terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Chuva - XXI

No dia seguinte, eram uma sete e meia da manhã, começou a chegar-me aos ouvidos um barulho irritante. Como já não era costume estar em casa a esta hora pensei tratar-se do despertador de algum vizinho. Mas o barulho era insistente. Ao fim de uns quantos toques calava-se, mas depois voltava.

Foi então que me lembrei do telemóvel. Já nem me lembrava onde o tinha posto, mas fui seguindo o barulho até o encontrar. Era o Fernandes, de certeza, a dizer que já tinha chegado. Porque é que não tocou à campainha?

Enfim. Lá descobri o dito. Atendi.

“Gabriel, bom dia. Estás despachado?”

“Estou.”

“Então desce que tenho o carro mal estacionado, pá. Estou à tua espera.”

Lá desci, entrei no carro, cumprimentámo-nos e ele arrancou de imediato.

“Pensaste mais no que falamos ontem?” perguntou ele.

“Pensei.”

“E então?”

E então… Boa pergunta.

“Sabes o que é um fogo-de-santelmo?”

“Por alto…”

“Então imagina-te dentro de um navio no meio de uma tempestade. Mas não penses num navio actual, imagina antes que és um marinheiro da época dos descobrimentos, com a cabeça cheia de superstições e com um medo tremendo de cair pelo rebordo do mundo. E de repente, quando o navio parece que se vai partir em dois vês uma aparição no cimo do mastro mais alto. Aparece-te ali, vinda do nada, uma luz branco-azulada que solta pequenos raios.”

“Bem, no meio do pânico e aflição seria fácil tomar essa luz por uma aparição…”

“Pois. E era. Era tomada como um bom presságio, até.”

“OK. Mas não estou a ver a relação…”

“Na realidade um fogo-de-santelmo é um fenómeno atmosférico comum. É uma descarga electroluminescente provocada pela ionização do ar num campo magnético gerado pelas descargas eléctricas. Não há nada de sagrado. Mas na altura, não se sabendo o que era, tomava-se como uma aparição ou um presságio.”

“Queres dizer que, não sabendo o que é, não afirmas o que possa ser.”

“Exacto, não descarto possibilidades, mas também não afirmo nenhuma.”

O Fernandes ficou agradado com a conversa. Acho que ele também não se sentiria muito à vontade se eu de repente me começasse a afirmar como mensageiro divino ou uma treta qualquer do género. Com isto íamos a meio da ponte sobre o Tejo.

“Sabes que esta história com os jornalistas não vai durar muito tempo. Provavelmente já se esqueceram que tu existes.”

“Sei, e ainda bem. Não gosto de me expor.”

“Já percebi…”

E eis que de repente começa a chover.

Ele olhou para mim de repente. “Queres voltar atrás?”

“Não. Eu acedo ao meu computador de lá do trabalho e logo vejo se há alguma coisa.”

“Consegues fazer isso?”

“Sim, não é difícil.”

O aguaceiro foi breve mas forte. Olhava para o Fernandes e via a inquietação provocada pela curiosidade.

Quando chegamos ele entrou com o carro para a cave do edifício.

“Queres estacionar e vir comigo? Assim ficas já a saber…”

Acho que a pergunta era absolutamente desnecessária. Claro que ele veio.

Acedi ao computador, vi que tinha lá os padrões gravados. Dei os passos todos para converter e desencriptar a mensagem, caso houvesse alguma. Não me preocupei minimamente com o facto de ele estar ali. Tinha já as formular encaixadas em rotinas de software e como tal ninguém as veria. Mas até era bom. Ele assim via o processo.

Quando acabei, mostrei-lhe o resultado.

 

“Quando a lua atingir o seu zénite a terra revoltar-se-á no sítio onde estás. Salva os que ouvirem.”

 

Ele não tirava os olhos da mensagem. Por fim acabou por perguntar “Mas o que é que isto quer dizer?”

Encolhi os ombros.

Mas de repente fez-se luz.

“Pá, quando é que é a próxima lua cheia?” perguntei-lhe.

“Sei lá…”

Demoramos o tempo de uma consulta rápida à internet. Era dai a dois dias, às quatro e dois da manhã.

“Mas o que é que achas que isto quer dizer?” acabou por perguntar ele.

“Acho que vai haver um tremor de terra em Lisboa depois de amanhã.”

Ele ficou estupefacto a olhar para mim. “Temos de avisar as pessoas!”

Fiquei parado. Estático. Mais uma vez os acontecimentos levavam-me para onde eu não queria ir.

“Pois temos.”

Era obvio que sim. Mais ainda, era obvio que eu tinha de dar a cara.

“Achas que os jornalistas já se esqueceram de mim?” perguntei ao Fernandes.

“Não sei, mas conheço um e daqui a pouco já falo com ele. Sempre ficas mais resguardado do que falando com um gajo qualquer. De qualquer maneira eu vou arrancar, mas fica atento ao telemóvel. Eu já te digo qualquer coisa.”

Ele arrancou.

Já eu fiquei perdido em pensamentos. “…a terra revoltar-se-á no sítio onde estás”. A mensagem não só era para mim como era para este momento.


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