-Podemos ir no meu carro – disse Miranda assim que saíram.
-Deixa o carro. Vamos dar uma volta a pé.
Caminharam pela rua fora até chegarem à pequena capela no centro da povoação. Não havia ali uma igreja, até porque a povoação era mesmo muito pequena, mas todos os Domingos havia ali missa e a capela enchia com a população, o que não era difícil devido ao tamanho. Mas, fora isso, a porta da capela estava sempre aberta, excepto à noite, quando uma das senhoras da aldeia, a cuidadora do local, a fechava, apenas para a abrir logo de manhã, quando se levantava.
-Acreditas em Deus? – Perguntou Rob.
-És católico? – perguntou ela admirada -Por aqui toda a gente é católica, certo?
-Sim, mais ou menos. Mas não precisas de religião para acreditar em Deus.
Miranda pensou um pouco.
-Sim, acredito. Quer dizer, não acredito que haja um velhote de barbas brancas a viver nas nuvens, ou assim…
Rob riu-se.
-Bem, acho que os católicos também não acreditam nisso. Mas então, qual é a tua ideia de Deus?
-Acho que é um ser espiritual que está tão acima do que nós somos que não o conseguimos sequer compreender.
-Isso é o que eu chamos uma excelente resposta que não diz absolutamente nada acerca de coisa nenhuma. Mas eu percebo-te. É difícil definir o indefinível, ou tentar limitar o infinito ou até mesmo tentar compreender o que está além da compreensão. É como tentar colocar um oceano num copo de água. Mas, não, não sou católico no sentido de que não fui batizado e não sigo os preceitos, mas, como te disse, quando aqui cheguei precisei de me integrar e isto faz parte integrante da cultura.
Atravessaram a porta e Miranda ficou surpreendida. Se por fora a capela não era muito diferente, em termos de decoração, das casas que a rodeavam, quase todas caiadas de branco com uma lista azul forte junto ao solo e a realçar as ombreiras das portas e janelas, por dentro as paredes estavam preenchidas de azulejos até meia altura, todos ricamente desenhados mostrando cenas bíblicas. O altar mor, embora pequeno, era todo trabalhado a talha dourada, com um trono vazio e uma coroa suspensa do tecto. A frente do trono, um crucifixo com a imagem de cristo. De ambos os lados do altar mor havia dois pequenos altares, também em talha dourada, um com a imagem de Nossa Senhora da Conceição e outro com a Imagem de Santo António, padroeiro da terra.
-Olhando do exterior, ninguém diria que a Capela é tão bonita.
-Uma das coisas que te posso dizer acerca deste país é: onde vires uma capela ou igreja com um aspecto antigo, se puderes, vai ver o que está lá dentro. Normalmente surpreendes-te.
Ele aproximou-se do banco corrido da ultima fila e ajoelhou-se, contemplando o altar e convidou-a a fazer o mesmo.
-Se acreditas em Deus, como afirmaste há pouco, então estás num sitio dedicado a ele. O Deus que descreveste não é o Deus de uma religião, é pura e simplesmente Deus. E embora a presença dele esteja em cada ponto do universo, em cada partícula, este é um local construído em sua honra. Portanto estas no sitio onde podes celebrar o criador e a criação. Os detalhes da celebração, para te ser franco, não acho serem importantes. – Ela acenou entendendo e ele continuou – É aqui que podes rezar por aquilo que queres.
-Mas eu não sei rezar.
Rob sorriu.
-Não precisas de ladainhas. Precisas é de focar os teus pensamentos e ser absolutamente honesta contigo própria, mesmo quando dói. Reconhecer o que achas que está errado em ti e tentar melhorá-lo. Perceber o que podes ter feito a outros que possa ter tido um impacto negativo e pedir a luz suficiente para corrigir os teus erros. Se o fizeres, de forma absolutamente sincera para contigo, estás a rezar.
Ela assentiu. Ele virou-se para a frente e ficou silencioso em contemplação. Ela pensou naquilo que ele disse e ficou também a meditar em toda esta situação, do que a trouxera ali, do que pretendia, da ajuda que precisava e estranhamente, uma calma suave caiu sobre ela.
Ao fim de algum tempo ali, ambos num sossego contemplativo, Rob levantou-se e fez o sinal da cruz, gesto em que foi imitado por ela, embora ela não fizesse bem ideia do porquê e saíram de novo para a rua.
-Então, pediste alguma coisa? – perguntou ele.
-Sim,…
-Não me digas o quê. – Interrompeu ele – Só para te dizer uma coisa: Lembra-te que Deus nunca te dá o que queres, mas sim o que precisas. E a maior parte das vezes, na vida, aquilo que queremos raramente precisamos e aquilo que precisamos raramente queremos.
Continuaram e Rob apontou para uma casa, já no fim da rua e consequentemente da população.
