terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Chuva - XXXVIII

 

 

Podes não acreditar, mas foi a primeira vez que senti o quanto podia ser temido. A dúvida que eu deixara no ar contagiava toda a gente. Aliás, as minhas atitudes, como o apresentar-me ao trabalho, não deixavam de confundir quem olhasse para mim e procurasse algo.

Foi por pressentir isto que tomei a atitude que tomei.

Pouco depois de o homem sair, telefonei para o Fernandes.

“Pá, hoje não me venhas buscar.”

“Mas porquê? Tens outra boleia?”

“Não, tive um convite…”

“De quem?”

“Não sei, mas pelo mensageiro cheira-me que tem a ver com esta ultima mensagem…”

A voz do Fernandes passou de imediato para um tom preocupado.

“Pá, mas não queres que vá contigo?”

“Não, não te preocupes. Também não te quero meter nisto. Quando chegar a casa, mais logo, falamos.”

Coitado do Fernandes. Sabia que ele ia ficar à minha espera como um pai espera a filha adolescente na sua primeira saída à noite. Ele sabia que eu ia mergulhar numa piscina cheia de tubarões. Eu também.

Às cinco da tarde o segurança liga-me.

“Sr. Gabriel, tenho aqui uma pessoa para falar consigo…”

“Mande entrar.”

Um homem entrou, com farda de motorista.

“Sr. Gabriel?”

“O próprio.”

“Estou aqui para o acompanhar.”

Levantei-me, arrumei as minhas tralhas e acompanhei-o.

Ele abriu-me a porta de trás do carro, com toda a cerimónia, e esperou que eu estivesse bem instalado antes de a fechar e dar a volta ao carro para entrar ele próprio. Depois arrancamos deslizando com suavidade e entramos no bulício do trânsito que só não era maior porque partes da cidade ainda estavam fechadas.

Saímos da cidade em direcção a Sintra. Fui vendo a paisagem. Durante a viagem não houve uma única troca de palavras com o motorista. Ele limitou-se a conduzir-me e eu a ser conduzido.

Paramos à porta de um restaurante em Sintra. Ele saiu e veio abrir-me a porta. Eu sai do carro e entrei no restaurante.

À entrada o chefe de sala conduziu-me para o interior onde todas as mesas estavam postas, mas que estava deserto.

“qual é a mesa?” perguntei.

“A que quiser.” Disse o homem com um sorriso.

Escolhi uma mesa junto a uma janela. Como todas as outras estava posta para quatro pessoas. Sentei-me. De imediato o chefe de sala trouxe um menu e afastou-se.

Duas mulheres aparentando vinte e poucos anos, vestidas de forma sensual entraram no restaurante. Não lhes liguei, pelo menos enquanto pude. Atravessaram a sala com um andar firme, e sentaram-se na minha mesa uma de cada lado.

Esteticamente falando eram mulheres belas. Olhei-as quando se sentaram. Como podes calcular podiam ser Vénus e Afrodite. Para mim era igual. Felizmente para mim elas sentaram-se e olharam-me mas mantiveram-se em silêncio. Eu também.

Fiz a minha escolha, pousei o menu e aguardei. Elas olhavam para mim com sorrisos provocadores. Eu começava a ficar entediado.

Ao fim de bastante tempo, nem te sei precisar quanto, entram dois homens na sala. Vem para a mesa. Um deles, que marcava presença pela própria postura que tinha, senta-se à minha frente. O outro coloca-se do meu lado direito. O homem que está à minha frente olha longamente para mim. E eu para ele. Decide-se falar finalmente.

“Mr. Gabriel, my name is John Smith.”

O que estava ao meu lado apressou-se a traduzir.

“Sr. Gabriel, o meu nome é John Smith.”

O nome, só por si dizia tudo. John Smith é qualquer um, qualquer pessoa. O que quer dizer que este homem não era ninguém em concreto. Ou não queria que eu o achasse alguém. Olhei para o homem que tinha à minha frente e respondi-lhe em inglês.

“Pode dispensar o tradutor. Não temos necessidade dele.”

O homem assentiu. Fez um gesto e o outro retirou-se de imediato.

“Sr. Gabriel, presumo que tenha uma ideia do porquê deste convite.”

“Não lhe chamaria propriamente um convite. Sim, tenho uma ideia.”

“Espero que as minhas duas colaboradoras lhe tenham feito companhia enquanto eu não cheguei…”

“Não estive sozinho.”

“Muito bem. Já escolheu?”

