quinta-feira, 6 de maio de 2021

Um casamento moderno - VIII

 

As semanas foram passando, foram-se transformando em meses. Clara sentia-se sexualmente satisfeita e nem se apercebia que já não fazia amor com o seu marido desde que tinha começado o caso.

Já ele deixou de tentar iniciar algo nesse sentido desde o dia da conversa inicial. Aliás, para si, cada vez mais fazia menos sentido tentar iniciar algo. Por vezes pensava que talvez não fosse má ideia sair, tentar um engate que lhe permitisse aliviar um bocado a tensão, mas depois pensava “Para quê?”. Estava magoado e sabia que esse seria um pobre remédio.

Continuava com a banda, que, de um modo completamente imprevisto, foi convidada para tocar numa pequena celebração de um clube motard.

Ao fim de uns meses de prática a memória muscular fez milagres e deu por si a tocar até melhor do que achava que já tinha tocado, havia algo diferente, mais sensibilidade no toque.

Naquele dia chegou à garagem onde ensaiavam primeiro que todos os outros, num dos ensaios para esse concerto. Ligou a guitarra, sentou-se, resolveu dar uns acordes. Lembrou-se de uma música que já não tocava há muito e resolveu tentar. Por piada, resolveu puxar o microfone para si, sentou-se, ajeitou-se e começou a tocar. Depois a voz entra e ele simplesmente jorrou ali o que lhe ia na alma. A canção “Black” dos Pearl Jam, ganhava um significado maior, aqui e agora, naquilo que ele estava a viver. “E tudo o que lhe ensinei foi tudo, e tudo o que ela me deu foi o que usava em si! E agora as minhas mãos amargas embalam o vidro estilhaçado do que foi tudo, todas as molduras ficaram pintadas de preto, tudo foi tatuado!”

Quando acabou a música abriu os olhos, dos quais saiam lágrimas que lhe rasgavam a face e percebeu que a banda tinha chegado e os outros quatro estavam à frente dele, pasmados.

O Lucas foi o primeiro a falar, para o Luís, o vocalista:

-Mano, tás despedido!

O Luís olhou para ele e para Marcelo, fez um sorriso sacana e disse:

-É justo! Fui!

Foi o Marcelo que falou a seguir:

-Não vais nada, fosga-se… Tás parvo ou quê? Eu lá sou vocalista?

-Porra, olha que não se notou, mano!

-Deixem-se lá de tretas, pá!

-Ó meninos,… - interrompeu o Olavo, o baixista - …vamos lá a falar a sério. Pá, temos de tocar este tema!

-Yá! – Disse o Ricardo, o baterista – Mas mesmo a sério!

-E eu lá canto isto? Quer dizer, cantar canto, mas não assim… - disse o Luís apontando para Marcelo.

-Não há problema. – Disse logo o Lucas – Esta canta ele!

-E eu vou cantar uma música no meio do set?

-E…?

…e passaram um bom bocado daquele ensaio a tocar a música e depois seguiram com o resto do reportório.

No dia do concerto, uma sexta-feira, ele disse-lhe que ia sair.

Ela não lhe tinha dito nada nesse dia.

-Vais demorar?

-Sim, hoje vou! Tu hoje não vais sair?

-Não, hoje vou ficar por casa…

Ele assentiu.

-Eu hoje vou demorar. Bastante, provavelmente. Se calhar é melhor não te mandar as mensagens…

-Manda na mesma, por favor! Gosto de saber que estás bem… - disse ela, com sinceridade.

A curiosidade corroía-a, mas sabia que não podia perguntar-lhe nada. Imaginou-o com outra mulher e o sentimento assustou-a. Como seria ela? Olhou-o bem, pela primeira vez em anos. Ele estava esbelto, numa excelente forma. Tinha de admitir estar casada com um homem que era bem atraente. Os primeiros cabelos grisalhos, que de há pouco tempo para cá lhe pareciam muito mais, davam-lhe um ar mais sábio, mais maduro… e havia algo nele que lhe era estranho, algo que ela não conseguia quantificar, mas parecia haver nele uma melancolia no seu olhar que lhe dava quase um ar de… ela não sabia qual a palavra para descrever o que via nele.

Ele interrompeu-lhe os pensamentos.

-Eu mando. Até logo e fica bem.

Como seria ela? Que tipo de mulher se sentiria atraída por ele? E ele hoje saia como há muito não o via, tinha quase rapado o cabelo, calçava umas botas e uma t-shit preta e aquele colete de cabedal que ela não via há seculos! Parecia o roqueiro de há vinte anos atrás…

O telemóvel acendeu de repente, com uma mensagem, e o seu pensamento descarrilou quase por completo, enquanto sorria com as mensagens atrevidas do seu namorado e lhe respondia e correspondia, mas bem lá no fundo o assunto anterior ficou a emergir de vez em quando.

Como seria ela?

E aos poucos, em flashes, a imagem de como ela seria foi emergindo daquilo que ela se apercebia do que ele era, quando realmente olhava para ele, e ela percebeu subitamente que qualquer mulher podia ser ela, de que ele, ao contrário do seu namorado, podia escolher quem quisesse.

E racionalizou isso sentindo-se relaxada em relação ao seu namorado, sentindo de alguma forma justificada a sua escolha e justificado o seu prazer.

Mas, para lá de qualquer racionalização, ela sentiu de repente que podia facilmente ser trocada por uma versão melhor, mais bonita e mais sexy de si. E se ele se afastasse?

