quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 16

 



Saíram de Wissembourg com o sol ainda baixo, tingindo o horizonte de um dourado suave. O ar fresco da manhã parecia prenunciar algo especial, e Benedita percebeu de imediato que havia algo diferente em Óscar. O peso habitual nos seus ombros, aquela sombra permanente no olhar, parecia ter-se dissipado. No lugar dela, um brilho vivo, quase juvenil, iluminava-lhe os olhos — o mesmo brilho que, imaginava ela, uma criança teria ao acordar no dia de Natal, sabendo que o brinquedo tão desejado estava à sua espera.

Mal atravessaram a fronteira, Óscar conduziu o Corvette para a Autobahn. O motor, que até ali ronronava com contenção, soltou um rugido mais grave, quase predatório. Num instante, o carro parecia libertar-se de qualquer amarra, devorando o asfalto com uma fúria controlada.

— Isto… isto é que é conduzir. — disse ele, com um sorriso largo que Benedita raramente lhe via.

Ela, presa ao banco, sentia a vibração do motor subir-lhe pelos ossos. A paisagem passava como pinceladas rápidas numa tela, campos verdes, florestas e pequenas aldeias a desfilar à velocidade de um pensamento. Benedita ia comentando o que via, mas muitas vezes tinha de se rir, porque mal começava a apontar um pormenor, ele já ficava para trás.

— Óscar, acho que acabei de ver um castelo… ou uma torre… não sei… já ficou a quilómetros. — brincou ela, agarrando-se ao encosto do banco, mas sem receio.

— Não te preocupes, hás-de ver muitos mais. — respondeu ele, quase a gritar por cima do rugido do motor, mas com um entusiasmo que contagiava.

Conversa vai, conversa vem, começaram a falar do carro. Benedita queria saber tudo: quantos cavalos, quanto custava, como era conduzi-lo a sério. Ele respondia com gosto, explicando-lhe detalhes mecânicos e histórias de como sempre sonhara em ter algo assim.

— Então foi isso que te trouxe até aqui? — perguntou ela, espreitando-o de lado. — Nürburgring?

Óscar inspirou fundo, como quem saboreia uma memória antiga.

— Sim… mas não é só “a pista”. É a pista. — disse, com ênfase. — Foi construída nos anos vinte, para testar carros e pilotos no limite. Mais de vinte quilómetros de asfalto que serpenteiam pelas colinas e florestas da região, com mais de cento e setenta curvas. É como se tivessem desenhado um labirinto para máquinas e homens.

Benedita ergueu as sobrancelhas.

— Cento e setenta? Isso parece… impossível.

— E é. — sorriu ele, quase com orgulho. — Já foi palco das maiores vitórias e também de tragédias brutais. Tão difícil e perigosa que Jackie Stewart, um campeão lendário, a apelidou de Grüne Hölle… o Inferno Verde. Quem entra lá sabe que está a lidar com um monstro.

Ela olhou-o de soslaio, percebendo que, para ele, não era apenas sobre velocidade.

— E tu queres enfrentar esse monstro?

— Quero. — respondeu, seco, mas com um brilho nos olhos. — Não para vencê-lo… mas para provar a mim próprio que consigo entrar e sair de lá de pé.

Ela ficou em silêncio, deixando que as palavras assentassem. À medida que atravessavam a Alemanha, a velocidade transformava-se num estranho bálsamo. Não era só ele que parecia libertar-se — ela própria sentia o vento, a força, o ímpeto, como se uma parte de si estivesse também a romper correntes invisíveis.

Quase trezentos quilómetros voaram num ápice. Antes que dessem por isso, as placas indicavam Nürburg. Óscar reduziu a velocidade, mas não o sorriso. Chegaram antes da hora do almoço, com o Corvette a resfolegar, quente, como um animal que tivesse acabado de correr até ao limite.

— Bem-vinda ao meu… pequeno pedaço de paraíso. — disse ele, estacionando e desligando o motor, mas deixando-o ecoar na memória dela.

