Saíram de Wissembourg
com o sol ainda baixo, tingindo o horizonte de um dourado suave. O ar fresco da
manhã parecia prenunciar algo especial, e Benedita percebeu de imediato que
havia algo diferente em Óscar. O peso habitual nos seus ombros, aquela sombra
permanente no olhar, parecia ter-se dissipado. No lugar dela, um brilho vivo,
quase juvenil, iluminava-lhe os olhos — o mesmo brilho que, imaginava ela, uma
criança teria ao acordar no dia de Natal, sabendo que o brinquedo tão desejado
estava à sua espera.
Mal atravessaram a
fronteira, Óscar conduziu o Corvette para a Autobahn. O motor, que até ali
ronronava com contenção, soltou um rugido mais grave, quase predatório. Num
instante, o carro parecia libertar-se de qualquer amarra, devorando o asfalto
com uma fúria controlada.
— Isto… isto é que é
conduzir. — disse ele, com um sorriso largo que Benedita raramente lhe via.
Ela, presa ao banco,
sentia a vibração do motor subir-lhe pelos ossos. A paisagem passava como
pinceladas rápidas numa tela, campos verdes, florestas e pequenas aldeias a
desfilar à velocidade de um pensamento. Benedita ia comentando o que via, mas
muitas vezes tinha de se rir, porque mal começava a apontar um pormenor, ele já
ficava para trás.
— Óscar, acho que
acabei de ver um castelo… ou uma torre… não sei… já ficou a quilómetros. —
brincou ela, agarrando-se ao encosto do banco, mas sem receio.
— Não te preocupes,
hás-de ver muitos mais. — respondeu ele, quase a gritar por cima do rugido do
motor, mas com um entusiasmo que contagiava.
Conversa vai, conversa
vem, começaram a falar do carro. Benedita queria saber tudo: quantos cavalos,
quanto custava, como era conduzi-lo a sério. Ele respondia com gosto,
explicando-lhe detalhes mecânicos e histórias de como sempre sonhara em ter
algo assim.
— Então foi isso que
te trouxe até aqui? — perguntou ela, espreitando-o de lado. — Nürburgring?
Óscar inspirou fundo,
como quem saboreia uma memória antiga.
— Sim… mas não é só “a
pista”. É a pista. — disse, com ênfase. — Foi construída nos anos vinte, para
testar carros e pilotos no limite. Mais de vinte quilómetros de asfalto que
serpenteiam pelas colinas e florestas da região, com mais de cento e setenta
curvas. É como se tivessem desenhado um labirinto para máquinas e homens.
Benedita ergueu as
sobrancelhas.
— Cento e setenta?
Isso parece… impossível.
— E é. — sorriu ele,
quase com orgulho. — Já foi palco das maiores vitórias e também de tragédias
brutais. Tão difícil e perigosa que Jackie Stewart, um campeão lendário, a
apelidou de Grüne Hölle… o Inferno Verde. Quem entra lá sabe que está a lidar
com um monstro.
Ela olhou-o de
soslaio, percebendo que, para ele, não era apenas sobre velocidade.
— E tu queres
enfrentar esse monstro?
— Quero. — respondeu,
seco, mas com um brilho nos olhos. — Não para vencê-lo… mas para provar a mim
próprio que consigo entrar e sair de lá de pé.
Ela ficou em silêncio,
deixando que as palavras assentassem. À medida que atravessavam a Alemanha, a
velocidade transformava-se num estranho bálsamo. Não era só ele que parecia
libertar-se — ela própria sentia o vento, a força, o ímpeto, como se uma parte
de si estivesse também a romper correntes invisíveis.
Quase trezentos
quilómetros voaram num ápice. Antes que dessem por isso, as placas indicavam
Nürburg. Óscar reduziu a velocidade, mas não o sorriso. Chegaram antes da hora
do almoço, com o Corvette a resfolegar, quente, como um animal que tivesse
acabado de correr até ao limite.
— Bem-vinda ao meu…
pequeno pedaço de paraíso. — disse ele, estacionando e desligando o motor, mas
deixando-o ecoar na memória dela.
