terça-feira, 30 de setembro de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 31

 


Óscar e Benedita entraram na garagem e encontraram Laura já sentada ao volante, o motor do Mercedes a ronronar baixo.

— Levo-vos eu hoje — disse, voltando-se para ele.

Óscar hesitou, com a mão ainda pousada na maçaneta da porta do Corvette.

— Não é preciso… — murmurou.

— Hoje vais passar o dia no hospital. Exames, consultas… — respondeu Laura, calma. — Se me permitires, quero acompanhar-te. Assim não tens de te preocupar em conduzir.

O silêncio ficou suspenso alguns segundos, até que Benedita, num gesto espontâneo, abriu a porta de trás e entrou, como se tivesse resolvido a questão por ambos. Óscar acabou por se sentar ao lado de Laura, meio resignado.

O carro saiu da garagem, e a estrada fez-se em silêncio. Não um silêncio pesado, como antes, mas um espaço vazio, quase pacificado. Benedita, com os headphones, cantarolava qualquer coisa, indiferente à quietude entre eles.

Pouco depois, deixaram-na à porta da escola. Laura despediu-se com um sorriso, e assim que Benedita fechou a porta, o carro seguiu. Foi nesse instante, na ausência da jovem, que Laura quebrou a pausa.

Sem olhar diretamente para ele, disse:

— Óscar… eu percebi uma coisa. O erro não foi só ter procurado noutro lugar aquilo que faltava em nós. Não foi só o sexo. O verdadeiro erro foi eu ter deixado de acreditar em nós enquanto par.

Ele não respondeu, os olhos fixos na estrada.

Laura respirou fundo, as mãos firmes no volante.

— O que eu te roubei não foi o corpo. Foi a fé. O pacto invisível que sustentava tudo. Eu confundi desejo com valor, e não percebi que o nosso pacto não era sobre desejo… era sobre entrega. E eu falhei nisso.

Óscar fechou os olhos por um momento, sentindo a frase cair sobre ele como algo inevitável e verdadeiro.

— Eu percebi que não preciso de ser desejada para ser tua mulher. — A voz dela tremeu, mas não vacilou. — A minha escolha já tinha sido feita há muito, quando decidimos partilhar a vida. E escolho de novo. Escolho estar contigo, mesmo frágil, mesmo diferente.

O silêncio voltou, mas era outro. Não vazio, nem gélido — um silêncio pensativo, suspenso. Óscar levou o copo de whisky à boca apenas em pensamento, mas não havia copo. Apenas um nó seco na garganta.

Quando deram por isso, estavam já a estacionar no parque do hospital. Laura desligou o motor, pousou as mãos no volante, como se não quisesse quebrar o instante. Óscar não disse nada. Mas, antes de sair, ficou por um momento dentro do carro, absorvendo o que acabara de ouvir.

Ela não pediu resposta. Apenas aguardou.

E, pela primeira vez em muito tempo, o silêncio entre eles parecia conter possibilidade.

A manhã arrastou-se em corredores brancos, salas frias e vozes de enfermeiras chamando nomes em lista interminável. Exames, provas de esforço, eletrocardiogramas, análises. Óscar cumpriu tudo com a impaciência habitual, respondendo seco, movendo-se com gestos calculados, como se cada minuto gasto em ambiente médico fosse uma afronta pessoal.

Laura conhecia bem esse lado dele. Sempre fora assim: desconfiado de batas brancas, intolerante a esperas, ansioso por retomar o controlo que ali lhe era retirado. Não se surpreendeu, portanto, com a sua expressão carregada, mas manteve-se serena, acompanhando sem interferir, deixando-lhe espaço.

Depois de horas de exames, a espera prolongou-se ainda mais, agora com um tabuleiro da cantina hospitalar pousado à frente de cada um. Sentaram-se juntos, mas comeram quase em silêncio, com Óscar a picar a comida sem grande vontade. Laura sabia que não havia nada a dizer que lhe aliviasse a irritação — bastava estar.

Finalmente, chamaram-no ao consultório. O médico cumprimentou-os com naturalidade, sentando-se diante do ecrã, abrindo a ficha eletrónica. Passou alguns minutos a rever resultados, alternando entre leitura atenta e pequenos murmúrios técnicos.

Depois, virou-se para Óscar com um sorriso breve:

— Parabéns. Está em muito melhor estado do que há uns meses. É normal que ainda sinta algum cansaço, mas, no geral, está plenamente recuperado.

Óscar manteve-se calado, apenas um levantar de sobrancelhas a substituir qualquer reação. Laura, ao seu lado, sentiu um peso a soltar-se.

— Recuperado? — repetiu ele, como quem testa a palavra.

— Recuperado — confirmou o médico, firme. — A cirurgia foi um sucesso. A sua evolução é excelente.

Laura sorriu de leve, mas não comentou. Deixou que fosse Óscar a absorver aquilo no seu tempo.

O médico, antes de encerrar a consulta, ajeitou os óculos e acrescentou com o tom mais sério:

— Mas atenção, Óscar. Recuperado não significa imortal. Nada de loucuras. Não fique sedentário, mas também não queira recuperar vinte anos em duas semanas. Comece com caminhadas longas, regulares. Alivie o stress. E, sobretudo, siga o tratamento. Se o fizer, não vejo razão para não começarmos, dentro de pouco tempo, a reduzir a medicação.

Óscar anuiu, um meio sorriso a romper pela primeira vez naquele dia.

— Vou fazer os possíveis, doutor. Até porque, se não fizer, ainda me sujeitam a mais destas secas. — A ironia arrancou um riso breve ao médico.

Quando saíram do consultório, Laura reparou que ele caminhava mais ereto, o passo menos arrastado. A má disposição, ainda que não desaparecida, tinha ganho uma fenda. Respirava fundo como quem sentia o corpo de novo aliado e não apenas obstáculo.

Ela acompanhava-o em silêncio, com um sorriso leve, sem reivindicar mérito por nada. Apenas presente.

Já no carro, Óscar ajeitou-se no banco do passageiro. Laura ligou o motor e, por um instante, hesitou.

— O que é que te apetece fazer agora? Ainda temos algum tempo até a Benedita sair.