Quando deixaram para trás a última saída da Autobahn, Óscar abrandou o Corvette, como se estivesse a amansar um animal selvagem. O rugido do motor desceu de tom, passando de grito furioso a ronronar grave e compassado. As estradas secundárias estreitavam-se, ladeadas por florestas densas que filtravam a luz num mosaico verde-dourado.

— Agora… começa a parte bonita. — disse ele, com um sorriso que mal conseguia conter.

Benedita encostou-se ao banco, observando as colinas que se erguiam e se escondiam entre curvas suaves. Campos com erva alta balançavam ao vento, pequenas aldeias com casas de telhados íngremes e paredes de madeira escura surgiam e desapareciam, como postais que alguém lhe passava à frente.

— É tudo tão… limpo. Parece saído de um filme. — comentou ela, com um ar meio sonhador.

— E espera até veres o que se esconde mais à frente. — respondeu ele, mantendo os olhos fixos na estrada, mas com a voz carregada de antecipação.

De repente, começaram a cruzar-se com outros carros — não os utilitários comuns, mas máquinas de sonho: Porsches de linhas afiadas, Ferraris vermelhos como labaredas, Lamborghinis amarelo-ouro, McLarens de fibra de carbono que pareciam naves espaciais. O ronco grave ou o grito agudo de cada motor preenchia o ar, como se toda a região pulsasse ao ritmo da velocidade.

— Isto é surreal… — disse Benedita, virando a cabeça para seguir um Aston Martin que passou por eles. — Nunca vi tantos carros destes juntos.

Óscar soltou uma pequena gargalhada.

— Aqui, isso é só… terça-feira.

— Não me digas que todos estes vêm para a pista.

— Aposto que sim. Alguns vêm correr, outros só para dizer que estiveram. — olhou-a de relance. — Mas nós… vamos pelos dois motivos.

Ela abanou a cabeça, entre o espanto e a diversão.

— És um caso perdido.

— E orgulhoso disso. — respondeu ele, ainda com aquele brilho infantil nos olhos.

Com o estômago a dar sinais de vida, começaram a procurar um lugar para almoçar. Encontraram um pequeno restaurante familiar à beira da estrada, com mesas de madeira escura e toalhas aos quadrados vermelhos e brancos. Uma janela ampla deixava entrar a luz e, estacionados lá fora, dois Porsches e um BMW M4 pareciam fazer parte da decoração.

— Se a comida for tão boa quanto o estacionamento, estamos bem servidos. — brincou Benedita, enquanto se sentavam.

O dono, um homem de meia-idade com ar afável, trouxe-lhes o menu. Óscar não hesitou.

— Schweinshaxe para mim. — pediu, com um sorriso decidido.

Benedita franziu o sobrolho.

— E isso é…?

— Eisbein. Joelho de porco assado até a pele ficar crocante, servido com chucrute e batatas. Uma especialidade alemã. — explicou ele, como se fosse uma lição importante.

— Hmm… e eu que ia pedir só uma sopa… — disse ela, antes de decidir experimentar um prato de bratwurst com mostarda forte e salada de batata.

Enquanto esperavam, Óscar mantinha os olhos vivos, como se mesmo dentro do restaurante não conseguisse desligar-se do que estava lá fora.

— Sabes, amanhã vamos estar no meio daquilo tudo. Eu, tu, o carro… e o Inferno Verde.

— Isso é para meter medo ou para entusiasmar? — perguntou ela, com um sorriso curioso.

— As duas coisas. — respondeu ele, e brindaram com os copos de cerveja — a dele, robusta e escura; a dela, leve e dourada.

A comida chegou fumegante, e Benedita soltou um “uau” genuíno ao ver a dimensão do prato de Óscar.

— Vais mesmo conseguir comer isso tudo?

