sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Renascimento (V de XL)



Depois de ter demorado uma eternidade a adormecer, enquanto revivia memórias, fazia conjecturas e tentava alhear-se do facto de que possivelmente estava a dormir debaixo do mesmo teto do marido pela primeira vez em oito anos, teve um sono irrequieto, acordou sobressaltada e demorou algum tempo a situar-se.

Levantou-se, vestiu a t-shirt, enfiou os pés nos chinelos grandes demais e saiu do quarto. Rob estava na cozinha e viu-a ao cimo das escadas.

-Bom dia. -cumprimentou-a.

-Bom dia. – Respondeu ela com um ar ensonado enquanto descia. Ao chegar ao fundo da escada reparou que Rob a olhava intensamente com um ar estranho.

-O que foi? – Perguntou admirada.

-Desculpa. Não foi nada. Recordações. Não tem nada a ver contigo.

Ela seguiu para a casa de banho e ele seguiu-a com o olhar.

-Torradas com manteiga para o pequeno-almoço?

-Há mais alguma coisa?

-Manteiga barrada em torradas, se preferires.

-Então pode ser isso.

-Leite? Chá? Café? Mistura?

-Café com leite. -Disse ela já depois de fechar a porta. E depois olhou-se no espelho. O cabelo completamente desgrenhado, depois de se ter deitado com ele molhado no dia anterior dava-lhe um aspecto pavoroso. E ainda por cima nem o seu estojo de maquilhagem tinha consigo. Mas depois, olhou para o resto da sua figura, vestida com uma t-shirt que lhe dava quase pelos joelhos. Ouviu-o gritar da cozinha:

-Se abrires a gaveta da esquerda encontras uma escova de cabelo. Comprei-a há pouco e ainda não a usei, por isso podes usar à vontade.

Ele parecia ter adivinhado pelo menos parte dos seus pensamentos.

-Obrigada. – Respondeu enquanto começava a escovar o cabelo, após encontrar a escova. Pelo menos não ia parecer uma selvagem. Resolveu calçar os Pumps, uma vez que era incómodo andar com aquelas chinelas e dirigiu-se à cozinha.

Quando entrou Rob mirou-a de alto abaixo e riu-se.

-O que foi? - perguntou ela com um ar algo sentido.

Tenho que te mostrar. – Disse ele, tirando um telemóvel do bolso – Faz pose.

Ela percebeu, fez uma pose para ele e ele tirou uma foto. Depois passou-lhe o telemóvel para a mão, mostrando-lhe a foto.

-O que foi? -perguntou, não notando nada em especial.

-Essa foto faz melhor promoção à banda que a maior parte do material promocional deles. – Respondeu ele rindo. Ela corou.

-Escusas de corar. Não é um elogio, é só uma constatação?

- Achas-me atraente?

-Não sou cego.

-Atraio-te?

-Não. Tens aí torradas e o café com leite.

Ela ficou um pouco desiludida. Um pouco não, bastante. Sentou-se pegou numa torrada, mordeu, trincou, mastigou, degustou… E perguntou-lhe admirada:

-Que pão é este?

-É pão Alentejano, mas este é mesmo cozido aqui na Aldeia por uma velhota num forno de lenha mais velho que ela. É bom, não é?

Ela, de boca cheia, limitou-se a acenar. Acabou por comer mais do que devia. O café com leite também estava delicioso e ficou a saber que o leite vinha de uma vacaria local

Depois do pequeno almoço ligaram para um reboque e pediram um táxi para algum tempo depois da hora que o reboque tinha dado para aparecer.

O reboque apareceu primeiro e carregou o carro, aparecendo o táxi enquanto bebiam um café no Zé.

Ele acompanhou-a até ao táxi.

-Aquilo que te perguntei ontem está de pé? Se eu voltar não te importas de falar comigo?

-Como te disse ontem, se não tiver mais nada para fazer…

Ela estendeu-lhe a mão, gesto que ele reciprocou.

-Obrigada, Rob. Eu volto.

Entrou no táxi, que arrancou de imediato.

Rob voltou a entrar no estabelecimento do Zé, pediu-lhe uma água fresca e sentou-se com o Jornal, como fazia quase todos os dias. O Zé pôs a garrafa na mesa e sentou-se ao lado dele.

-Queres explicar o que é que se passou? – perguntou-lhe com um olhar malandro.

-Nada do que estás a pensar.

-Então porque é que ela chegou aqui ontem toda produzida e sai daqui vestida numa t-Shirt de tamanho familiar?

-Porque choveu.

O Zé ficou a olhar para o Rob, levantou-se a resmungar qualquer coisa acerca de estrangeiros imbecis e foi tratar do almoço.


2 comentários:

  1. OQMDNTamigo
    Venho aqui pela primeira vez - descobri-te no «Cantinho da Janita» - e palavra que gostei; se não tivesse gostado também o escrevia. Isto de ser jornalista (mesmo perto de atingir os 83 aninhos - 20 deste mês... para efeito de prendas) que nunca se vendeu tem como resultado essa franqueza da qual me orgulho - de alguma coisa devia ter....
    Pois, o texto, junto aos outros que enxameiam este teu blogue dá-lhe um cunho muito especial: Aliás é bem escrito - o que se vai tornando cada vez mais raro - e prende a atenção dos leitores, pelo menos a minha. E mais não escrevo e como antigo oficial da Polícia Judicial Militar «e lidas as suas declarações, as achou conformes e vai assinar, juntamente com o escrivão destes autos...»
    Abração
    Henrique, o Antunes Ferreira
    «A Nossa Travessa»

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    1. Henrique, Grande, Grande abraço saudoso. Um dia destes temos de fazer outro almoço na Portugália :)

      Obrigado pelas palavras. Não tenho tido tempo para andar por aí por blogs, até porque isto por aqui anda uma barafunda e, pelo que vejo, não vai encarrilhar tão cedo.

      Mas o bom disto tudo é que tenho tido aumentos sucessivos. O mau é que são de trabalho e não de ordenado, mas também não se pode ter tudo... ;)

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