Ele pensou pouco, o olhar fixo na estrada.

— Não me importo de irmos até à escola e esperar por ela.

Laura assentiu sem discutir. Conduziu em silêncio, com a suavidade de quem sabia que aquele era um momento para não forçar nada.

Estacionaram em frente à escola. O motor desligado, a rua calma. Ficaram os dois ali, lado a lado, num silêncio reflexivo, cada um preso às próprias memórias e pensamentos, mas curiosamente menos distantes do que antes.

O silêncio instalara-se já há minutos. O som distante do recreio, abafado pelas paredes da escola, chegava apenas como um rumor longínquo.

Óscar manteve os olhos fixos no pára-brisas, os dedos a tamborilar devagar no joelho, até que quebrou o silêncio. A voz saiu-lhe baixa, sem pressa, mas carregada de gravidade:

— Estar diante daquela porta… e ver-te além dela… com outro homem em cima de ti… não foi um choque pelo acto em si.

Laura engoliu em seco. O coração acelerou-lhe, como se quisesse antecipar o que vinha a seguir.

— Foi pelo que o acto representou. — continuou ele, sem a olhar. — Naquele momento… percebi que não era suficiente para ti.

Laura fechou os olhos com força. Uma ardência instalou-se-lhe no peito e as mãos tremiam-lhe discretamente sobre o volante desligado.

— Isso fez-me pôr em causa tudo. Todas as conceções que tinha da vida. Tudo o que construí. Todo o esforço que investi. — a voz dele não vacilava, mas o peso das palavras caía sobre ela como pedras sucessivas.

Uma lágrima escapou-lhe sem que pudesse evitar. Limpou-a rápido, quase com raiva de si própria, mas a respiração denunciava a perturbação.

— Pôs-me em causa a mim… o meu valor. — continuou ele. — E quando mais tarde percebi… naquela conversa… o que tinha levado a isso… apenas aprofundou a minha convicção de falhanço.

Laura mordeu o lábio. Sentia-se cada vez mais pequena, esmagada pelo eco da voz dele.

— Falhei naquilo que mais me definia. — concluiu. — Ser um bom pai. E ser um bom marido.

Nesse instante, Laura não conseguiu segurar. O choro rompeu-lhe o peito, mas abafado, contido, como se não quisesse atrapalhar a solenidade das palavras dele. Levou a mão à boca, tentando calar-se, mas o sal das lágrimas queimava-lhe o rosto.

Óscar respirou fundo. O olhar ainda preso ao horizonte. E então, quase num tom monocromático, como quem relatava factos técnicos:

— Muitas vezes, a descer as curvas dos Pirenéus, forcei o carro mais do que devia. Mais do que a lógica permitia. — fez uma pausa curta, e o silêncio seguinte pareceu eterno. — E não poucas vezes foi mais o carro do que a minha perícia que evitou que me despenhasse.

Laura sentiu o corpo gelar. O sangue fugiu-lhe do rosto, e um nó formou-se-lhe na garganta. Uma náusea surda cresceu dentro dela com a consciência tardia de quão perto estivera de perder tudo, não apenas o marido, mas o homem, o pai, a presença que sempre fora o centro da sua vida.

O choro converteu-se num soluço baixo. Laura virou-se devagar para ele, procurando-lhe o perfil, mas Óscar não quebrou o olhar fixo em frente. Estava ali, mas parecia ainda a meio daquelas curvas, entre a vertigem e o abismo.

Óscar permaneceu a olhar em frente, a voz agora mais grave:

— Foi naquela estrada, numa subida perdida no meio do nada… quando a vi. Uma miúda, sozinha, apenas com uma pequena mochila às costas.

Laura endireitou-se ligeiramente no banco, surpresa com o desvio do relato, mas manteve-se em silêncio.

— Parei sem saber porquê. Algo me pareceu errado. — prosseguiu. — Nas primeiras conversas fui cru, até duro demais. Ela falava em ir para Paris ser modelo. E eu tratei de lhe destruir os sonhos com a dureza da realidade.

As lágrimas que Laura já continha ficaram suspensas, sem cair. Reconhecia aquela voz — era a mesma com que ele sempre lhe falava quando queria protegê-la de algo, mesmo contra a sua vontade.

— Quando me perguntou se eu não a achava bonita o suficiente… — Óscar fez uma pausa longa, como se ainda lhe doesse lembrar-se. — Voltei a tentar esmagar-lhe a esperança. Mas ela ouviu. Escutou cada palavra.

Laura apertou o casaco contra si, não por frio, mas pela dor da constatação. Mesmo perdido, mesmo mergulhado na sua própria escuridão, Óscar permanecia igual a si próprio: incapaz de virar as costas, incapaz de deixar alguém ao abandono.

— Mais tarde percebi que tinha mentido sobre a idade. — ele continuou. — E confirmei aquilo que já suspeitava: estava ali sozinha porque tinha sido deixada para trás… quando não cedeu a favores a um camionista que lhe dera boleia.

Laura fechou os olhos, e as lágrimas desceram finalmente. Não havia espaço para inveja, nem para comparação. O que lhe esmagava o peito era a constatação de que, no mesmo período em que ela fraquejara, em que tinha desistido deles, Óscar, mesmo ferido, continuava a ser o homem que sempre fora.

— Quando ouvi isso… dei-lhe um propósito. — a voz dele suavizou-se. — Mas na verdade… foi ela que me deu um.

O coração de Laura apertou-se até quase lhe faltar o ar. Naquele instante, a imagem dele nos Pirenéus, a conduzir para o abismo, fundiu-se com esta: o homem que, em ruína, ainda assim encontrava força para amparar alguém.

— De alguma maneira… Benedita salvou-me. Muito mais do que eu a ela. — concluiu. — E embora ela nunca o saiba, terei sempre para com ela uma dívida de gratidão.

Laura levou as mãos ao rosto. Chorava, não de raiva ou posse, mas de profunda vergonha e reverência. Percebia, com uma clareza quase cruel, que o homem que amara a vida toda não tinha desaparecido sob a doença, nem sob a dor. Estava ali, sempre estivera. Ela é que deixara de o ver.