E no fundo do seu subconsciente começou a gerar-se um pensamento, que ela sentiu de imediato viria a atormentá-la mais, mas que decidiu relevar nesse momento, enquanto aceitava uma vídeo chamada dele e começavam a provocar-se até que ambos estivessem satisfeitos…

Já ele conheceu finalmente as mulheres dos seus colegas de banda, quando chegou ao local do seu primeiro concerto em vinte anos. Era tudo pessoal simpático e elas trataram imediatamente de se meter com ele até o levarem às gargalhadas, fazendo-o perder parte daquela carga que ele parecia carregar sempre consigo. Mais curiosas acerca dele do que os respectivos maridos, bem tentaram saber tudo acerca dele, mas embora ele voluntariasse muitos pormenores acerca do que fazia na vida, as suas opiniões acerca de assuntos, embora elas ficassem espantadas de alguma maneira com a sua cultura geral e a maneira como ele conseguia carregar uma conversa sem esforço, a sua parte mais pessoal parecia blindada por uma cortina de ferro. Elas notaram a sua aliança, mas não conseguiram sequer arrancar dele se era casado. Isto acicatou-lhes a curiosidade ainda mais.

Quando eles subiram ao palco, elas ficaram a conversar entre si.

-Interessante, este Marcelo…

-Interessante? Muito mais do que isso! Eu era incapaz de trair o Ricardo, mas olha, filha, se o traísse, que fosse por um “Marcelo”.

-Sim, mas olhem que há qualquer coisa nele… Ele pareceu… Triste!

-Sim, não sei se repararam, mas mesmo quando ele se ria, havia sempre uma tristeza no olhar…

-Eu curava-lhe a tristeza, se pudesse… - e riram todas.

O concerto correu, o pessoal que estava no encontro estava animado e a dada altura o Luís começou a falar:

-Queria só contar-vos esta história: No outro dia, quando chegamos para ensaiar na garagem, um de nós já lá estava, e estava a cantar esta música sozinho! Nós não somos experts, nem críticos musicais, mas sabemos que aquilo que ouvimos nos tocou na alma. O Marcelo vai cantar uma canção.

Se houve algum interesse por parte do público, elas, as mulheres, ficaram ainda mais interessadas, a sua curiosidade em relação à nova aquisição da banda disparou.

E ele cantou. E se cantou! Como se a sua vida estivesse espalhada naquela letra, como se aquele apelo no fim fosse o tudo ou nada, como se ele soubesse que tinha de largar alguém, não o quisesse fazer, mas se sentisse obrigado por amor! De repente elas perceberam, não o que se passava com ele, mas sim o que lhe ia na alma!

E com elas toda a plateia, que permaneceu por alguns segundos em silêncio no fim da a música, antes de irromper em aplausos.

Depois do concerto, a maioria dos presentes, que não eram muitos, quiseram cumprimenta-lo e dizer-lhe que tinham adorado a música.

Mal a banda sabia que dali a notícia se espalharia, e que eles começariam a tocar todas as semanas, muito em breve, contra qualquer espectativa que tivessem previamente.

Mandou-lhe a mensagem por volta das seis da manhã.

Ela acordou de repente com o som do telemóvel, leu a mensagem e respondeu. Ele entrou meia hora depois, mas não se foi deitar ao seu lado. Isso, de alguma forma, deixou-a triste. Queria sentir o conforto de o ter ali, como todos os dias… mas acabou por deslizar para o sono.

Deu com ele, depois de acordar, a dormir no sofá da sala. Fez os possíveis por não o incomodar.

Deu por ele acordar.

-Bom dia, dorminhoco!

-Bom dia… Aliás, boa tarde!

-Queres alguma coisa para comer?

-Quero ir tomar um duche!

-Porque é que não te foste deitar ontem?

-Porque estava suado e sujo e demasiado cansado para me dar ao trabalho de tomar banho e não me queria ir deitar assim… E por falar nisso, vou tomar banho!

-Não queres mesmo nada para comer?

-Só um sumo de laranja! Acho que preciso de vitaminas! Estou a ficar velho!

E, de repente, pergunta deixou de ser como seria ela! Passou a ser “quem é ela?”!

E por um momento duvidou!

-Amo-te! – Disse, ao mesmo tempo que ele desaparecia no corredor para a casa de banho. Ele voltou para trás, fez a sua melhor imitação de Han Solo e respondeu:

-Eu sei!

Há anos que não faziam esta brincadeira. Este momento levou-a para trás no tempo, e ela riu, ao mesmo tempo que ele se virou e foi tomar o seu banho.

E quanto ela espremia o sumo para ele apercebeu-se de que ele não respondeu depois “Eu também” como sempre costumava fazer.

6 comentários:

  1. E pronto. Agora já não é uma pulga atrás da orelha. Agora tem uma carraça, que é muito mais chata, e nunca mais vai deixá-la gozar o prazer das quecas com o amante. E vão começar as surgir as comparações.
    Começa a parte mais importante desta história.
    Abraço e saúde.

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    1. ...e não há nada pior que uma mulher com a pulga atrás da orelha, não é verdade?

      Abraço, Elvira :)

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  2. Existem tantas mas tantos casais assim. Relacionamentos cansados. Opções de entrega, nesta caso a música, esfriamento na relação. Quando estão muitos dias frios, (mulher/homem...homem/mulher ) quando aparece o SOL (outra mulher ... outro homem ) é mesmo uma alegria - ou pelos menos um pensamento interrogativo, não é mesmo
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    Abraço poético
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    Pensamentos e Devaneios Poéticos
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    1. Daí eu achar que esta história talvez tenha relevância pra alguém...

      Abraço

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  3. Agora, a coisa que estava em ponto rebuçado, virou ponto espadana, as dúvidas adensam-se :-)

    Bom dia, sô Gil

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    1. E ninguém gosta de estar na dúvida...

      Bom dia, D. Noname :)

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