-Aquela é a casa da D. Clarisse. É ela que faz aquele pão delicioso que tens andado a comer. Ela já está velhota e só faz pão às Terças, Quintas e Sábados, mas quando faz toda a gente da região passa por aqui para vir buscar o pão fresco. Mas ela costuma fazer pão mais ou menos à justa para as encomendas que tem. Queres pão, para ter em casa em vez de teres de vir sempre tomar o pequeno almoço ao Zé?
Ela assentiu e Rob levou-a em direcção à casa. Bateu à porta e uma velhinha, que aparentava ter pelo menos uns oitenta anos veio à porta.
-Olha o Rob! – disse ela com um sorriso satisfeito – Não me digas que já comeste o pão todo?
-Não, D. Clarisse. Lá era eu capaz… Olhe, quero apresentar-lhe esta menina – fazendo menção a Miranda – que é estrangeira e está a ficar na casa grande da Herdade do Monte.
-Ah! Atã mas o monte nã estava abandonado?
-Eles agora alugam aquilo a gente de fora que queira vir aqui passar férias.
-Atã e ela veio p’raqui?
-Sim, ela e uma amiga. E vão ficar uns dias. Pode fazer mais uns dois pães para elas de cada vez?
-Está bem. Mas ela nã fala?
-Fala, mas só estrangeiro.
-Pois, ê isso de estrangeiro nã percebo nada. Atã e como é que fazemos com os pães se ê nã me intendo com elas?
-Não se preocupe. Ponha os pães no meu saco que eu depois dou-lhes.
A velhota entretanto olhou bem para Miranda e depois disse descaradamente:
-Olha lá, é tua namorada?
-Não.
-Olha que fazes mal que a moça é bem jeitosa. Mas tem lá cuidado que essas moças estrangeiras nã sã de fiar.
Rob riu-se e despediram-se da velhota e afastaram-se.
-O que é que foi aquilo tudo, perguntou logo Miranda curiosa.
-Aquilo? Estava só a encomendar pão para ti. Ela vai entregar-mo e eu dou-to.
-Só isso?
-Bem, ela também estava a perguntar se eras minha namorada. Quando eu lhe disse que não, ela disse que eu fazia mal, porque tu és bem jeitosa.
Miranda corou e Rob riu-se.
Saíram da povoação e foram andando por carreiros estreitos, onde só se podia passar a pé por entre pequenas quintas cheias de produtos hortícolas e quintas maiores cheias de vinhas e oliveiras. Depois entraram num pinhal e continuaram pelo carreiro que era sempre a descer. Ouvia-se na distância um burburinho de água a correr, mas só ao fim de uma meia hora Miranda percebeu o porque, quando se aproximaram de um regato que serpenteava pelo meio do Pinhal. De repente abriu-se uma clareira à frente deles que era ladeada por mesas e bancos de cimento, e tinha também um enorme grelhador. O local estava completamente vazio e os únicos ruídos que se ouviam e a água a correr, o som da aragem a fazer restolhar as folhas das arvores e o canto de um ou outro pássaros distantes.
Rob sentou-se numa das mesas, à sombra, e ela acompanhou-o.
-Que é que achas do sítio?
-Pacifico. – respondeu ela com um sorriso.
-Nos fins-de-semana isto costuma estar cheio de pessoal que vem aqui conviver. Mas durante a semana está sempre vazio.
Miranda assentiu e foi observando tudo à sua volta.
- Eu sei – continuou Rob – que tens as tuas assunções acerca de mim. Mas agora põe-nas de lado. Eu sou somente um conhecido teu, com quem falaste meia dúzia de vezes. Dizes que queres uma visão minha… Então podes começar por explicar “a birra” para eu te poder dizer alguma coisa. Senão vamos estar neste impasse até ao fim dos tempos.
Ela olhou para ele surpreendida pela forma direta, brusca mesmo, com que ele abordou o assunto. Ficou um bocado em silêncio, a contemplar a paisagem enquanto tentava organizar as ideias.
-Antes disso, posso só saber se tens alguma relação com o meu marido? Disseste sempre que nem o conhecias…
-Menti. – disse ele sem o menor remorso – Conheci-o há seis anos. Cruzamo-nos brevemente no Norte do Brasil, na floresta Amazónica.
-Só isso?
-Para já, sim.
-Mas o que é que… - Rob interrompeu-a, levantando a mão.
-Fizeste uma pergunta, dei-te uma resposta. Agora é a tua vez.