Óscar permaneceu em silêncio durante alguns instantes depois da sua última frase. O som distante de crianças no recreio chegava amortecido pelas janelas do carro, mas ali dentro o ar parecia suspenso.

De repente, ele virou-se para ela. Não com brusquidão, mas com uma lentidão firme, como quem se decide enfim a encarar o inevitável. Os olhos dele prenderam-se nos de Laura, fixos, tão diretos que quase a fizeram recuar no assento.

A voz saiu grave, controlada, mas carregada de uma exigência que ia muito além de qualquer discussão:

— Sem mentiras? Sem omissões?

Laura sentiu o coração parar por um segundo. O olhar dele parecia trespassá-la, despindo cada camada que durante meses tentara reconstruir. Era como se ele estivesse diante não apenas da mulher que traíra, mas do núcleo mais profundo dela, do amago da sua alma.

Engoliu em seco. Quis baixar os olhos, mas não o conseguiu. Ali, diante daquela pergunta, compreendeu que não havia espaço para justificações, nem para meias verdades.

Respirou fundo, deixou que as lágrimas lhe corressem livres e, sustentando o olhar dele com uma coragem nascida da própria dor, respondeu:

— Sem mentiras. Sem omissões.

Não foi um sussurro hesitante, mas uma afirmação clara, sólida, quase surpreendente até para ela própria. Saiu-lhe da boca com uma certeza absoluta, inabalável.

Por um instante, os dois permaneceram apenas a olhar-se, como se tudo o que fosse dito dali em diante tivesse de nascer desse pacto renovado.

Óscar não desviou o olhar dela, mas deixou escapar um suspiro fundo, como se retirasse de dentro de si uma pedra antiga.

— Vai ser difícil apagar aquela imagem da minha cabeça… — disse, pausadamente, escolhendo cada palavra. — E, além disso, não sei se alguma vez serei o homem que fui. Ou quando serei.

Laura não hesitou. A resposta saiu-lhe firme, serena, quase instintiva:

— Isso não importa.

Ele arqueou ligeiramente as sobrancelhas, surpreso com a convicção dela. Laura respirou fundo, e num impulso que misturava fragilidade e atrevimento, deixou escapar, num tom meio brincalhão e insinuante:

— Mas… nada nos impede de tentar.

O silêncio que se seguiu foi breve, mas carregado. Óscar levantou o sobrolho, o olhar endurecido suavizou-se, e pela primeira vez em muito tempo os lábios dele esboçaram um meio sorriso.

— O futuro o dirá — respondeu com uma ironia leve, mas onde já não havia o peso habitual.

Foi nesse momento que Benedita saiu pela porta da escola e correu até ao carro. Abriu a porta de trás e atirou a mochila para o banco. Entrou ainda a falar de algo qualquer que lhe tinha acontecido na aula, mas calou-se a meio da frase.

Notou, com a perspicácia silenciosa da juventude, uma diferença. Óscar estava menos rígido, o corpo mais solto, como se um peso tivesse caído dos ombros. E Laura… apesar dos olhos inchados de quem chorara, exibia um sorriso novo, tão inesperado que Benedita não se lembrava de alguma vez o ter visto.

A viagem até casa decorreu tranquila, com Benedita a encher o silêncio com pequenas histórias do dia.

À noite, à mesa do jantar, Laura trouxe o assunto à superfície de forma quase casual:

— Benedita… estive a pensar. A cave pode ser demasiado húmida para ti. Não gostarias de ficar com o quarto antigo da Clara?

Benedita pousou os talheres, surpreendida, e demorou-se antes de responder.

— Não sei… não queria invadir o espaço dela.

Laura sorriu, inclinando-se ligeiramente para a frente.

— Se quiseres, pergunta à Clara. Tenho a certeza de que não se iria opor.

Durante toda a conversa, Benedita manteve os olhos em Óscar, como que a pedir-lhe aprovação silenciosa. O cuidado era visível: não queria dar um passo que o contrariasse.

Óscar, por sua vez, não disse nada de imediato. Observou-as, com aquele mesmo meio sorriso discreto, e limitou-se a acenar de leve com a cabeça.

Laura percebeu. Benedita percebeu. O pacto silencioso estava ali, a germinar.

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 30

 


A noite estava calma. Na varanda das traseiras, Óscar deixara-se ficar sentado com o seu copo de whisky, como tantas vezes. O Cávado refletia o luar, e os faróis que serpenteavam pelas encostas pareciam pequenos fantasmas a atravessar a paisagem. O silêncio não lhe pesava; pelo contrário, parecia cada vez mais habituado a ele.

Laura saiu para a varanda já depois de todos se recolherem. Hesitou antes de abrir a porta de vidro, mas acabou por o fazer, trazendo consigo apenas um casaco leve que deixou cair sobre os ombros. Não queria interromper, apenas estar perto.

Óscar lançou-lhe um olhar rápido, sem hostilidade, e voltou ao horizonte. O simples facto de não a ter afastado foi, para Laura, quase um convite. Sentou-se na cadeira ao lado, deixando o som do rio preencher o espaço entre ambos.

Passaram alguns minutos assim. Apenas a respiração dele, o tilintar do gelo no copo quando o rodava distraído, e o cheiro da noite.

Foi Laura quem, sem olhar para ele, deixou escapar:

— Será que alguma vez vou conseguir devolver-te o que te roubei?

Óscar permaneceu em silêncio, olhando o rio. Só depois de um gole lento respondeu:

— Há coisas que, quando se partem, não voltam a ser iguais. Mesmo que as colem.

Laura fechou os olhos, sentindo a verdade daquelas palavras.

— Eu sei. Não espero que seja igual. Só não queria que fosse para sempre esta distância… este vazio.

Óscar voltou-se para ela, sem dureza, mas sério:

— O que roubaste não foi apenas um momento. Foi a confiança. Isso não se devolve com palavras.

— Mas pode-se reconstruir? — arriscou Laura, finalmente a encará-lo.

Ele suspirou, demorando-se antes de responder.

— Talvez. Mas leva tempo. Tempo e escolhas diferentes das que fizeste.

