Enquanto observava aquela garrafa de cerveja que transpirava, devido ao facto do liquido dourado que a preenchia estar quase no ponto de congelação, matutava sobre o quanto Einstein tinha razão. O tempo não era igual em todo o lado.
Por exemplo, quando era jovem o tempo parecia não querer passar. Tudo parecia longe e distante. Ao longo da sua vida vivera em vários lugares bem atarefados onde o tempo passava sempre mais depressa do que devia e nunca chegava para o que se tinha de fazer. Noutros lugares o tempo passava sem se dar por isso, porque tudo era bom e de repente era tempo de acabar.
Mas aqui, no sítio onde vivia há seis anos, o tempo era diferente. Passava com uma indolência estranha, como se não quisesse mesmo andar. Os dias pareciam esticar-se e fundir-se uns nos outros. Aqui nada se passava e, quando algo fora do normal acontecia, era verdadeiramente um acontecimento.
Pensava nisto sentado numa velha cadeira de madeira que apesar da idade demonstrava a robustez e solidez de algo bem feito, observando a garrafa pousada numa mesa que combinava em absoluto com a cadeira, dentro de um café… ou seria um bar? Ou uma taberna? Ou outra coisa qualquer… ou um que quisessem chamar ao único sítio naquela aldeia onde se bebia cafés, comiam petiscos e as pessoas se reuniam ao fim da tarde e depois do jantar para conviver.
Gostava da indolência. Deixava-se arrastar por ela. E tinha o negócio ideal para ser indolente. Tinha uma loja de instrumentos musicais, recheada com instrumentos de marca, topo de gama, alguns mesmo raros, mas sobretudo guitarras, a sua paixão de juventude. No entanto, provavelmente num raio de cem quilómetros, não haveria potencialmente um único cliente. Por isso, apesar de ter a loja aberta, passava a maior parte do tempo no estabelecimento ao lado à conversa com o dono, um homem nascido e criado ali. A bem da verdade, não esperava ter lucro. Na verdade mesmo, nem sequer esperava ter clientes. E estava muito bem assim.
Quando aqui chegou, depois de vaguear sem rumo por quase todos os sítios no mundo que queria ver, encontrou um sítio que parecia parado no tempo. Um lugar onde nem sequer foi bem recebido à partida. E foi precisamente aqui, onde se sentiu separado do resto do mundo que decidiu parar.
Chegou a ser importunado pelas autoridades, nos primeiros dias, por campismo selvagem, mas isso só incentivou a sua vontade de ficar e depois de inquirir por alguns dias por propriedades que pudesse comprar, apareceu esta casa junto à… taberna? … cujo dono tinha falecido há algum tempo e cujos herdeiros, a viver longe, na cidade grande, não tinham tempo nem paciência para manter.
Comprou a propriedade, que consistia de uma casa e um pequeno quintal, onde cultivava algumas frutas e legumes, e transformou a parte da casa que dava para rua principal e praticamente única, numa loja de instrumentos.
A princípio era visto como um outsider, mas fez por se integrar nos hábitos dos que já cá estavam e, ao longo do tempo, foi ganhando a confiança e o carinho dos locais.
Como tinha uma loja de música, não raras as vezes vinham pessoas de povoações próximas comprar assessórios ou instrumentos, mas esses nunca eram do inventário da loja, demasiado caros, e sim encomendados por catálogo. Acabava por vender alguma coisa, mas, uma vez que vendia tudo a preço de custo, que ainda assim já custava a pagar aos seus clientes, o seu negócio estava permanentemente em perda.
Ainda assim, este contacto com músicos locais levou a que se juntasse a um grupo de pessoal na sua idade, dos meados dos trinta para cima, todos de aldeias vizinhas, que tinham um pequeno grupo que abrilhantava festas locais e alguns bares da região, tocando musicas de outros e nunca se aventurando muito longe, porque todos tinham trabalho e obrigações familiares. Era somente um passatempo divertido.
Matutava sobre tudo isto enquanto fingia ler o jornal e ia bebendo a sua cerveja, antes que aquecesse, quando o barulho de um motor de um carro de alta potencia se fez ouvir na rua, chamando a atenção de quem estava nas imediações. O carro parou à porta da sua loja. Era um carro desportivo, de dois lugares, baixo e descapotável.