“Já. “

“Jantemos então. Podemos falar melhor de estômago reconfortado.”

Jantamos em silêncio. Os olhares das mulheres continuavam provocantes. Creio que outro qualquer lhes chamaria de sedutores. Mas não eu. Não me seduziam. Dominava constantemente a repulsa que sentia da sua proximidade. Evitava o mais possível o toque.

O meu olhar cruzava-se constantemente com o do John. Revi-me, sabes? Completamente. Ele era tão vazio de emoções como eu, tão avesso às pessoas como eu. Desprezava-as de igual modo, mesmo as nossas companhias femininas. Mas as motivações dele eram diferentes das minhas. Eu apenas me queria afastar. Ele descobrira que era fácil fazer o que outros não fariam.

O jantar acabou. Ele ficou a olhar para mim longamente, avaliando-me. Tentando perceber-me. Queria saber por onde começar, como ganhar vantagem sobre mim. Não se reviu em mim.

“Sr. Gabriel, vou directo ao assunto. As pessoas que represento não estão muito felizes consigo.”

“Não?”

“Não. Sabe, as suas afirmações causaram desconforto. Colocou-os num beco sem saída. Sabe, não são pessoas habituadas a estar encurraladas…”

“Compreendo.”

“Por outro lado perceberam que qualquer acção contra si, depois de revelada a informação, seria quase uma admissão de que ela é verdadeira…”

“Sim, creio que seria uma assunção normal.”

“Mas aquilo que os deixa mesmo curiosos é como é que essa mesma informação lhe chegou às mãos…”

“Mas para saber isso não precisava de ter vindo. Está escrito em todos os jornais. Foi-me revelada.”

“Claro que foi. A questão é saber, por quem. Sabe, eles têm alguma dificuldade em lidar com misticismos.”

“Eu compreendo-os. Eu também, para ser franco.”

“Percebe então a insistência na pergunta.”

Olhei-o longamente, nos olhos. Sem qualquer hesitação perguntei-lhe,

“Acredita em Deus, John?”

“O senhor é um homem de fé…”

“Depende da definição pessoal de cada um. Mas refaço a pergunta. Qual é o seu Deus, John?

“O meu Deus?”

“Sim, aquilo perante o que se curva. São as pessoas a quem representa? É ao deus dessas pessoas? É a Deus, num sentido mais bíblico?”

“Nesse sentido, eu sou o meu Deus.”

Sorri.

“Sabe, John, a verdade é que eu não sei sequer se Deus existe. E nesse sentido também eu sou o meu Deus. Mas tenho provas, não empíricas, mas em forma de dados, de que há algo. John, estas suas colaboradoras, com certeza, não sabem quem você é. São só o melhor que o dinheiro pode comprar. Mas diga-me, disse-lhes quem eu sou?”

“Não… normalmente não se passa informação acerca destas reuniões a colaboradoras.”

“Então porque não experimenta dizer-lhes quem eu sou. Não precisa de dizer porque é que estou aqui. Só quem eu sou.”

Ele pensou um pouco. Tentava ver o que aconteceria se lhes dissesse.

“Percebo o que me quer dizer. Creio que não temos a necessidade de o fazer.”

“John, eu não lhe vou dizer que Deus existe ou deixa de existir, não o quero convencer de nada nem converter. Não lhe vou pregar o arrependimento. Não vou fazer nada disso, até porque se o fizesse estaria a ir contra mim próprio. Quero é que perceba que estas mensagens não são da minha responsabilidade e eu sou apenas o mensageiro. Se não fosse eu seria outro qualquer. Aliás, uma das coisas que me intriga é o facto de ser eu. Quanto à proveniência, só lhe posso dizer honestamente que não sei.”

“Sr. Gabriel, por aquilo que me diz, deveríamos pura e simplesmente ignorá-lo. Mas o seu caso é algo particular. Houve uma escalada nas mensagens que foi passando até chegarmos a este ponto. Nesta altura é muito difícil não lhe atribuir credibilidade. Afinal quantas pessoas até hoje é que previram um terramoto ao minuto?”

A menção ao terramoto fez com que as duas mulheres olhassem de repente para mim, apercebendo-se de quem eu era. A expressão no olhar delas mudou. O John reparou nisso e sorriu. Depois continuou.

“a sua mensagem causou estragos irreparáveis. Sabe, este tipo de informação só tem valor quando se mantém escondida.”

“Sim, eu sei. Creio que neste momento o principal problema é como revelar a informação sem perder a face.”