Laura mordeu o lábio, contendo as lágrimas.

— Então é isso que eu quero… fazer escolhas diferentes. Não para voltar ao que éramos, mas para que pelo menos não fiquemos assim, como estranhos.

Óscar baixou o olhar para o copo e rodou-o mais uma vez, como se procurasse ali uma resposta. Depois ergueu os olhos para ela.

— Eu não prometo nada. Mas se me perguntas se é possível… sim, é possível.

A respiração de Laura saiu trémula, um misto de alívio e dor.

— Obrigada por me dizeres isso.

Óscar não respondeu. Limitou-se a acenar levemente com a cabeça, num gesto contido mas significativo, antes de voltar o olhar para o rio. Para Laura, bastou. Era a primeira fresta de luz desde muito tempo.

Laura respirou fundo, mantendo os olhos no rio.

— Eu sei que não é desculpa, Óscar. Sei que devia ter falado contigo… mas senti o peso da mudança entre nós. Com a tua doença, deixei de ser a tua mulher e passei a ser a tua cuidadora. Deixei de ser o teu desejo e passei a ser quase… uma mãe. — As palavras custaram-lhe a sair, mas não desviou o olhar. — Na altura parecia-me justificação suficiente, mas agora vejo a estupidez disso tudo.

A sua voz tremeu, mas manteve-se firme no essencial:

— Não estou a tentar arranjar desculpas. Só quero que saibas como aconteceu, da minha perspetiva.

Óscar não disse nada de imediato. Apenas rodou o copo entre os dedos, deixando o gelo tilintar, e bebeu um pequeno gole de whisky. O silêncio dele não lhe pareceu desdém, mas antes uma aceitação calma da necessidade que ela tinha de falar.

Laura voltou-se finalmente para ele.

— E então? Achas que algum dia vou conseguir devolver-te o que é teu?

Óscar pousou o copo no braço da cadeira, medindo bem as palavras antes de falar.

— Tu percebes verdadeiramente o que me roubaste?

Laura franziu a testa, como quem espera um murro no estômago.

Ele continuou, sereno mas firme:

— O problema nunca foi teres tido sexo com outro homem. O problema foi que, quando descobri, tudo aquilo que tínhamos deixou de ser válido. Anos de vida, escolhas, promessas… parecia que se tinham tornado mentira. Isso é que me matou.

Laura baixou os olhos, deixando que uma lágrima lhe caísse discretamente.

— Eu sei. E foi isso que percebi tarde demais.

Óscar recostou-se, respirando fundo.

— O que eu preciso não é que me expliques o que sentias… é que me mostres, daqui para a frente, quem és tu agora.

Laura ergueu os olhos para ele, surpresa pela clareza da frase.

— Então ainda acreditas que pode haver um daqui para a frente?

Óscar pegou no copo outra vez, bebeu o resto num gole e pousou-o com calma na mesa baixa.

— Isso não te consigo responder hoje. Mas se me perguntas se acabou tudo… não, Laura, ainda não acabou.

O silêncio voltou a cair entre os dois, pesado mas já não sufocante. Para Laura, bastava aquela frase para respirar de novo.

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 29

 



Alguns dias depois, quando Óscar apanhou Benedita na escola, percebeu logo que ela estava diferente. A miúda parecia inquieta, ansiosa de chegar a casa, a mexer-se no banco do passageiro como quem mal consegue conter um segredo.

— Então? — perguntou, de lado, desconfiado.

— Nada… — respondeu ela, mordendo o lábio e disfarçando mal o sorriso.

Quando estacionou o Corvette na garagem, Óscar percebeu logo. Ao lado do seu carro vermelho estava agora uma carrinha Mercedes C63 preta, de linhas agressivas e elegantes, imponente mesmo ali, em repouso.

Benedita não aguentou mais e desatou a rir-se, apontando para o carro.

— Surpresa!

Óscar saiu do Corvette e aproximou-se devagar, quase em reverência. Deu uma volta à carrinha, passou a mão pela pintura impecável, abriu a porta do condutor e espreitou o interior. O couro estava bem cuidado, os detalhes brilhavam. Não era nova, mas estava em estado irrepreensível.

Fechou a porta, ergueu o olhar para Benedita e perguntou-lhe, num tom de irritação fingida:

— Tu sabias disto, não sabias?

Ela, a tentar conter as gargalhadas, respondeu com ar de miúda travessa:

— Claro que sabia! Eu ajudei a escolhê-la!

Óscar abanou a cabeça, mas um sorriso escapou-lhe.

— Tu não existes, miúda…

— Vá lá, põe-no a trabalhar! Quero ouvir! — pediu ela, quase aos saltos.

Óscar suspirou teatralmente, mas obedeceu. Abriu as portas da garagem, entrou na carrinha e rodou a chave. O motor V8 acordou com um ronronar grave, característico, que ecoou pelas paredes. Depois, com um toque no acelerador, o rugido encheu o espaço.

Benedita riu-se, encantada, e Óscar não resistiu a sorrir também, como se aquele som lhe enchesse a alma.

Nesse momento, Laura apareceu à porta da garagem. Ficou a observá-los, apoiada no aro da porta, discreta. Óscar, ainda dentro da carrinha, ergueu o olhar e encontrou o dela pelo retrovisor. Não precisaram de palavras: bastou um leve aceno de cabeça dele e o sorriso contido dela para que ambos soubessem o que aquele gesto significava.

Óscar desligou o motor e saiu da carrinha. Deu a volta e deixou a porta do condutor aberta. Olhou para Laura, imóvel na ombreira da garagem, e fez-lhe sinal com a cabeça.

— Vai lá, senta-te. — disse, num tom simples, quase neutro.

Laura hesitou, mas acabou por caminhar até ao carro. Entrou devagar, como se tivesse medo de estar a invadir território proibido. Óscar fechou a porta com cuidado, deu a volta ao carro e, surpreendendo-a, abriu a porta do passageiro.

— Benedita, vai para trás. — disse.

A rapariga obedeceu sem perceber bem, ainda com um sorriso divertido, e instalou-se no banco traseiro. Óscar sentou-se no lugar ao lado de Laura.