— Não, mas vou tentar com todas as minhas forças. — respondeu ele, antes de dar a primeira trincada na pele estaladiça, fechando os olhos de puro prazer.

Comeram devagar, falando de tudo e de nada, enquanto lá fora os motores continuavam a rugir ao longe, como um chamamento que se aproximava.

Depois do almoço, Óscar limpou as mãos com um guardanapo, bebeu o último gole de cerveja e, num tom quase conspirador, disse:

— Amanhã… amanhã é o dia. Hoje vamos só explorar.

Benedita percebeu que ele queria saborear a antecipação. Reservaram a pista para a manhã seguinte e, com essa certeza tranquila, voltaram ao Corvette. O motor rugiu de novo, mas desta vez não havia pressa; Óscar conduzia como quem passeia um cavalo puro-sangue, controlando cada passo.

As estradas em redor de Nürburg eram um convite aberto para quem amava conduzir: curvas largas, retas que atravessavam campos verdejantes, florestas cerradas com árvores tão altas que pareciam tocar o céu. Passaram por pequenas aldeias com igrejas de pedra e campanários antigos, onde velhos sentados à porta das casas os seguiam com o olhar, como se o barulho do motor fosse uma novidade curiosa.

— Sinto que estamos a atravessar um postal atrás do outro. — disse Benedita, encostada ao banco, a observar as cores e texturas da paisagem.

— É por isso que gosto de conduzir aqui. — respondeu Óscar, sem tirar os olhos da estrada. — Não é só o destino… é o caminho.

Foram subindo por uma estrada estreita até um miraCávado natural. Dali, via-se toda a região: o castelo de Nürburg erguendo-se sobre a colina, as faixas da pista recortando a floresta como cicatrizes negras no verde. Benedita ficou em silêncio, absorvendo aquela vista. Óscar, ao lado, cruzou os braços e sorriu.

— Amanhã… vamos estar lá dentro.

O resto da tarde passou entre vilas pitorescas, paragens para fotografar campos cobertos de flores silvestres e pequenas conversas sobre carros, música e memórias antigas. À medida que o sol começava a descer, Óscar apontou para um pequeno restaurante numa encosta, com janelas viradas para o vale.

Lá dentro, o aroma de carne assada e ervas frescas enchia o ar. Pediram um prato típico da região: Sauerbraten — carne marinada em vinho e especiarias, servida com Knödel (bolinhos de pão) e repolho roxo estufado. A carne era tão macia que se desfazia ao toque do garfo. Benedita provou e, com um brilho nos olhos, admitiu:

— Isto… isto é melhor que o joelho de porco.

Óscar soltou uma gargalhada curta.

— Vou fingir que não ouvi isso… mas talvez tenhas razão.

Quando saíram, já a noite tinha tomado conta do vale. Em vez de seguirem para um hotel, Óscar guiou por uma estrada secundária até uma pequena aldeia a poucos quilómetros. Tinham reservado um Airbnb: uma casa de pedra com telhado inclinado, janelas pequenas e canteiros floridos. No interior, madeira escura, lareira acesa e um cheiro a pão fresco que parecia ter ficado preso nas paredes.

— Isto… é perfeito. — disse Benedita, pousando a mochila. — Quase parece que estamos a invadir a casa de alguém que saiu só para nos deixar ficar.

— É essa a ideia. — respondeu Óscar, pousando as chaves sobre a mesa. — Mais… humano que um hotel.

Ela espreitou pela janela e viu as luzes da aldeia a brilhar suavemente contra a escuridão. Lá fora, o silêncio só era quebrado pelo som distante de um carro desportivo que, certamente, andava a percorrer as estradas como eles tinham feito.

— Amanhã… — começou ela.

— Amanhã, sim. — interrompeu ele, sorrindo. — Amanhã, Inferno Verde.


2 comentários:

  1. Hoje consegui passar de manhã, quer dizer... antes do meio dia :)
    Pronta para o próximo
    Bom dia, sô Gil

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O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!