sexta-feira, 14 de maio de 2021

Um casamento moderno - XVI

 

No dia a seguir, quando saiu do quarto, encontrou-o, como já era costume, deitado a dormir ainda vestido no sofá da sala.

Era tarde. Tal como ele, ela não dormira nada de jeito. Aliás, tinha mesmo dado por ele a chegar!

Resolveu saltar o pequeno-almoço e começou a tratar do almoço. Deu por ele acordar e ir tomar um banho e ele apareceu uns minutos depois, com o banho tomado e um pijama vestido.

-Bom dia! – Cumprimentou-a quando entrou na cozinha!

-Bom dia. O almoço está quase pronto, só falta pôr a mesa. Se quiseres ir tratando disso…

-Sim, eu ponho a mesa… - disse ele enquanto se servia de um copo com água. Depois de beber agarrou nos pratos e talheres que levou para a mesa, onde os dispôs, e voltou à cozinha para vir buscar os copos enquanto ela saia já com a comida na mão.

Sentaram-se à mesa e começaram a comer em silêncio, com ele notoriamente cansado. Ela não sabia o que fazer, mas não se conteve e acabou por dizer:

-Tenho uma coisa para te confessar!

O garfo dele ficou suspenso a meio caminho, entre o prato e a boca e a sua disposição alterou-se claramente. Ficou rígido de repente, preparado para o pior. Ela viu a sua reacção, percebeu o que lhe passava pela cabeça e só conseguiu pensar “Não, não, não é nada disso!”. Resolveu continuar:

-Estive lá ontem!

-“Lá”?

-No bar, onde estiveste a tocar!

O alívio nos olhos dele era por si só revelador do que lhe ia no pensamento! O seu corpo descontraiu-se e o garfo continuou o seu caminho em direcção à boca!

-Conheci a Marta!

O ar de enfado que ele fez, noutra ocasião qualquer, teria sido absolutamente cómico!

-E então? – Acabou ele por perguntar!

-E então porque é que nunca me disseste que tinhas uma banda?

-Nunca perguntaste e não me pareceu de todo relevante. Não creio que fosse coisa que te importasse!

-Porque é que achas isso?

-Porque eu, para ti, não importo!

Ela ficou atónita a olhar para ele!

-É mesmo isso que achas?

-É!

-Estás completamente enganado!

-Não, não estou! Se vires as coisas pelo meu ponto de vista estou inegavelmente certo!

-Como assim?

-Queres mesmo ter esta conversa agora?

-Quero! Quero saber porque é que sentes isso…

-Se precisas mesmo perguntar…

Ela ficou quieta a pensar por um bocado! Ele continuou a comer!

-A Marta disse umas coisas ontem... – Ele levantou o sobrolho.

-Mas como é que conheceste a Marta?

-Olha, fui muito cedo para o bar, fiquei sozinha numa cabine num canto que acabou por ser o único sítio que tinha alguns lugares vagos, e ela e o grupinho dela acabaram por ficar sentadas na minha mesa!

Ele riu e abanou a cabeça, algo divertido!

-Isso é aquilo a que eu chamo uma puta de uma coincidência! Mas, já que falamos nisso, como é que foste lá parar? Ainda para mais sozinha?

“Ops!” Pensou Clara de repente! Como é que ela saia desta? Resolveu abrir o jogo!

-Abri o teu computador e fui ao teu Facebook

-Foste bisbilhotar…

-Espero que não te importes…

-É para o lado que durmo melhor… Já não abro o Face há meses… E que é que encontraste por lá?

-Bem, centenas de pedidos de amizade, dezenas de mensagens por abrir… Mas não vi nada disso… Mas nas notificações estava um apontador para uma foto da Marta contigo a dizer que mais logo iam estar naquele bar…

-E a tua curiosidade falou mais alto e resolveste ir contra tudo o que tu própria tinhas estipulado!

-Bem, quando pões isso dessa maneira… Sim!

Pronto, estava admitido!

-Então e o que é que essa chata disse afinal?

-Chata?

-Pior que uma carraça!