— Já o conduziste? — perguntou-lhe, casual.

Laura abanou a cabeça.

— Só para o pôr na garagem.

Óscar soltou um meio sorriso.

— Então vamos.

— Para onde? — perguntou ela, confusa.

— Onde quiseres.

Laura engoliu em seco. Ligou o carro, sentiu o motor rugir debaixo das mãos e, pela primeira vez em muito tempo, deixou-se levar.

Acabaram por seguir em direção ao Gerês, pelas estradas que serpenteavam entre montes verdes e vales profundos. O sol começava a cair, pintando o céu de dourado e laranja. Do banco de trás, Benedita não resistiu: tirou o telemóvel, ligou para Clara e, sem grandes rodeios, anunciou:

— Olha, cancela os planos para hoje. Estou com o teu pai e a tua mãe a dar uma volta. Fica para outro para amanhã, pode ser?

Do outro lado, Clara ficou em silêncio uns segundos, tão surpreendida que nem sabia o que responder.

Jantaram num restaurante típico, à beira de uma estrada secundária, onde o cheiro a lenha queimava no ar e a comida sabia a conforto antigo. O restaurante era simples, de estrada, com toalhas de papel e cheiro a grelhados a encher o ar. Nada de requintado, mas havia nele uma autenticidade que lhes caiu bem naquele momento. Óscar pediu vinho da casa e um prato de vitela grelhada; Laura, truta com amêndoas; Benedita ficou-se por uma francesinha que fez questão de experimentar, rindo da surpresa de Óscar perante a escolha.

Durante a refeição, as conversas foram leves, quase superficiais. Benedita falava entusiasmada sobre colegas da escola, sobre os trabalhos que tinha de entregar, e até comentou em tom divertido o facto de Clara nunca lhe conseguir explicar filosofia sem arrastar Daniel para a conversa. Laura ouvia, sorria, mas falava pouco; parecia ocupar-se mais em observar, como quem não queria estragar o equilíbrio frágil que se tinha instalado.

Óscar, por sua vez, manteve o ar sério mas não distante. Olhava para Benedita com atenção genuína, intercalava uma ou outra pergunta prática, e chegou a esboçar um sorriso verdadeiro quando a jovem descreveu uma professora sua como “um vulcão disfarçado de freira”.

Entre Óscar e Laura, o diálogo foi mínimo, mas não frio. Trocaram palavras necessárias: um passa-me o sal, um queres provar?, e até um discreto está bom, não está?. Gestos simples, banais, mas que, para Laura, tiveram um peso inesperado. Havia muito tempo que não partilhava com ele o ritual banal de uma refeição sem a sensação de estar a invadir território proibido.

Quando terminaram, Benedita insistiu para partilharem sobremesa, e acabou por escolher um pudim caseiro para os três, empurrando as colheres como quem queria forçar cumplicidade. Laura observava em silêncio, e não pôde evitar pensar que talvez fosse assim que começava — não com grandes pedidos de desculpa ou com discursos sentidos, mas com pequenas normalidades recuperadas.

No regresso, já noite cerrada, Laura insistiu para que Óscar conduzisse a carrinha de volta a casa. Ele não discutiu: limitou-se a aceitar o volante de volta às mãos.

Na viagem de regresso, o ambiente estava sereno. Não houve confidências nem revelações, apenas o som do motor, a paisagem a escurecer pela janela e a sensação de que, por uma noite, tinham conseguido respirar no mesmo espaço sem que a dor fosse a única presença à mesa.

Quando estacionaram na garagem, Benedita saiu disparada, mochila às costas, murmurando qualquer coisa sobre trabalhos para o dia seguinte. Desapareceu escada abaixo.

Ficaram apenas os dois. Laura voltou-se para Óscar, ainda junto ao carro, e disse com voz baixa:

— Obrigada pela noite.

Ele sustentou-lhe o olhar por um instante, sério, e respondeu simplesmente:

— Eu também agradeço.

Depois seguiram os dois caminhos separados dentro da mesma casa, mas algo, mesmo que pequeno, tinha mudado.


quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 28


 


Foram precisos alguns dias até Clara encontrar o momento certo para falar com a mãe. Ainda se lembrava bem daquela noite — Laura mais silenciosa do que o habitual, um ar estranho de vulnerabilidade nos olhos, e o próprio ambiente da casa a parecer ter mudado ligeiramente.

Estavam agora sozinhas na cozinha, Clara a beber um chá e Laura a arrumar as últimas louças do jantar. Clara apoiou-se no balcão e quebrou o silêncio com cuidado:

— Naquela noite… eu percebi que houve qualquer coisa. Tu estavas diferente. O que se passou?

Laura parou por instantes, as costas viradas para a filha, e suspirou fundo antes de se virar.

— Falei com o teu pai. Pela primeira vez em muito tempo, falei mesmo. Disse-lhe o que nunca tinha conseguido.

Clara endireitou-se na cadeira.

— E como é que ele reagiu?

— Ficou em silêncio… mas não me virou costas. Ouviu-me. — Laura hesitou, quase a medo. — Não sei se foi aceitação ou apenas respeito. Mas… foi mais do que eu esperava.

Clara baixou os olhos, pensativa, e disse num tom calmo:

— É estranho, não é? Parece que todos nós tivemos de chegar ao limite para começarmos finalmente a falar a sério.

Laura assentiu.

— E nesse limite, percebi uma coisa. — Olhou a filha nos olhos. — Todas as desculpas que inventei para mim própria… caíram por terra. Eu não reconhecia a mulher que me tornei. Nunca pensei ser capaz de… fazer o que fiz. Mas fiz. E só restava olhar o estrago de frente.

Clara manteve-se em silêncio durante alguns segundos, antes de responder:

— Eu também percebi isso, mãe. Que nem sempre somos quem pensávamos ser. Mas também acho que é aí que começa a mudança… quando finalmente conseguimos admitir quem fomos.

As duas trocaram um olhar silencioso, pesado mas cheio de compreensão. Era como se, pela primeira vez, ambas reconhecessem a profundidade das suas falhas sem máscaras nem justificações.

Laura deixou escapar um suspiro que se transformou quase num sorriso cansado.

