segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Consequências (XXIV de XLIII)




Eram onze e meia da noite quando Marie entrou em casa, ainda abalada pelo que tinha acabado de se passar. A sua cabeça estava num turbilhão, bem como as suas emoções.

Dirigiu-se à cozinha onde foi beber um copo de água, deixando a sua bolsa e chaves em cima da mesa da cozinha, e dirigia-se já para o quarto quando o seu telemóvel começou a tocar. Voltou atrás uma vez que o tinha deixado na sua bolsa, agarrou-o e viu o nome da sua filha no visor. A esta hora? O seu coração apertou-se de repente.

“Sim, filha.” Respondeu quando atendeu.

“Mãe, não te passes. Estás sentada?” Marie sentiu a gravidade na voz da filha e sentou-se de imediato, preparando-se para más noticias.

“Diz, filha. O que é que se passa?”

“Mãe, acabei de desligar o telefone. Estive a falar com um médico. O pai foi atingido por um tiro nas costas, e está neste momento a ser transferido para um hospital no Dubai.”

 Embora estivesse sentada, uma vertigem passou por todo o seu corpo, sentiu que o chão queria abrir-se debaixo dos seus pés e sentia o coração a bater nos seus ouvidos.

“Mas como é que ele está?”

“Parece que é grave. Ainda não me sabem dar mais notícias. Ligaram-me porque eu estava listada como contacto de emergência. Para já só me disseram que o estabilizaram e estão a evacuar para o Dubai, para um hospital particular de topo, onde vai ser operado.”

“Temos de ir ao Dubai…” respondeu Marie resoluta.

“Mãe, não comeces já a ficar acelerada. Não vais fazer nada ao Dubai. Provavelmente nem te deixavam vê-lo. Só te disse porque como dizem que é grave, quero que saibas. Mais não vais fazer nenhum disparate nem vais para lado nenhum. Vais fazer como eu e esperar. Ele está em excelentes mãos, com os melhores médicos de toda aquela região a tratar dele. Vamos esperar. Percebeste?”

Marie respirou fundo, e embora não fosse o que queria, sabia que a filha tinha razão.

“Sim. Mas promete-me que me dás noticias assim que souberes de alguma coisa mais.”

“Prometo, mãe. Agora deixa-me avisar o Tiago, que ainda não lhe disse.”

Desligaram a chamada e Marie deixou-se ficar atónita, sentada sem saber o que fazer. As sextas-feiras pareciam ter o condão de ser dias maus para ela.

Subiu ao quarto, tirou a roupa, foi tomar um duche, deitou-se, mas o sono não veio, afugentado pela preocupação. Levantou-se, foi até a cozinha onde se sentou com um bloco e uma caneta e começou a escrever.


“Sei que nunca lerás estas palavras e por isso sei que te posso dizer tudo aqui.

Não quero que penses que escrevo estas linhas para justificar alguma coisa. Aquilo que fiz não tem justificação e tu sabias disso, mesmo quando eu me convenci do contrario.

Não consigo calcular a dor que te causei, por isso nem me atrevo a pedir perdão por algo que nem sequer compreendo. E sabemos ambos que na verdade eu não o mereço.

Ainda assim, queria poder estar aí ao teu lado, poder suportar-te, ajudar-te, cuidar de ti.

O que te vou contar a seguir pode ser estranho, mas, uma vez que nunca vais ler isto, não vai fazer diferença.

Primeiro quero dizer-te que a tua aliança me acompanha todos os dias para onde quer que vá. Coloquei-a num fio e anda sempre junto ao meu peito.

Sabes o Homem com quem me viste a sair da festa? Não, não estou a falar dele para te magoar, embora possa parecer, mas, tenho de te contar isto. Ele chama-se Guilherme. Há uns meses atrás cruzei-me com ele por acaso… Bem, confesso, não foi por acaso. Ele tem negócios com o meu patrão, o Fernando, e cruzamo-nos quando ele foi à empresa por causa de uma reunião.

Já agora, num aparte, sim, eu agora trabalho e o Fernando, para que saibas, é o marido da Lisa. Eles têm-me ajudado muito mais do que eu acho que mereço.

Mas voltando ao Guilherme, quando nos cruzamos ele mencionou que tinha sabido o que aconteceu e convidou-me para um café, depois do trabalho, para falarmos um pouco. Acabei por aceitar, falámos, eu contei-lhe o que se tinha realmente passado, uma vez que ele não sabia mesmo, só tinha ouvido rumores e foi um bom café. Deixou-me um cartão com o contacto dele que eu não usei.

Duas semanas depois ele foi à empresa outra vez e voltou a convidar-me. Voltei a ir e mais uma vez a conversa foi agradável e soube-me bem ter alguém com quem falar.

Como ele não tinha o meu telefone, começou a ligar para o de trabalho para me convidar e estes cafés tornaram-se uma ocorrência semanal. Para te ser honesta, a determinada altura eu já ansiava por estes cafés. Não pela companhia de um homem, mas porque parecíamos estar a estabelecer uma ótima relação de amizade. Bebíamos o café e eu podia falar de tudo e ele tinha sempre um sorriso compreensivo, alguém que me encorajava. Era uma espécie de terapia para mim ter alguém com quem falar, um espelho que ouvia as minhas preocupações e os meus anseios sem julgamentos. Comecei a confidenciar-lhe os meus medos, as minhas frustrações, e ele, numa escala menor, fazia o mesmo, falando de coisas que corriam menos bem na sua vida profissional ou pessoal.