Miranda percebeu que não teria mais nada de Rob, se não continuasse a conversa de uma maneira proveitosa, por isso resignou-se e começou:
-Conhecemo-nos quando ainda eramos adolescentes. Podes achar piroso ou o que lhe quiseres chamar, mas no dia em que o vi pela primeira vez apaixonei-me por ele. A maneira como ele tocava enchia-me a alma e quando cantava… Foi uma paixão à primeira vista e para te ser franco, acho que foi mutua. A minha vontade de estar sempre com ele fez com que aos poucos eu começasse a tentar gerir a carreira dele. Sabes, apesar do talento, ele era completamente cego ao lado dos negócios. Mas acabamos por conseguir fazer uma dupla que funcionava muito bem mesmo. Comecei a marcar os concertos dele, a tentar fazer ouvir as musicas dele em rádios locais… A fama dele foi crescendo e foi-se tornando um culto, até ao ponto em que começamos a chamar à atenção algumas editoras interessadas em apostar nele. E depois conseguimos o contrato, mas Rob não ficou agradado. Chamaram produtores e escritores para fazer as coisas com ele, porque, como calculas, a editora não está ali pela arte, mas pelo lucro.
-Não é sempre assim?
-É, de facto é. Mas continuando, contrataram consultores de imagem que lhe diziam como se devia apresentar, escritores que lhe diziam como devia fazer as musicas, produtores que diziam como devia soar. O Rob detestou cada passo. Havia dias em que me dizia que sentia que estava a vender a alma. Ao ponto de desprezar as próprias musicas depois de gravadas. Mas tudo aquilo teve sucesso, aliás um sucesso fenomenal, que acabou por dar em digressões que se espalharam por quase todos os continentes e ocuparam centenas de pessoas entre planeamento e execução. Na ultima digressão chegavam a estar mais de cinquenta pessoas em palco e certas alturas entre bailarinos, figurantes, músicos e pessoal de apoio. O Rob não queria nada disto. E, olhando para trás, acho que o único motivo que o levou a continuar fui eu. Eu insisti, mostrando-lhe o quanto teríamos uma segurança financeira e que, quando a conseguíssemos, ele teria já uma carreira e seguidores suficientes para fazer o que quisesse.
-Então dizes-me que basicamente ele aceitou um emprego que não queria e vestiu uma imagem na qual não se revia por ti, por tua causa.
-Sim.
-E no meio disso tudo ganharam estatuto e muito dinheiro, conseguindo a tal segurança.
-Sim conseguimos isso tudo. Mas queria que percebesses que nenhum de nós vinha de uma vida abastada, antes pelo contrário. Daí talvez ser tão importante para mim essa tal segurança.
Rob assentiu, compreendendo.
-Mas depois algo se passou… - disse Rob.
-Sim. O contrato que tínhamos era de cinco álbuns. Os primeiros quatro deram-nos tudo aquilo que podíamos ter sonhado. E o Rob insistiu que não queria ninguém a escrever ou produzir o quinto álbum. A editora, depois de muita insistência minha, lá aceitou a condição. Ele passou semanas fechado sozinho no estúdio que tínhamos em casa e quando acabou o álbum, mostrou-mo. Assim que eu o ouvi fiquei preocupada com o que iria acontecer em seguida. O álbum não tinha absolutamente nada de comercial, estava nos antípodas daquilo que tinha sido lançado por ele anteriormente. E eu, em vez de ouvir as musicas pela arte e depois explicar a minha preocupação com a possível recepção do álbum, fiz exactamente o contrário. Ainda a primeira musica não tinha acabado e já eu o interrogava e dizia que, se calhar, não era o álbum certo para lançar. Mas desta vez o Rob não me ouviu, disse que era este ou nenhum e eu entreguei o álbum à editora.
-Posso quase imaginar a cara de alguns contabilistas na editora… - disse Rob com um sorriso.
-A cara dos contabilistas não foi o pior. Já a cara do CEO… Exigiram de imediato os projectos das gravações, que eu tive de dar, uma vez que eram contratualmente deles. E depois eles alteraram tudo e transformaram aquele álbum em qualquer coisa igual ao resto. Quando o resultado final foi entregue, foi como se uma luz se tivesse apagado no Rob. Creio que ele de alguma forma se ressentiu de mim, por eu ter entregue os projectos originais, embora eu não tivesse outra hipótese e começou a afastar-se de mim. Entretanto a editora tentava organizar uma nova digressão de apoio ao novo álbum que, como era de esperar, vendia bem no mundo inteiro, mas o Rob não se comprometia de maneira nenhuma, nem mesmo quando eu andava atrás dele à espera de uma resposta. E começou a recusar todas as entrevistas e as poucas que deu, nunca falou do ultimo álbum, que era basicamente o motivo pelo qual os jornalistas musicais queriam as entrevistas… E depois, um dia de manhã, saiu simplesmente pela porta fora e não voltou mais. Claro que eu achei que ele estava simplesmente a fazer birra, ou amuado, mas que dai a uns dias tudo entraria nos eixos, mas… Aqui estamos, oito anos depois.
Ela calou-se e ficaram ambos em silêncio, ouvindo a natureza à sua volta.
Neste capítulo já ficou esclarecida muita coisa. Só há um pormenor que me intriga. Ambos os músicos, este e o outro que foi o tal marido, ambos tinham o mesmo nome?
ResponderEliminarBem, tem o mesmo primeiro nome. O apelido é diferente :)
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