— No meio disto tudo, sabes o que mais me ficou? Que agora vou ter de trocar o Tesla.

Clara arqueou as sobrancelhas, surpreendida, e não conteve uma gargalhada curta.

— Trocar o Tesla?!

— Sim… — Laura encolheu os ombros, irónica. — Parece que aquele carro virou símbolo de tudo o que correu mal. Mas não faço ideia do que ir buscar…

Clara abanou a cabeça, divertida, e respondeu:

— Então pergunta à Benedita. Desde aquela viagem com o pai que ficou fanática por carros. Aposto que te arranja logo uma lista inteira de sugestões fixes.

Laura riu-se finalmente, de forma leve, quase libertadora. E por um instante, a sombra que pairava entre ambas pareceu menos densa, como se aquele pequeno humor fosse também um gesto de reconciliação.

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 27


 


Laura, ao longo das semanas, ia-se apercebendo dos pequenos sinais que denunciavam como a tensão entre todos começava, aos poucos, a perder força. Não desaparecia — longe disso. Era como uma corda demasiado esticada, que nunca mais voltaria ao estado original, mas que já não ameaçava rebentar a cada instante. Via isso nas conversas que regressavam lentamente, nos olhares que deixavam de se esquivar tanto, nos silêncios que já não eram cortantes, mas apenas pesados.

E, acima de tudo, via como Benedita parecia ser o elo invisível desse frágil reatar. Não fazia nada de propósito, não dizia nada que soasse a intervenção ou tentativa de pacificação. Mas era a sua presença, a sua leveza, a forma como entrava e saía das divisões, como perguntava coisas com a simplicidade de quem não carrega o peso do passado. Era ela quem, sem querer, obrigava todos a conviver, a conversar, a olhar-se novamente.

Ainda assim, Laura sentia-se à parte. Como se a reconstrução que via a erguer-se em volta dela fosse uma casa da qual não possuía chave. Sabia que Daniel nunca mais a olharia da mesma forma. Havia nos olhos dele um resquício de desconfiança que parecia permanente, uma barreira invisível que não era feita de raiva mas de distância. Entre ela e Clara, a relação estava ferida de maneira diferente: cada conversa acabava tingida pela mágoa.

Não era só a mágoa de filha para mãe. Era algo mais profundo — o reflexo da consciência. Laura sabia-o bem. Clara tinha sido quem dera o primeiro passo, quem acenara com a tentação, quem instigara. Mas no momento em que o fez, Laura não recuou. Pelo contrário: abraçou aquele gesto como se fosse uma autorização. Como se a filha, ao avançar, lhe tivesse dado a prova de que não estava errada em querer o que queria. Que não era louca, que não era a única.

Essa sensação, na altura, trouxera-lhe uma estranha paz. Hoje, trazia-lhe apenas dor. Porque percebia que fora ali, naquela validação, que nascera a queda. Clara tinha carregado a tocha, mas Laura não tinha hesitado em estender a mão para o fogo. E essa consciência não a deixava em paz.

Com Benedita, porém, era diferente. A jovem parecia mover-se num espaço onde nada disso existia. Nunca lhe lançou um olhar acusador, nunca lhe mostrou julgamento. Pelo contrário: quanto mais o tempo passava, mais se aproximava dela. Procurava-a para confidências leves, segredos quase banais ditos em tom cúmplice. Coisas que o Óscar não entenderia, dizia a rir. Coisas de raparigas.

Esses momentos tinham um efeito inesperado em Laura. Eram como uma janela aberta depois de uma noite abafada. A leveza da jovem, a confiança com que se apoiava nela, a naturalidade com que a tratava como alguém em quem se podia confiar — tudo isso era como um bálsamo a tocar-lhe feridas que ainda sangravam.

E, ao mesmo tempo, era doloroso. Porque Laura percebia a ironia: era justamente a confiança de Benedita, tão pura e gratuita, que lhe mostrava o vazio deixado por Clara. Via no sorriso daquela jovem a prova de que ainda podia ser vista como alguém íntegro, como alguém capaz de dar segurança. Mas ao mesmo tempo, sabia que com a própria filha esse espaço estava turvado, cheio de sombras e lembranças que não desapareceriam facilmente.

Era nesse contraste que Laura vivia agora: uma mãe que perdera o caminho com a própria filha, e uma mulher que, inesperadamente, encontrava numa jovem que não era sua o reflexo daquilo que ainda podia ser. Benedita, sem o saber, dava-lhe algo precioso — a prova de que não estava condenada a ser sempre o erro que carregava.

E depois havia Óscar.

Sempre cordial, sempre frio, vivendo uma vida à parte da sua, como se habitassem a mesma casa mas em realidades diferentes, intocáveis entre si. Era um silêncio cortante, não o silêncio das palavras que não se dizem porque não são precisas, mas o silêncio da distância, o silêncio que ergue muros entre duas almas que um dia se conheceram e agora já não sabem encontrar-se.

Laura já não tinha desculpas. Todas as justificações que antes murmurara para si própria, todas as construções mentais que inventara para dar forma ao erro — tinham caído por terra, uma a uma, sem deixar nada de pé. No lugar delas, apenas devastação. Não havia como continuar a mentir-se.

Foi nesse vazio que o seu ego finalmente ruiu. Pela primeira vez, olhou-se no espelho da alma e percebeu, com brutal clareza, o que tinha feito. Não apenas a traição em si, mas tudo o que ela representava. Tinha estilhaçado não só a imagem que Óscar guardava dela — a mulher em quem podia confiar, a parceira de uma vida inteira — mas também a imagem que ela própria sempre teve de si mesma. E o que encontrou nos estilhaços foi insuportável: um reflexo que não reconhecia.

Laura nunca fora a pessoa que acreditava capaz de cometer aqueles atos. Sempre pensara que havia linhas que jamais cruzaria, princípios inabaláveis que a sustentavam. Mas, no fim, atravessara-as como se fossem nada. E quando percebeu isso, uma sensação de estranheza apoderou-se dela, como se vivesse dentro de um corpo que já não lhe pertencia. Como se fosse outra, uma estranha, uma impostora que usava o seu rosto.