-Pois, ela bem que se queixou… Até disse que devias ser era gay, ou assim…

-Oxalá que ela continue a pensar assim, que já não tenho mesmo pachorra para a aturar!

Ela ficou a olhar para ele, algo incrédula!

-Marcelo, a Marta é o sonho absoluto de qualquer homem! Aliás acredito que de muitas mulheres também.

-Eu sei! Até as mulheres do pessoal da banda dizem que se os maridos as traíssem com ela até compreendiam… Uma ocasião, a Joana até disse na brincadeira que até ela traia o Ricardo com a Marta, se ela quisesse…

Clara não sabia quem eram o Ricardo e a Joana, mas presumiu que seria um colega de banda e a respectiva companheira.

-Mas tu só achas que ela é uma chata?

-O raio da mulher não me larga! Qualquer dia começo a entrar nos sítios só mesmo quando for para ir para o palco. Estou farto desses filmes!

-Com a Marta?

-E não só, infelizmente!

As palavras de Marcelo eram algo reveladoras! Pensou por um pouco no que ele lhe dizia.

-Olha, vou-te fazer uma pergunta e estás à vontade para não responder, se não quiseres.

-Ok!

-Nestes meses todos, com quantas mulheres estiveste?

-Bem, contando contigo… Zero!

Ela ficou em choque!

-Mas, não sentes vontade de…

-Claro que sinto!

-E tens mulheres como a Marta a atirar-se para os teus braços!

-Sim, umas quantas, já para não falar nas que nem chegam perto do que a Marta é!

-E não tens vontade de as levar para a cama?

-Tenho!

-Mas não levas!

-Não!

-Porquê?

-Porque seria irrelevante!

“Irrelevante”? pensou ela admirada.

-O que é que queres dizer com isso?

-Quero dizer que dar uma queca com uma delas poderia até aliviar fisicamente, mas não haveria ali nada além disso, não haveria qualquer conexão, nem nada que desse algum sentido ao acto em si! Sexo só por sexo deixou de fazer sentido para mim há muito!

-Quer dizer que não há nenhuma mulher no mundo que tu queiras?

-Há!

-Quem?

-Tu!

Ficou sem saber o que dizer! Tirou um momento para se recompor, mas lá conseguiu continuar:

-Mas quando eu me cheguei a ti há dois dias tu recusaste-me!

-Sim!

-Porquê?

-Porque não quero restos!

Isto chocou-a! Abanou-a por dentro! Irritou-a!

-Basicamente isso quer dizer que achas que estou estragada por ter estado com outro homem, é isso? – Perguntou ela já num tom que denotava a sua irritação! Sentia-se ofendida!

-Não, não é isso que quer dizer!

-Então o que é que quer dizer? Explica lá, vá… - retorquiu ela, visivelmente irritada.

Ele abanou a cabeça, como que diz “Olha-me esta”, respirou fundo e respondeu:

-Em primeiro lugar, se queres falar comigo, acalmas-te! Nada do que eu te possa dizer tem o intuito de te ofender, mas estás a perguntar-me como me sinto, e é isto! Se não queres que eu te diga a verdade e achas que estou simplesmente a ofender-te, não vale a pena continuarmos a conversa, porque nada do que eu diga vai passar a muralha! Não vai ser entendido nem ouvido como deve de ser, portanto, se queres mesmo ter esta conversa e saber como me sinto, coloca as tuas ideias em perspectiva.

Ela respirou fundo, conteve-se, levantou-se, pegou no copo de água, foi despeja-lo à cozinha e voltou com o copo cheio de vinho. Sentou-se novamente, beberricou, olhou para ele, sorriu e disse:

-Desculpa, acho que vou precisar disto…

Ele sorriu.

-Explica lá então o que queres dizer com “restos”

Ele respirou fundo e ela podia ver que ele organizava as ideias.