Quando deixaram para
trás a última saída da Autobahn, Óscar abrandou o Corvette, como se estivesse a
amansar um animal selvagem. O rugido do motor desceu de tom, passando de grito
furioso a ronronar grave e compassado. As estradas secundárias estreitavam-se,
ladeadas por florestas densas que filtravam a luz num mosaico verde-dourado.
— Agora… começa a
parte bonita. — disse ele, com um sorriso que mal conseguia conter.
Benedita encostou-se
ao banco, observando as colinas que se erguiam e se escondiam entre curvas
suaves. Campos com erva alta balançavam ao vento, pequenas aldeias com casas de
telhados íngremes e paredes de madeira escura surgiam e desapareciam, como
postais que alguém lhe passava à frente.
— É tudo tão… limpo.
Parece saído de um filme. — comentou ela, com um ar meio sonhador.
— E espera até veres o
que se esconde mais à frente. — respondeu ele, mantendo os olhos fixos na
estrada, mas com a voz carregada de antecipação.
De repente, começaram
a cruzar-se com outros carros — não os utilitários comuns, mas máquinas de
sonho: Porsches de linhas afiadas, Ferraris vermelhos como labaredas,
Lamborghinis amarelo-ouro, McLarens de fibra de carbono que pareciam naves
espaciais. O ronco grave ou o grito agudo de cada motor preenchia o ar, como se
toda a região pulsasse ao ritmo da velocidade.
— Isto é surreal… —
disse Benedita, virando a cabeça para seguir um Aston Martin que passou por
eles. — Nunca vi tantos carros destes juntos.
Óscar soltou uma
pequena gargalhada.
— Aqui, isso é só…
terça-feira.
— Não me digas que
todos estes vêm para a pista.
— Aposto que sim.
Alguns vêm correr, outros só para dizer que estiveram. — olhou-a de relance. —
Mas nós… vamos pelos dois motivos.
Ela abanou a cabeça,
entre o espanto e a diversão.
— És um caso perdido.
— E orgulhoso disso. —
respondeu ele, ainda com aquele brilho infantil nos olhos.
Com o estômago a dar
sinais de vida, começaram a procurar um lugar para almoçar. Encontraram um
pequeno restaurante familiar à beira da estrada, com mesas de madeira escura e
toalhas aos quadrados vermelhos e brancos. Uma janela ampla deixava entrar a
luz e, estacionados lá fora, dois Porsches e um BMW M4 pareciam fazer parte da
decoração.
— Se a comida for tão
boa quanto o estacionamento, estamos bem servidos. — brincou Benedita, enquanto
se sentavam.
O dono, um homem de
meia-idade com ar afável, trouxe-lhes o menu. Óscar não hesitou.
— Schweinshaxe para
mim. — pediu, com um sorriso decidido.
Benedita franziu o
sobrolho.
— E isso é…?
— Eisbein. Joelho de
porco assado até a pele ficar crocante, servido com chucrute e batatas. Uma
especialidade alemã. — explicou ele, como se fosse uma lição importante.
— Hmm… e eu que ia
pedir só uma sopa… — disse ela, antes de decidir experimentar um prato de
bratwurst com mostarda forte e salada de batata.
Enquanto esperavam, Óscar
mantinha os olhos vivos, como se mesmo dentro do restaurante não conseguisse
desligar-se do que estava lá fora.
— Sabes, amanhã vamos
estar no meio daquilo tudo. Eu, tu, o carro… e o Inferno Verde.
— Isso é para meter
medo ou para entusiasmar? — perguntou ela, com um sorriso curioso.
— As duas coisas. —
respondeu ele, e brindaram com os copos de cerveja — a dele, robusta e escura;
a dela, leve e dourada.
A comida chegou
fumegante, e Benedita soltou um “uau” genuíno ao ver a dimensão do prato de Óscar.
— Vais mesmo conseguir
comer isso tudo?
— Não, mas vou tentar
com todas as minhas forças. — respondeu ele, antes de dar a primeira trincada
na pele estaladiça, fechando os olhos de puro prazer.