O dono do bar observou atentamente a mulher que saiu do carro, vendo a porta a abrir e um longo par de pernas torneado a sair, anunciando uma mulher alta, esguia, vestida com uma classe impecável num vestido que parecia abraçar-lhe o corpo. O chapéu de aba larga de palha encimava os longos cabelos loiros que caiam em cascata em canudos largos e mesmo à distância percebia-se o rosto impecavelmente maquilhado e lindo, embora os olhos e parte do rosto estivesse oculto pêlos óculos escuros. Acabou por lhe dizer:
-Rob, parece que tens uma cliente! E que grande cliente!
-Grande cliente?
-Sim. Parece dispendiosa!
Ele manteve o semblante inalterado, sem tirar os olhos do jornal, ou fazer menção de se levantar, apenas dando mais um trago da garrafa de cerveja.
A mulher dirigiu-se à porta da loja que estava fechada. Tentou perceber o letreiro, mas claramente não entendeu e dirigiu-se com um andar felino para o estabelecimento. A escuridão lá dentro, que de certa maneira parecia manter o espaço mais fresco, embora com auxílio de ventoinhas que faziam circular o ar, contrastava com o sol brilhante e o calor abrasador que se sentia na rua. O resultado disto foi, quando ela entrou, com os seus passos felinos e confiantes, mais parecendo uma modelo a deslizar numa passerelle que uma mulher a andar por uma rua de uma aldeia perdida no meio de lado nenhum, as suas roupas tornarem-se quase transparentes, denotando toda silhueta do seu corpo e deixando o dono meio… perturbado, à medido que ela se aproximava do balcão e retirava os óculos escuros, revelando uns faiscantes olhos verde jade, quase hipnóticos.
-Hello! – disse ela num tom de voz extremamente feminino e melodioso embora grave e suave – I would like a coffee, please.
O dono do estabelecimento ficou a olhar para ela, sem saber o que fazer. Ela continuou:
-Could you tell me when the owner of the music store will come back?
O dono do estabelecimento lá acabou por dizer:
-No english!
Ela olhou para ele com um ar ligeiramente irritado.
Rob lá se pronunciou, acabando por dizer:
-Zé, dá-lhe carioca bem aguado num copo de vidro.
Ela virou-se de repente, vendo-o.
-Mas isso é água de lavar castanhas… - respondeu o Zé.
-Vai por mim.
Ela olhou-o, como se tentasse distingui-lo bem naquele canto escuro. O Zé começou a tratar do carioca.
Ela aproximou-se da mesa, onde ele continuava a ler o jornal sem lhe prestar atenção. Ele, entretanto acabou de beber a cerveja que tinha na mão e sem desviar o olhar do jornal disse para o Zé:
-Quando acabares de fazer a mixórdia, traz-me outra, se fizeres favor.
Ela olhou-o bem. Estava vestido de forma simples, com uns calções de ganga, uns chinelos de enfiar no dedo e uma t-shirt branca com algumas nodoas visíveis. Parecia em forma, com o corpo seco e os músculos claramente visíveis por baixo de uma pele claramente breonzeada por este sol. O cabelo e a barba compridos, já com bastantes grisalhos davam-lhe um ar de alguma distinção.
-Rob? - Perguntou ela aproximando-se da mesa sem que ele levantasse os olhos do jornal – Robert MaCallum?
Ele levantou os olhos do jornal finalmente, revelando-os frios e sem o mínimo de reconhecimento. Sem qualquer expressão.
-I’m sorry, you must have the wrong Rob. – respondeu ele, e voltando-se para o Zé – Conheces algum MaCallum por aqui? - O Zé limitou-se a encolher os ombros e ele olhou para ela e encolheu os ombros também.
Ela ficou com um ar furioso, claramente ruborizada.
-Fine! – quase rosnou ela sentando-se numa mesa ao lado da de Rob enquanto o Zé lhe punha o carioca leve na mesa. Ela cruzou as pernas, fazendo com que a saia subisse e quase se expondo aos dois, tendo o Zé, de forma muito envergonhada, a reacção que ela esperava, mas não fazendo o Rob ao seu lado sequer desviar os olhos do jornal que lia.