-Eu disse-te que nunca te iria deixar, que te amava, que eramos os melhores amigos, mas naquele dia tu escolheste! Fizeste uma escolha que me fez pôr o mundo em causa! Basicamente, e de uma maneira muito simplificada, simplesmente recuso-me a ser o substituto da pessoa que tu querias realmente que estivesse ali! Porque ele era a pessoa a quem tu querias dar tudo! Eu sou só alguém que está perto, quando ter acesso a ele deixou de ser possível e isso para mim seria tão ou mais irrelevante do que ir para a cama com a Marta ou outra gaja qualquer!

-Não é verdade! – Defendeu-se ela!

Ele soltou uma gargalhada!

-Achas mesmo que não é?

Ela calou-se! Podia até achar que ele não tinha razão, mas percebia que era o que ele sentia! E, na verdade, se calhar ele até tinha razão! Podia ela, em consciência, contrariá-lo?

-Deixa-me pôr o quadro completo à tua consideração e depois diz-me o que tiveres a dizer.

Ela assentiu!

-No dia em que vieste falar comigo e em que eu arranquei e em que acabei por dar comigo a comer uma sandes em Vigo, tive mil duzentos quilómetros de estrada para pensar. E pensei bastante! E, sou-te franco, culpei-me muito mais a mim, pelo que se passava, do que a ti! Comecei a olhar para todo o nosso casamento e realmente tenho a certeza, se bem que admito que possa estar errado, de que me amas, tenho a certeza de que te amo e que por isso deitar fora tudo o que vivemos e construímos seria no mínimo estúpido. Mas isso não me impediu de pensar como é que teríamos chegado aqui! E olhando para trás, mesmo até lá ao começo, comecei a perceber que naquele aspecto específico, no sexo, eu nunca importei!

-Não digas isso! Eu sempre adorei fazer amor contigo…

-Isso não pode ser verdade! Tu raramente iniciaste alguma coisa nestes anos todos! E mesmo quando o fizeste nunca foi com paixão e tesão! Nunca tiveste o ímpeto de me arrastar para o banco de trás de um carro e dar-me uma foda que abanasse o mundo! Fazias porque era a tua obrigação. Quantas vezes eu evitei iniciar para ver se tu te chegavas à frente, mas aquilo que invariavelmente aconteceu foram longos períodos em que nada aconteceu e que só foram quebrados porque eu tomei a iniciativa? Claro que depois, quando fazíamos, depois de estares bem quente, o mundo chegava a abanar, e eu acabei sempre por relevar a tua atitude, atribuí-la à nossa educação… Dizia a mim mesmo que não era porque não o sentisses, mas porque te retraias e só te libertavas mesmo quando estavas quente. Mas, naquele dia essa minha crença ruiu por completo! Não era porque te retraias, era porque não o sentias por mim!

Ela já chorava em silêncio, embora ele falasse de uma maneira calma, em que não a acusava, apenas constatava os seus pensamentos e emoções! E era difícil ouvir isto! Ele continuou:

-Imagina o que eu senti quando sonho com algo durante tanto tempo e depois descubro que afinal o problema era mesmo o facto de ser eu, porque aparece um paspalho qualquer e, de repente, tudo isso vem ao de cima? Senti-me diminuído. Menos que um homem. Sabes, quando começaste a sentir essas coisas pelo teu colega, o que até, pêlos vistos, foi cultivado durante uns meses antes de chegares ao ponto em que ia ou rachava, até podias ter usado isso para te libertar comigo! Provavelmente abrias as tuas asas, davas azo aos teus desejos, ainda que me usasses como um substituto, nunca terias estado com ele, o casamento dele não estaria estragado, nós não estaríamos aqui, antes pelo contrário, eu até podia estar mais que feliz na ignorância de que todas essas benesses sexuais se devessem a outra coisa qualquer que não outro gajo a pôr-te “quentinha” para mim. Mas a verdade é que tu não me querias a mim, queria-lo a ele! E quando falaste comigo foste clara: Ou eu te dava autorização para ires com ele para a cama quando te apetecesse ou ias-te embora! Em momento nenhum desta história toda eu fui importante para ti!