Queria desesperadamente falar com Óscar. Queria aproximar-se dele e tentar, de alguma forma, dizer algo que refizesse ao menos uma parte do que destruíra. Mas não sabia que palavras usar. O léxico da desculpa tinha-se esgotado. Já não havia justificações possíveis — e, de certa forma, compreendia que ele nem as desejasse ouvir. O silêncio dele era o reflexo cruel dessa verdade: tudo o que havia para ser dito tinha morrido no momento em que o respeito se perdera.

E por isso, calava-se.

Porque qualquer frase que ensaiasse na mente parecia inútil, pequena, insignificante perante o abismo que os separava.

E assim vivia, entre a ânsia de se aproximar e o medo de o fazer. Entre a culpa que a esmagava e a ausência de caminho para a redimir. O coração preso num impasse: a vontade de falar, esmagada pela certeza de que já não havia nada a dizer.

As noites com a casa cheia tornaram-se uma rotina curiosa. Mais cheia do que alguma vez tinha sido antes. Clara e Daniel eram presenças constantes: ela com o pretexto genuíno de ajudar Benedita nos estudos, ele por não ter vontade de ficar sozinho em casa. Às vezes vinham também amigas de Clara — como Patrícia, sempre faladora, que com entusiasmo tentava decifrar com Benedita conceitos de filosofia que nem Clara compreendia bem. O resultado eram serões animados, vozes misturadas, gargalhadas ocasionais, discussões de ideias, movimento em todas as divisões.

E ainda assim, para Laura, eram noites vazias.

Nunca se sentira tão só como naquelas horas em que, rodeada de gente, percebia que não pertencia verdadeiramente a nenhum lugar. Na cozinha, arrumava a loiça quase mecanicamente, tentando não escutar a vida a acontecer noutras divisões da casa. Clara e Patrícia, na sala de jantar, inclinavam-se sobre cadernos e livros abertos, rindo-se de equívocos e complicando explicações. Benedita absorvia tudo com olhos atentos e ansiosos, como quem bebe água depois de atravessar um deserto. Na sala, Daniel e Óscar comentavam um debate qualquer na televisão, vozes masculinas a cruzarem-se, concordando ou refutando, criando ali uma cumplicidade natural que a excluía por completo.

E ela, Laura, ficava no espaço intermédio. Nem na luz cálida do estudo, nem na gravidade tranquila da sala. Apenas na cozinha. Apenas no silêncio.

Foi aí que a dor começou a subir, inesperada, avassaladora. Um nó apertou-lhe a garganta, e de repente as lágrimas romperam. Primeiro uma, depois outra, até a corrente se tornar incontrolável. Escorriam-lhe pela face sem pedir licença, como se a alma tivesse encontrado uma fenda por onde finalmente sangrar. Encostada à bancada da cozinha, com as mãos ainda húmidas do pano de loiça, Laura chorava baixinho. Um choro quieto, quase vergonhoso, como se tivesse medo que alguém ouvisse — e, ao mesmo tempo, desejasse desesperadamente que alguém ouvisse.

Foi nesse instante que ouviu passos.

Óscar entrou na cozinha, um copo vazio na mão.

Laura congelou, tentando disfarçar, esfregando apressadamente o rosto com a manga. O coração disparou como se tivesse sido apanhada em flagrante. Ele passou por trás dela, sem abrandar, com o mesmo andar calmo, quase pesado, que lhe era característico. Foi direto ao armário onde guardava a garrafa, pousou o copo no balcão e começou a servir-se, como se nada tivesse visto.

Laura permaneceu imóvel, encostada à bancada, ainda a tentar recompor-se.

Óscar não lhe disse nada.

Nem uma pergunta, nem uma observação. Apenas a presença dele, tão próxima e tão distante, a encher o espaço da cozinha.

E essa indiferença magoava tanto como o próprio silêncio.

Óscar encheu o copo com o gesto automático de quem já não pensa, apenas repete. O líquido âmbar caiu pesado, encheu metade do vidro, e logo a garrafa foi devolvida ao armário. Fechou-o com calma, como se cada ação tivesse o seu peso próprio, e virou-se para regressar à sala.

Laura sentiu o pânico subir-lhe pelo peito. Queria que ele saísse, que não a visse assim, desfeita em lágrimas, com os olhos vermelhos e a voz trémula. Queria esconder-se atrás da porta do frigorífico ou mergulhar nas sombras da cozinha, qualquer coisa para que ele não a encarasse naquela fragilidade exposta.

Mas as palavras escaparam-se-lhe antes que a razão as pudesse prender.

— Eu roubei-te algo…

A voz soou num sussurro rouco, mas suficientemente clara para se impor no silêncio.

Laura ficou de imediato surpreendida com o que dissera. Não fora uma escolha, fora como se o subconsciente tivesse finalmente empurrado o ego para o lado e lhe tivesse arrancado a verdade à força. As lágrimas rebentaram de novo, incontroláveis, e o peito abriu-se num soluço que parecia o primeiro respirar depois de ter estado demasiado tempo debaixo de água.

Óscar parou abruptamente.

Ficou de costas para ela, estático, a mão ainda a segurar o copo como se tivesse congelado no meio do gesto de dar o primeiro gole. O silêncio que se instalou era quase físico, tão denso que parecia ter peso.

Laura sentiu as pernas fraquejarem, mas encontrou forças para prosseguir, a voz a partir-se como vidro:

— Roubei-te algo sagrado…

Foi só então que Óscar se virou. Lentamente.

O olhar pousou nela, sério, escuro, carregado de tudo aquilo que nunca dissera. Não havia fúria, nem piedade. Apenas a gravidade de quem ouve uma confissão tardia, mas inevitável.

Laura susteve a respiração. O coração batia descompassado, e ainda assim, naquele instante, sentiu que tinha finalmente vindo à tona.

Laura permaneceu de costas, o corpo inclinado ligeiramente sobre a bancada, os dedos húmidos ainda apoiados no lavatório como se dele dependesse para se manter de pé. Sentia o olhar de Óscar cravado nela, como uma lâmina fria que não precisava de palavras para cortar. A garganta secou-lhe, mas a voz saiu, baixa, quase trémula:

— Eu… sempre acreditei — engoliu em seco, tentando controlar as lágrimas —, sempre acreditei que o corpo era meu, que a escolha era minha.

