sexta-feira, 14 de maio de 2021

Um casamento moderno - XVII

 (como já vem sendo habito, fica aqui mais um capítulo extra para o fim-de-semana)

Quando ela finalmente adormeceu ele levantou-se, escreveu uma nota que lhe deixou em cima de uma almofada no sofá da sala, agarrou nas chaves do carro e saiu. Era dia de concerto. Até queria ficar com ela e falar mais, assegurá-la de muita coisa que ela duvidaria agora, abraçá-la, acalmá-la, mas havia compromissos e pessoas à espera.

Mas, ao mesmo tempo sentia-se mais leve. Não porque achasse que se daria algum milagre e que tudo mudaria magicamente, mas porque, pelo menos, ela sabia. E soube-lhe bem tirar tudo aquilo de dentro de si. Até parecia conseguir respirar melhor.

Essa pequena mudança de disposição foi subtil por fora, mas por dentro… No jantar dessa noite as mulheres dos seus colegas estavam maravilhadas com o sentido de humor mordaz que ele demonstrava. Lucas reviu finalmente a pessoa que conhecera há tantos anos e que parecia viver vergada, como se carregasse o mundo às costas.

O concerto foi uma verdadeira festa e a Marta, lá estava…

Quando Clara acordou ele não estava e ela assustou-se. Procurou-o de imediato pela casa, deu com a nota onde ele lhe dizia que tinha ido tocar e que, a não ser que ela quisesse, não lhe ia mandar as mensagens, para ela poder descansar. Ela pegou de imediato no telemóvel e enviou a mensagem em que lhe dizia que queria que ele a avisasse na mesma, e depois sentou-se e reviu a conversa dessa tarde na sua memória.

O que fazer agora? Tinha de começar por algum lado e percebeu nesse momento o caos que ia dentro de si. Seria verdade o que ele dizia? Nunca tinha estado apaixonada por ele? Teria ele sido apenas uma escolha quase racional?

Não. Não tinha! Tudo levou muito tempo. Quando começaram a namorar já se conheciam há anos, tinham partilhado tanta coisa, quer em grupo, quer só os dois… foi um sentimento que foi emergindo! Lembrou-se daqueles três dias em que pensava horrorizada no que fazer, após aquele beijo tímido! Ele era um rapaz bonito e já com alguma experiência, ela uma jovem tímida e inexperiente… Mas ele já a cativava há muito. O sorriso dele derretia-lhe o coração… ainda hoje! E há quanto tempo é que ela não lhe via um sorriso genuíno, com os olhos brilhantes de felicidade, como ele sempre olhou para si? Os sorrisos dele pareciam sempre carregados de uma extrema melancolia… E ela lembrava-se daquele fogo que lhe costumava ver no olhar… e lembrou-se que a ultima vez que tinha visto esse fogo foi quando ela saiu pela primeira vez… Para ir ter com outro!

Ela alguma vez tinha correspondido a esse fogo? Pela primeira vez comparou o seu amante e o seu marido na cama, na sua mente. Claro que já o tinha feito antes, mas percebeu o quanto os seus próprios sentimentos na altura pesavam na avaliação. E o que é que ela tinha sentido? A excitação! Pelo amante? Ou pelo facto de estar a fazer algo proibido? Quando ela tentou objectivamente retirar isso da equação, o que restava? O seu amante, na realidade, por comparação… deixava muito a desejar em termos de performance. Ainda assim, para ela tinha sido excepcional!

O marido tinha razão. Ela sabia amá-lo, mas a paixão, o fogo nem estava lá! Mas porquê?

E uma imagem começou a emergir! Ela quis-se conformar aquilo que achava que ele esperava dela! Que mais poderia querer um rapaz que já tinha tido alguma experiência, mas que a tinha escolhido a ela? Ela nunca se libertou verdadeiramente! Ela nunca se deu a conhecer verdadeiramente a ele. De certa forma, ela, quando estava com ele, tinha vergonha da pessoa que queria ser!

Talvez por isso ela se ressentisse dele de alguma maneira profunda, inconsciente! Se calhar isto tudo foi um grito de revolta e ele levou injustamente com anos de auto-repressão! “In vino veritas”! Se calhar por isso ela o quis magoar naquela noite… A ironia era inescapável! Quem ela é rebelava-se contra quem ela se forçava a ser e culpava-o, querendo magoá-lo e afinal quem ele queria verdadeiramente é quem ela é!

Desatou a rir, sozinha, à gargalhada, perante este pensamento! Que coisa mais estúpida!

Mas racionalizar isto tudo é giro e até podia dar um bom espectáculo de Stand up! Mas… o que é que verdadeiramente sentia?

De uma coisa tinha a certeza. Agora que tudo tinha acabado, sentia-se usada, mas isso mais pelas circunstâncias. O facto de o amante ser… Como é que ele tinha dito mesmo…? “Um paspalho qualquer”! Era mesmo isso.