-Não é verdade! – Respondeu ela com a voz tremula do choro! – Eu nunca me quis divorciar de ti e jamais te deixaria…

-Pois, mas eu nunca fui grande coisa a ler pensamentos e tu, inequivocamente disseste que era uma coisa ou a outra. Foram as duas alternativas que me deste e foi com base nisso que tive de tomar as minhas decisões! E tudo aquilo só foi confirmado pelo facto de que desde o primeiro dia em que saíste com ele nós nunca mais tivemos o mínimo de intimidade. O casamento foi aberto para fora e fechado para dentro…

-Eu sempre pensei que tu também tivesses arranjado alguém…

-E mesmo que tivesse? Só reforçou o facto de eu ser importante para ti em tudo, menos nisso! Nunca sentiste paixão por mim, nunca sentiste tesão por mim, não ligaste a mínima importância ao que eu estaria a sentir enquanto andaste mergulhada na tua luxuria, e se as coisas não tivessem corrido mal continuavas na tua vidinha e eu continuava a não ser importante, até ao dia em que já desprezarias o facto de teres que me aturar por aqui e resolvesses ir-te embora de vez.

-Porque é que nunca me disseste nada disto? Podias ter falado comigo…

-Para quê? Para mudar a tua cabeça? De que adiantava isso, se os teus sentimentos não iriam mudar? Além disso, foram as tuas escolhas que nos trouxeram aqui! Lembras-te quando eu te disse que se tivesses pensado bem em todos os ângulos da questão e estivesses preparada para lidar com as consequências que podias fazer o que quisesses? Pois bem, aparentemente não pensaste bem em tudo! Não pensaste na possibilidade mais do que óbvia de que um tipo qualquer podia eventualmente mentir para conseguir ir para a cama contigo, por exemplo… Como sabes, é algo inédito na história da humanidade! Foram as tuas escolhas! Era tua obrigação pensares no que eu eventualmente estaria a sentir… Mas eu não importava! Nem eu nem eventualmente nada do que se passava comigo! Daí eu andar com uma banda a tocar ao vivo e a minha mulher, que vive comigo, não ter a mínima ideia!

Ela agarrou no copo de vinho, bebeu-o de um trago, levantou-se e correu para o quarto! Atirou-se para cima da cama como se fosse o farrapo que se sentia e deixou-se ficar a chorar convulsivamente. Ele foi atrás dela, sentou-se ao lado dela.

-Desculpa! – Disse ela entre soluços – Por tudo!

Ele deitou-se ao lado dela e envolveu-a num abraço.

-Não tens nada que me pedir desculpa. Eu fiz as minhas escolhas também, no meio disto tudo! Mas pelo menos já sabes que não te quero, não porque não te deseje, não porque não tenha vontade aqui e agora de te beijar e despir… mas sim porque não quero que isso aconteça gratuitamente. E o mais irónico é que, precisamente porque te disse isto tudo, não sei se alguma vez conseguirei acreditar que tu te apaixonas por mim, mesmo que isso venha a acontecer… Mas também não espero que isso aconteça! Por isso, se quiseres manter o casamento aberto, que seja! Para mim nunca esteve, portanto não faz assim grande diferença!

Ela apenas chorou e encaixou-se mais no seu corpo, no seu abraço! Estava aqui e agora e não fazia ideia do que poderia fazer para remediar todo o mal que fez a alguém que a única coisa que fez foi amá-la! Sentia-se tóxica! Lixo! Podia ter sido tudo tão diferente…

2 comentários:

  1. Fala-se de amor à boca cheia mas, viver amor é outra coisa. Talvez, ela esteja, agora, a aprender isso e saiba apanhar a oportunidade que a vida, naaa, ele, lhe está a dar.

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    1. Há uma música de Def Leppard que tem uma frase espectacular:
      "Eu sei que pensas que o amor é a maneira como o fazes, por isso não quero estar lá quando decidires fingi-lo"
      O amor não é a maneira como é feito... O amor é tudo o resto! A maneira como é feito é só uma expressão e por vezes nem isso...

      Ninguém aprende sem errar. Mas, quando se aprende com os erros, abrem-se novos caminhos...

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