Enquanto pronunciava estas palavras, quase sentiu o ar gelar entre os dois. Era como se o espaço tivesse ficado mais estreito, como se o peso da verdade tivesse enchido a cozinha até aos cantos. Ainda assim, forçou-se a continuar.

— Isso é verdade… mas o que eu me esqueci — e aqui a voz quebrou-lhe por um instante, antes de recuperar —, o que me esqueci é que essa escolha eu já a tinha feito. Há muito tempo. No dia em que nós dois decidimos que íamos passar a vida juntos.

As palavras ecoaram na cozinha em silêncio absoluto. Óscar não disse nada, mas ela sentia que cada sílaba pousava nele como ferro incandescente.

— No dia em que me ofereci a ti, e tu a mim. No dia em que nos tornámos pertença um do outro. O casamento só formalizou… mas a escolha, Óscar… a escolha já estava feita.

Ele não se moveu. O olhar mantinha-se fixo nela, sem endurecer mais, mas também sem suavizar. Apenas absorvia.

Laura respirou fundo, lágrimas a escorrer-lhe pelo rosto sem que tentasse limpá-las.

— A minha escolha tinha sido dar-me a ti. Toda. E se me dei… já não era só minha. Era nossa. Era tua.

A sua voz tornou-se um fio, mas claro o suficiente para se gravar:

— Eu roubei-te isso. Roubei-te o que era teu. Roubei-te a mim mesma.

O silêncio parecia uma parede entre eles. Laura fechou os olhos, apertou o lavatório até os nós dos dedos ficarem brancos. E, com o coração a latejar, deixou cair as últimas defesas:

— Não há… não há uma única justificação válida para o que fiz. — O peito contraiu-se num soluço contido. — Só… só te posso pedir desculpa.

Foi então que se voltou. Devagar, como se aquele gesto lhe custasse mais do que qualquer palavra. Encarou-o. Deixou-o vê-la em toda a sua vulnerabilidade: olhos vermelhos, rosto molhado de lágrimas, o corpo cansado de resistir.

Óscar permaneceu sério, a expressão marcada pelo peso de tudo o que ouvira. Mas já não era a frieza cortante de antes. Havia ali qualquer coisa mais contida, menos distante. Depois de alguns segundos que pareceram eternos, fez-lhe apenas um pequeno aceno com a cabeça — um gesto simples, que Laura não conseguiu interpretar como perdão, mas como aceitação do momento.

Sem acrescentar palavra, virou-se e retirou-se da cozinha. Mas não foi um gesto brusco, nem de desprezo. Laura sentiu-o mais como um espaço que ele lhe deixava, uma forma de respeito para que pudesse recompor-se.

E ficou suspenso no ar, como uma chama ténue mas teimosa, o pressentimento de que aquela conversa não estava terminada. Que poderia voltar a ter seguimento.

Laura recompôs-se como pôde. Terminou de arrumar a cozinha num silêncio quase cerimonial, cada prato e cada copo pousado no seu devido lugar como se essa ordem externa pudesse acalmar a desordem interna. Foi até à casa de banho, lavou o rosto com água fria, respirou fundo diante do espelho e ensaiou um ar neutro, um disfarce aceitável para regressar ao convívio dos outros.

Quando voltou à sala, encontrou Óscar e Daniel ainda juntos, cada um com um copo na mão, sentados em silêncio confortável, cúmplices na contemplação da televisão onde um debate político se arrastava. Laura não tentou intermeter-se. Limitou-se a sentar-se num canto, numa poltrona lateral, deixando-os no espaço deles. Observava-os, em silêncio, como quem testemunha um fragmento de normalidade que já não lhe pertence inteiramente.

A noite foi avançando. Benedita despediu-se com o entusiasmo de quem aprendera algo novo, subindo apressada em direção à cave, os livros apertados contra o peito. As amigas de Clara recolheram-se, Daniel anunciou que já se fazia tarde. Um a um, os ruídos da casa foram desaparecendo.

Óscar, por fim, entrou na cozinha, pousou o copo vazio na bancada e pareceu pronto para sair. Laura, ainda na soleira da porta, deixou as palavras escapar antes que pudesse hesitar:

— Porque é que riscaste o Tesla?

Óscar parou por um instante, surpreendido pela pergunta. Virou-se ligeiramente, meio sorriso a vincar-lhe os lábios — mas não era um sorriso leve, antes um gesto de resignação com um fundo de ironia amarga.

— Aquele Tesla… — respondeu, pausado — simboliza tudo aquilo em que cedi o que queria em favor da conveniência… ou da vontade dos outros. É o lembrete perfeito de como não me estenderam a mesma cortesia.

As palavras ficaram no ar, duras mas calmas. Laura anuiu devagar, absorvendo o peso daquela resposta. Depois, num tom sereno, perguntou:

— E o que gostarias que estivesse no lugar do Tesla?

Desta vez foi a vez de Óscar levantar as sobrancelhas, surpreendido. Olhou-a por alguns segundos, tentando perceber se havia ali ironia, mas encontrou apenas genuinidade.

Laura sustentou-lhe o olhar e acrescentou:

— Por mais fixe que o Corvette seja… não serve para dar uma volta em família. Nem para ir às compras ao supermercado.

Um leve esgar de quase-riso surgiu-lhe no rosto. Óscar abanou a cabeça, e pela primeira vez naquela noite a sua expressão suavizou-se.

— É capaz de teres razão. — fez uma pausa, como se escolhesse bem as palavras. — Na verdade, há bastantes carros interessantes, familiares… capazes de pôr um sorriso no rosto de alguém que gosta de conduzir.

Laura limitou-se a acenar, como quem compreende que a conversa era menos sobre carros e mais sobre tudo o resto. Não insistiu, não tentou prolongar. Deixou a resposta assentar como uma semente que talvez germinasse.

Óscar passou por ela sem mais nada dizer. E seguiu o seu caminho.