E que mais?

Arrependia-se?

Sim e não!

Não, porque a verdade é que ela adora a mulher que é. É impossível voltar a ser como era, e daí talvez aquilo que Marcelo disse de não ser importante. Ele lembrava-a de quem ela não queria ser… Mas ela sempre se sentiu segura nos seus braços, mesmo quando vinha dos braços do amante! E esse conforto apenas lhe faltou quando… Não, não queria sequer relembrar isso. Quem ela é quer que ele seja como é. Quem ela é, foi ou será não faz sentido sem que ele seja como é e esteja ali.

Quem ela foi, é, ou será ama-o incondicionalmente!

Sim, porque quem ela é só existe por causa da enorme dor que causou a quem ele é. As dores de parto não foram suas, foram dele! Será que quem ele é ainda quer quem ela é agora? Será que ele alguma vez conseguirá ultrapassar o que sente? Será que o tempo o pode curar? Será que ela é capaz? E se para ele poder ser feliz ela tiver de o deixar ir?

Esta última perspectiva lançou-a de repente num choro profundo, quase convulsivo!

10 comentários:

  1. Quer-me parecer que a moça, já se reconhece na mulher que sempre foi mas que não soube mostrar, as razões serão muitas e algumas delas já foram afloradas e têm imenso peso. Agora, vamos ver o que ela consegue fazer. Fico curiosa :)

    Bom fim de semana, sô Gil


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    1. Por vezes viver a nossa vida de acordo com aquilo que achamos serem as espectativas dos outros acaba por dar mau resultado!
      Porque lá porque assim achamos, não tem de ser de facto...

      Bom FDS D. Noname :)

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  2. Os casamentos livres e modernos tem muito que se lhe diga. Para mim...gosto MUITO mais dos antigos, lol
    .
    Feliz fim de semana …Abraço de amizade.
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    Pensamentos e Devaneios Poéticos
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    1. Como diria i Alentejano na anedota:
      -Modernices...

      Forte Abraço :)

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  3. Reli estes capítulos.
    Esta história lembra-me um caso que conheci quando era muito menina. Teria os meus seis sete anos, vivia junto de nós na Seca, uma mulher que tinha um filho a viver no Seixal. Ela chamava-se Elvira, o Filho era o Fernando, a que todos os vizinhos chamavam o "Corno Manso" casado com a Adelaide e pai de dois filhos que seriam ou não dele. De vez em quando a Adelaide embeiçava-se por alguém e fugia de casa, chegando numa altura a ficar três semanas fora. Quando se cansava do novo amante, ou ele se cansava dela, voltava para casa. E quando alguém perguntava ao Fernando porque a aceitava de volta, ele dizia que sabia que no coração dela só ele habitava e aquilo é que lhe importava. O amor que ela lhe tinha e os filhos. Cada vez que ela desaparecia, ele telefonava para a Seca, para pedir ajuda à mãe. Ela falava com os meus pais e o meu pai ia levá-la ao Seixal atravessando o rio num bote. Eu ia sempre com ela, para brincar com os meninos e não sentirem tanto a falta da mãe. Quando entrei para a escola, passou a ir a minha irmã, e mais tarde o meu irmão, até que todos fomos para a escola, e a Ti'Elvira passou a ir sozinha. Uns anos mais tarde, ela morreu e do Fernando e companhia nunca mais soube nada.
    Estou de volta depois de três dias de cama, com febre, dores no corpo todo, vómitos e inchaço nos pés e mãos. E como toda a gente me diz que o pior é a segunda dose, estou bem arranjada. Bom mas o que interessa é que hoje já estou bem.
    Abraço, saúde e bom domingo

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    1. Pois, infelizmente estas histórias não são novas...

      Eu por acaso não passei por muito, nem com a 1ª nem com a segunda dose, à excepção de uma dor incómoda no braco das duas vezes e de um pico de febre na segunda, mas nada de muito chato...
      ...mas tive colegas que sofreram bastante. Mas passou :)

      Abraço, Elvira e as melhoras :)

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  4. É ver como são os paradoxos da vida! A mulher a querer ser recatada, não deixando o marido adivinhar o vulcão que a invadia quando era possuída pelo desejo de sexo, o homem por sua vez a achar que a mulher era algo frígida e, vai daí, vai-me a mulher procurar nos braços d'outro a água que apagaria o seu fogo, com o extintor de incêndios ali à mão de semear...E agora? Irá a vida permitir rebobinar tudo e esquecer que houve outro homem e que as coisas amainaram por mor do escândalo, ou vai o Marcelo encher-se de brios e dizer basta?
    Pois...é isso que eu quero ver, pra crer!

    Abraço, caro Gil. :-)

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    1. Pois que verás :)

      Os paradoxos são mesmo lixados...

      Abraço, Janita :)

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