Comeram devagar,
falando de tudo e de nada, enquanto lá fora os motores continuavam a rugir ao
longe, como um chamamento que se aproximava.
Depois do almoço, Óscar
limpou as mãos com um guardanapo, bebeu o último gole de cerveja e, num tom
quase conspirador, disse:
— Amanhã… amanhã é o
dia. Hoje vamos só explorar.
Benedita percebeu que
ele queria saborear a antecipação. Reservaram a pista para a manhã seguinte e,
com essa certeza tranquila, voltaram ao Corvette. O motor rugiu de novo, mas
desta vez não havia pressa; Óscar conduzia como quem passeia um cavalo
puro-sangue, controlando cada passo.
As estradas em redor
de Nürburg eram um convite aberto para quem amava conduzir: curvas largas,
retas que atravessavam campos verdejantes, florestas cerradas com árvores tão
altas que pareciam tocar o céu. Passaram por pequenas aldeias com igrejas de
pedra e campanários antigos, onde velhos sentados à porta das casas os seguiam
com o olhar, como se o barulho do motor fosse uma novidade curiosa.
— Sinto que estamos a
atravessar um postal atrás do outro. — disse Benedita, encostada ao banco, a observar
as cores e texturas da paisagem.
— É por isso que gosto
de conduzir aqui. — respondeu Óscar, sem tirar os olhos da estrada. — Não é só
o destino… é o caminho.
Foram subindo por uma
estrada estreita até um miraCávado natural. Dali, via-se toda a região: o
castelo de Nürburg erguendo-se sobre a colina, as faixas da pista recortando a
floresta como cicatrizes negras no verde. Benedita ficou em silêncio,
absorvendo aquela vista. Óscar, ao lado, cruzou os braços e sorriu.
— Amanhã… vamos estar
lá dentro.
O resto da tarde
passou entre vilas pitorescas, paragens para fotografar campos cobertos de
flores silvestres e pequenas conversas sobre carros, música e memórias antigas.
À medida que o sol começava a descer, Óscar apontou para um pequeno restaurante
numa encosta, com janelas viradas para o vale.
Lá dentro, o aroma de
carne assada e ervas frescas enchia o ar. Pediram um prato típico da região: Sauerbraten — carne marinada em vinho
e especiarias, servida com Knödel
(bolinhos de pão) e repolho roxo estufado. A carne era tão macia que se
desfazia ao toque do garfo. Benedita provou e, com um brilho nos olhos,
admitiu:
— Isto… isto é melhor
que o joelho de porco.
Óscar soltou uma
gargalhada curta.
— Vou fingir que não
ouvi isso… mas talvez tenhas razão.
Quando saíram, já a
noite tinha tomado conta do vale. Em vez de seguirem para um hotel, Óscar guiou
por uma estrada secundária até uma pequena aldeia a poucos quilómetros. Tinham
reservado um Airbnb: uma casa de
pedra com telhado inclinado, janelas pequenas e canteiros floridos. No
interior, madeira escura, lareira acesa e um cheiro a pão fresco que parecia
ter ficado preso nas paredes.
— Isto… é perfeito. —
disse Benedita, pousando a mochila. — Quase parece que estamos a invadir a casa
de alguém que saiu só para nos deixar ficar.
— É essa a ideia. —
respondeu Óscar, pousando as chaves sobre a mesa. — Mais… humano que um hotel.
Ela espreitou pela
janela e viu as luzes da aldeia a brilhar suavemente contra a escuridão. Lá
fora, o silêncio só era quebrado pelo som distante de um carro desportivo que,
certamente, andava a percorrer as estradas como eles tinham feito.
— Amanhã… — começou
ela.
— Amanhã, sim. —
interrompeu ele, sorrindo. — Amanhã, Inferno Verde.
Hoje consegui passar de manhã, quer dizer... antes do meio dia :)
ResponderEliminarPronta para o próximo
Bom dia, sô Gil
Foi, hoje passaste cedinho... LOL
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