De algumas semanas para cá ele começou a convidar-me para um jantar e alguma diversão a seguir, como irmos ao teatro ou outra coisa do género. Fui sempre recusando, mas ele foi insistindo, dizia-me que eu merecia um pouco de diversão…

Curiosamente cedi hoje.

Soube-me bem arranjar-me para sair pela primeira vez em um ano. Não, se queres saber, não usei nenhum vestido mais revelador ou qualquer outra coisa especial, mas mesmo assim soube bem sair em roupas um bocadinho diferentes das que uso no dia-a-dia. Ele veio buscar-me e fomos para o restaurante. Durante a refeição notei os olhares mais insistentes dele, mas, se queres que te diga até me estavam a saber bem ao ego.

Apesar dos olhares, ele não deixou de ser um perfeito cavalheiro. Fomos ver uma peça de teatro, uma comédia, e tenho de admitir que me diverti bastante. Ri como já não me lembrava há muito. Estava a ser uma boa sexta-feira.

Saímos do teatro e ele trouxe-me a casa, fomos falando da peça que tínhamos visto no caminho, chegamos e ficamos no carro a conversar um bocadinho. Mas o olhar dele tornou-se mais penetrante e a conversa foi esmorecendo, até ficarmos de olhos fixos um no outro. Eu podia ver claramente no olhar dele o que ele queria e tenho de te confessar… Não estava ser fácil resistir. Afinal, apesar de tudo, sabes bem que sou uma fêmea de sangue quente e brinquedos e a imaginação não substituem uma presença. O álcool do jantar, a boa disposição… a solidão… estavam a deixar-me num estado em que eu não queria estar, mas por esta altura o meu cérebro gritava-me para parar, mas o meu corpo reagia e eu estava petrificada.

Mas nessa altura ele disse ‘ainda não consigo acreditar que o teu marido te tenha deixado desta maneira… Eu jamais te faria isso. Sabes, finalmente passou um ano. Podes ver-te livre desse fardo e seguir em frente, livre.’ e podes não acreditar, mas nesse momento a tua aliança pareceu ficar mais pesada à volta do meu pescoço e foi como se eu acordasse de repente de um sonho. Nesse momento creio que a minha expressão deve ter mudado bastante. Ele percebeu e tentou desdizer o que tinha dito, mas já era tarde.

Percebi ali completamente as intenções dele. Não que não tivesse as minhas desconfianças antes, mas relevava, de uma forma demasiado ingénua talvez. Acabei por lhe agradecer a noite e o tempo que tinha passado comigo, a amizade e o apoio, mas disse-lhe que era melhor não nos voltarmos a ver. Pude ver a desilusão no rosto dele, mas não insistiu, eu sai do carro e ele partiu. E ainda estava às voltas com estes pensamentos quando tive notícias de que estás a lutar pela vida.

Não posso deixar de me sentir culpada por tudo, até por tu estares aí, nesse estado.

Mas quero que saibas que tu és o meu marido, és o meu homem e podes até odiar-me ou nunca mais falar comigo, mas no que depender de mim, o nosso casamento nunca será desfeito, pelo menos até que tu o queiras. E, se tu o quiseres, não vou querer nada de ti, nem mesmo o que deixaste para trás. 

Nos últimos meses tenho trabalhado e tenho-me sustido e ganhei algum orgulho nisso.

Sei que nunca vais ler estas palavras, que não passam de um desabafo de alguém que não sabe o que fazer. Mas quero que saibas que sou, para sempre, tua. Que errei, que sou imperfeita e que o meu erro foi de tal forma grande que não merece perdão. Mas que este ser imperfeito te pertence, de corpo e alma, acredites nisso ou não.”

Acabou de escrever com lágrimas nos olhos, olhou para as folhas, onde algumas lágrimas caiam e esborratavam a tinta, amachucou as folhas e mando-as para o lixo, seguindo para o quarto onde pacientemente aguardou pelo sono que teimava em não chegar.

Foi no lixo que Patrícia encontrou as folhas quando entrou em casa no dia seguinte logo cedo, ainda a mãe dormia. Depois de as ler, com o coração apertado, endireitou as folhas o melhor que pode, passando-as a ferro para tirar a maior quantidade de vincos possível e depois dobrou as folhas cuidadosamente e guardou-as.


4 comentários:

  1. Pela primeira vez, desde o início desta história, senti alguma compreensão e fiquei condoída com o sofrimento de Marie.

    Boa semana e um abraço, Gil.

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    1. Às vezes más pessoas fazem coisas boas, e boas pessoas fazem coisas más... E por vezes atiramos a primeira pedra depressa demais... :)

      Abraço, Janita

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    2. O que dizes só vem confirmar a minha ideia de que não há boas ou más pessoas...Há seres humanos falíveis na sua condição de seres errantes...e erráticos! :-)

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    3. Eu acredito que há pessoas genuinamente boas e genuinamente más... Mas são uma minoria! As restantes enquadram-se na tua definição :)

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O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!