“Exacto. Como calcula, não será fácil…”

“Diga-me, Sr. John, o que é que aconteceu ao investigador que fez a descoberta?”

Ele olhou para mim e disse com um sorriso irónico “Infelizmente teve um acidente fatal logo a seguir…”

“Foi uma pena, não foi?” perguntei eu.

“Sim, foi uma verdadeira tragédia…”

“Então, tem ai a maneira. Despedem o responsável pelo laboratório em questão por sonegar informação. Creio que não terão grandes dificuldades em persuadi-lo a ficar calado e quieto no seu canto, anunciam a descoberta dizendo que ainda está na fase final de testes e salvam a cara.”

“Ainda assim perderão muito dinheiro…”

“Verdade, mas podem ganhar em reputação. Sei que países como o Brasil não hesitariam em quebrar a patente. Por isso façam as coisas de maneira a que não valha a pena quebrá-la. Libertem o medicamento a um preço justo. Creio que muitos governos, por razões humanitárias, não perderão tempo a enviar o medicamento para África. E aquilo que perdem em dinheiro, ganham em publicidade, credibilidade e reputação.”

Ele ficou parado a pensar.

“Creio que é a única alternativa que lhes resta, sim. Mas, como deve perceber já tínhamos chegado a mais ou menos essa conclusão. Mas tinha de tentar percebê-lo.”

“Claro. Calculava que sim.”

“E isso leva-me à segunda parte da razão da minha visita. As pessoas que represento estão interessadas em que novas revelações não venham a publico desta maneira tão abrupta. Compreende que em termos de políticas de gestão este tipo de revelações sem qualquer preparação tem o potencial de se tornar embaraçoso…”

“Compreendo perfeitamente.”

“Como tal gostariam de garantir que tal não volta a acontecer. A maneira mais simples de obter essa garantia está neste momento fora de questão…”

Ele referia-se à minha eliminação, pura e simples. Continuou.

“…pelo que querem saber se, apesar de querer dar a Deus o que é de Deus não estará interessado também em dar a César o que é de César…”

Fez deslizar pela mesa um envelope fechado. Abri-o. Continha um cheque. Vi a quantia. Nem te vou dizer o absurdo que era. Não tem assim tanta importância. Pousei-o de novo na mesa.

“Sabe, John, não devo vassalagem a César, e não sei se Deus existe. Logo, não tenho qualquer utilidade para o conteúdo do envelope.”

“Você é um homem intrigante, Gabriel. Muito intrigante. Estamos aqui numa mesa com aquilo que de melhor o dinheiro pode comprar, e no entanto não vejo qualquer indício de luxúria nos seus olhos. Não conheço muitos homens que se mantivessem impávidos ao lado destas minhas colaboradoras…”

“À excepção de si próprio.”

Ele riu.

“No entanto não me parece que lhe agradasse ter aqui colaboradores em vez delas, não é?”

“Para lhe ser franco, era-me tão indiferente uma coisa como a outra.”

“E agora acaba de me dizer que não tem utilidade para o conteúdo do envelope…”

“É verdade, não tenho.”

Ele percebeu finalmente que éramos iguais. E conforme o percebeu soube que não havia grande coisa a fazer em relação a mim. Deu uma gargalhada.

“Se calhar você não me é assim tão estranho.”

“Se calhar não sou.” Disse eu com um sorriso. A nossa conversa tinha chegado ao fim. Levantei-me.

“Presumo que o motorista me vá pôr a casa.”

“Claro. Não o íamos deixar aqui sem transporte. Guarde o envelope de qualquer maneira. Pode ser que descubra algum bom uso.”

Encolhi os ombros, agarrei no envelope e guardei-o no bolso de trás das calças.

“Até uma próxima, Sr. Gabriel.” Disse ele despedindo-se de mim.

Eu olhei-o uma última vez.

“John, gostava de ver as suas colaboradoras em minha casa amanhã, se não se importa.”

“Gabriel, a ceder às tentações da carne?” olhou um pouco para mim e depois sorriu “não, não é isso, pois não? É apenas um gesto nobre da sua parte. Cuidado Gabriel. De gesto nobre em gesto nobre pode vir a ser encarado como… Humano!”

Ri-me.

“Creio que não corro esse risco, pelo menos para já.”

“Farei como pede. Amanhã estarão lá.”

Virei as costas, sai do restaurante, entrei no carro que estava já à minha espera e arrancamos em direcção a Sassoeiros.

Elas não o sabiam, mas tinha-lhes salvo a vida.

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