Pai, precisava que
falasses com o Daniel.
Óscar franziu o
sobrolho, intrigado.
— Porquê?
Ela desviou o olhar,
mexendo nervosamente no guardanapo entre os dedos.
— Desde aquela
conversa… no dia antes de partires de repente, que as coisas não estão bem. A
relação ficou… diferente.
Óscar manteve-se
imóvel, encarando-a com frieza.
— E o que é que tu
esperavas?
Clara ergueu a voz num
tom mais carregado de emoção do que queria.
— Pai, eu nunca lhe
dei razão nenhuma para desconfiar de mim! Nunca faria nada para o magoar!
Ele interrompeu-a sem
levantar o tom, mas com a firmeza que a silenciava de imediato.
— A tua maneira de não
magoar os que amas é esconderes o que não é agradável à vista. Segredos.
Conluios. Dizes que não magoas, mas só mudas a forma como o fazes. Portanto,
percebo muito bem o Daniel.
As palavras caíram
como pedras. Clara respirou fundo, tentando recompor-se, e insistiu quase em
súplica:
— Mas podes falar com
ele? Por favor? O clima entre nós anda tenso… ele está desconfiado.
Óscar recostou-se na
cadeira, mas o olhar nunca perdeu a firmeza. Esticou o braço e apontou-lhe o
dedo, sem margem para dúvidas:
— Estás a colher o que
semeaste. A única coisa que me surpreende é o Daniel só ter percebido quando eu
lhe apontei que o que se passava ali era uma falta de integridade.
Clara baixou os olhos,
mordendo o lábio. Ele não lhe deu tempo.
— Diz-me: como é que
podes esperar que ele confie em ti?
— Pai… — tentou de
novo, num tom quase implorativo. — Não podes interceder? Explicar-lhe que eu
nunca faria uma coisa dessas?
Óscar inclinou-se
ligeiramente para a frente, a voz cortante:
— Não? Não foi exatamente
isso que fizeste comigo?
Ela ficou em silêncio,
engolindo em seco.
— Já estás grandinha
para lidar com os problemas que criaste. — acrescentou, agora mais frio do que
duro. — Mas se queres um conselho: se queres de novo a confiança do Daniel,
conquista-a com atos. Não com palavras.
O silêncio voltou,
carregado. Foi nesse instante que o empregado regressou com os pratos
fumegantes, pousando-os em frente de cada um.
Óscar começou a comer
sem cerimónias, impávido. Clara, em contrapartida, ficou com o olhar perdido,
os pensamentos a fervilhar em torno do que tinha acabado de ouvir.
Quando finalmente
pousaram os talheres, Clara ergueu os olhos, hesitante.
— Pai… tu odeias-me?
Óscar não demorou.
— Não. Mas odeio o que
fizeste.
Ela respirou fundo,
ganhando coragem:
— Tu podes não
acreditar… mas a ideia parecia excelente. A mãe dizia-me que já andava a subir
pelas paredes. Nunca esteve em causa o que sentíamos por ti, nunca. Antes pelo
contrário. Só tínhamos medo de falar contigo antes da operação… tu não estavas
bem, e podia desencadear uma reação…
Óscar assentiu, calmo,
a voz quase serena:
— Percebo
perfeitamente isso tudo.
Clara ficou a olhá-lo,
surpreendida. Ele continuou:
— Mas ainda assim… o
facto de a tua mãe não ter falado comigo abertamente sobre algo fundamental
entre nós… destruiu a imagem que eu tinha do nosso casamento. Para mim sempre
foi uma equipa: nós contra o mundo. Ela quebrou isso. Destruiu a imagem que eu
tinha dela.
A pausa foi curta. A
voz dele baixou, carregada.
— Nunca mais poderei
confiar verdadeiramente nela. E da maneira como soube… dificilmente, para o
resto da minha vida, conseguirei olhar para ela sem ter a imagem dela
semi-despida, em cima da minha secretária, com outro gajo qualquer semi-despido
em cima dela. Como se a urgência fosse tanta que nem tiveram tempo de tirar a
roupa completamente.