-“Presumo que não seja daqui…” - disse ela tentando puxar conversa.
-“Não, não sou.” – respondeu ele ao fim de uns segundos que pareceram uma eternidade.
O Zé não estava a perceber nada do que se estava a passar, mas tinha que admitir que estava divertido, sobretudo com a reacção do Rob. Não era que ele fosse gay. Aliás, havia umas quantas raparigas espalhadas pela região que poderiam atestar claramente que ele não o era. No entanto esta mulher absolutamente deslumbrante era-lhe completamente indiferente.
-“Então, o que está aqui a fazer?”
-“Até há uns minutos atrás estava a usufruir da minha paz e sossego enquanto lia o jornal e bebia uma cerveja gelada, mas agora você apareceu…” – respondeu ele com um ar chateado.
Ela, estranhamente, sorriu ao comentário sarcástico.
-“És mesmo tu não és?”
Ele levantou a mão, fazendo-lhe um sinal como que para esperar. Ela ficou a olhar para ele, surpreendida. Ficaram assim, como se estivessem em suspenso, enquanto ela provava finalmente o café. Ao fim de momentos que pareceram esticar-se, ele finalmente levantou os olhos do jornal, dobrou-o, colocou-o na mesa ao lado e virou-se para ela.
-Suponhamos que sou esse Rob… quê?
-MaCallum.
-…Macallum. O que quereria com ele num sítio destes?
-Quereria que ele voltasse para onde pertence.
-E onde é que ele pertence?
-Ao meu lado e nos palcos do mundo.
-E porque havia ele de querer isso?
-Porque é o destino dele.
Rob encostou-se para trás na cadeira, matutando nas palavras dela. Acabou por olhar para ela de novo, com o mesmo olhar impessoal e sem qualquer emoção visível.
- Se esse Rob estivesse aqui, não estou a ver porque seria esse o destino dele.
-O que queres dizer com isso?
-Quero dizer que se o tal Rob tivesse vindo para aqui, como eu vim, os palcos do mundo não lhe diriam grande coisa, e Barbies também não.
Ela acusou o toque.
-Rob, passaram oito anos. Oito. Não me digas que ainda não te passou a birra.
Ele olhou para ela com um ar atónito, como se não fizesse ideia do que ela estava a falar.
-Ok, Rob. Já percebi. Tenho uma reunião daqui a 3 horas e para lá chegar deve ser esse o tempo que vou demorar. Presumo que vais estar por aqui…
-Onde é que havia de estar? Tenho a loja aqui ao lado…
-Vamos continuar isto amanhã, com mais tempo.
-Não posso dizer que vá esperar com ansiedade. Se calhar fazia melhor em deixar-me em paz e procurar esse tal MaCallum.
-Talvez. Mas por outro lado, pode ser que me ajude a perceber se vale a pena sequer continuar à procura dele. Quem sabe alguém como tu não me faça ver a perspectiva dele…
Ele levantou levemente o sobrolho.
Ela levantou-se, tirou uma carteira da mala, deixou uma nota de 20 na mesa e saiu apressada sem sequer reconhecer que o Zé estava ali, dirigiu-se ao carro, que por esta altura estava rodeado e a ser admirado por quase todas as crianças da Aldeia, entrou no carro, ignorando-as e arrancou em velocidade.
-Quem era a gaja? – perguntou finalmente o Zé.
-Alguém que não interessa e que anda à procura de alguém que não existe.
O Zé encolheu os ombros e sentou-se na mesa de Rob, dando-lhe uma cerveja e ficando com outra.
-Desde quando é que não sabes falar inglês? – perguntou Rob.
O Zé sorriu.
-Pá, uma gaja destas num carro destes só viria aqui por dois motivos. Ou problemas no carro, à procura de um mecânico, caso em que eu seria o mais prestável possível, ou então vinha à procura de alguma coisa. Ora, ela não procurava um mecânico… Eu sei Inglês, tu sabes que eu sei, mas ela não precisa de saber. Afinal, não somos todos parolos por aqui?
Brindaram com as garrafas e beberam sem dizer mais nada. O tempo desacelerou outra vez.
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