Clara estremeceu. As
lágrimas começaram a escorrer-lhe pelo rosto, silenciosas, enquanto assimilava
talvez pela primeira vez o impacto brutal que as suas ações tinham tido.
Clara enxugou as
lágrimas à pressa, respirou fundo e, com a voz ainda trémula, perguntou:
— Então… e agora?
Óscar apoiou os
cotovelos na mesa, entrelaçou as mãos e olhou-a sem desviar.
— Francamente, não
sei. Mas sei uma coisa: não existo para resolver os problemas que vocês criaram
com as ações que tiveram.
Clara abanou a cabeça,
confusa, tentando agarrar-se a qualquer argumento.
— Mas não percebo… se
no fundo até entendes as intenções, se não era nossa intenção causar este caos,
muito menos magoar-te…
Óscar não hesitou.
— Sim, percebo as boas
intenções. Mas o pavimento da estrada para o inferno está feito delas. E aquilo
que me deram, Clara… foi exatamente isso. Um inferno.
Ela abriu a boca mas
não encontrou resposta. Ficou a olhá-lo, chocada, a tentar conter a torrente de
emoções. As mãos tremiam-lhe por baixo da mesa. O restaurante estava cheio,
vozes e talheres cruzando-se em fundo, e percebeu com clareza a escolha do pai:
ali não podia explodir, ali era obrigada a ouvir até ao fim.
Clara voltou a pegar
nos talheres, forçando a mão a manter-se firme, mesmo que lhe tremesse por
dentro. À frente dela, o pai mantinha a mesma expressão impenetrável, fria como
pedra, sem lhe dar uma única brecha onde pudesse entrar. O som metálico dos
talheres dela contrastava com o burburinho constante do restaurante.
À volta, mesas cheias
de trabalhadores em pausa: uns de camisa arregaçada, outros ainda de casaco,
vinham em pares ou em grupos, ocupando cadeiras de qualquer maneira, rindo e
falando alto sobre o trabalho, futebol ou banalidades. O staff andava
apressado, equilibrando travessas e pratos, servindo copos de vinho com gestos
rotineiros, completamente alheios ao que se passava naquela mesa isolada, onde
o silêncio pesava mais que o ruído de todo o restaurante.
Passaram-se longos
minutos até que Clara, já mais controlada, largou os talheres por um instante,
respirou fundo e deixou escapar, quase num sussurro:
— Pai… eu não sei o
que fazer.
Óscar pousou
calmamente o guardanapo na mesa, olhou-a fixamente e respondeu sem hesitação:
— Isso é mentira.
Clara ergueu o olhar,
surpreendida.
— Como assim?
Ele inclinou-se
ligeiramente para a frente, a voz baixa mas firme como aço.
— Tu sabes perfeitamente
o que fazer. Mas não queres admitir que estás errada.
Clara ficou a
encará-lo como se tivesse acabado de ouvir que o céu era verde, incapaz de
reagir.
Óscar não se deteve:
— Enquanto procurares
justificações para as tuas ações, em vez de as olhares pelo que foram… vais
ficar sempre presa. Presa a algo que não te deixa fazer o que sabes que deves
fazer.
As palavras dele
ficaram a pairar entre os dois. O silêncio instalou-se novamente, espesso,
inquebrável. Clara voltou a comer devagar, mastigando quase sem sentir o sabor.
Por dentro, um turbilhão. Por fora, o esforço desesperado para não deixar
transparecer.
À sua frente, Óscar
permanecia frio, uma muralha impossível de escalar. E isso… isso doía-lhe mais
do que tudo.
Não consigo vislumbrar como vais dar a volta à situação tão, mas tão insólita que criaste :)
ResponderEliminarBoa tarde, sô Gil
...tem piada que esse tipo de pensamentos nunca me passam pela cabeça na altura... Mas também, se passassem, não tinha piada... Acabava por não escrever... LOL
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