quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Chuva - XLIV

Na segunda-feira chegou o telefonema com a confirmação do debate. Disseram-me onde e a que horas teria de estar. O debate seria em directo na quinta-feira seguinte.

O resto da semana passou sem acontecimentos dignos de nota. Claro que todos os dias acontecia qualquer coisa, cada vez que saia à rua. As pessoas reconheciam-me e vinham ao meu encontro. Muitas vezes só queriam tocar-me. A maior parte delas falava-me de como estavam arrependidas de não terem ouvido. Outras agradeciam porque, por terem ouvido se tinham salvo. Contrariamente às minhas expectativas, havia quem tivesse ouvido.

Apesar de tudo o que sentia, comecei a ser permissivo. Tinha de me mostrar amável e afável. Compreendi que de alguma forma me tornara um símbolo de algo maior que eu. E comecei a perceber o que a igreja quereria de mim.

Aposto que tinham pena de eu não me manifestar professo da religião deles. Afinal, as pessoas ouviam o que eu tinha para dizer, e já ninguém ouvia a igreja, nem mesmo os próprios católicos.

Na quinta-feira, à hora marcada, lá estava eu no estúdio. Eu, a equipa de produção e mais ninguém. Foi curioso o facto de toda a gente ter ficado surpreendida com a minha pontualidade. Aparentemente já avisavam da hora mais cedo para que, mesmo com os atrasos, as pessoas chegassem a tempo para que tudo fosse tratado e o programa pudesse ir para o ar a horas.

Aos poucos os restantes convidados foram chegando. Eram todos conhecidos uns dos outros e à medida que iam chegando iam-se cumprimentando e pondo alguma conversa em dia. Eu era a única pessoa ali que não estava relacionada com ninguém.

Para te ser absolutamente honesto, não fixei o nome de ninguém. Os partidos tinham mandado representantes que não os comprometeriam. Apenas conhecia o presidente da câmara de Lisboa, que ali, ia falar por ele e pelos presidentes de câmara das outras áreas afectadas, representando assim o poder local.

Todos eles, sem excepção, olhavam para mim e ficavam na dúvida se me falavam ou não. Creio que tinham o problema de não saber como lidar comigo. E era natural. Não faziam ideia das minhas opiniões, simpatias ou filiações, logo também não sabiam como me podiam abordar.

Finalmente fomos todos dispostos num semi-circulo de mesas em que o meio ficava aberto e onde a jornalista que ia moderar o debate andaria livremente.

Claro que não te vou entediar com pormenores do debate que foi tão amplamente visto, mas digo-te aquilo que me foi passando pela cabeça.

Aquilo parecia uma aula de oratória. Demagogia ao seu mais alto nível. A nível partidário via os partidos que tiveram responsabilidades de governo a defenderem-se como podiam, enquanto os partidos da oposição se lançavam a eles, numa discussão carregada de acusações e defesas ocas, mas sem qualquer conteúdo que fosse para além de uma utilização absolutamente correcta da língua portuguesa. Mas para além das acusações não havia um indício de uma ideia do que devia ter sido feito para minorar a situação.

Outros iam falando da catástrofe, do número de vidas perdido, dos milhões de prejuízos, de o facto da catástrofe, apesar do que foi, ser uma oportunidade para requalificar Lisboa, e de o facto de o sector da construção e obras publicas ser o sector que ia agora puxar pela economia do país.

Deixei-me ficar calado a observar aquele circo. Havia de facto os acrobatas, os palhaços, os malabaristas, os artistas de trapézio e um ou outro que se julgava domador de feras selvagens. E eram todos sem excepção absolutamente ridículos, mesquinhos, empenhados em defenderem-se apontando sempre as baterias para o lado. Nenhuma culpa foi assumida por ninguém. Enfim, o habitual em debates, seja de que tipo for.

Ao fim de uma meia hora de hipocrisia medíocre a moderadora voltou-se finalmente para mim e faz uma pergunta. A pergunta que fez denotou imediatamente que eu não estava ali para dar opiniões.

“Gabriel Guerra, o Sr. Foi a primeira pessoa no mundo a prever um terramoto ao minuto. Não ficou desiludido e surpreendido com a reacção das pessoas? Com o facto de não o levarem a sério?”

“Para ser franco, não. Nem uma coisa nem a outra. Ao fim ao cabo, já houve dezenas de previsões de terramotos, alguma com dia marcado e tudo. E no entanto, que me lembre, nenhuma se realizou. Portanto a reacção das pessoas foi a normal, aliás foi a mesma que eu teria nas mesmas circunstâncias.”

“Mas, diga-me, tinha mesmo a certeza de que ia acontecer…?”

“Tinha.”

“E porquê?”

“Porque a maneira como chegou a informação não me deixava margem para dúvidas.”

“O Gabriel tem dito que as informações lhe são reveladas, não é?”

“é exacto.”

“Posso perguntar-lhe por quem?”

“Pode, mas essa é uma resposta que eu não tenho para lhe dar.”

“Quer isso dizer que não faz ideia?”

“Quer. Não tenho a mínima ideia. Apenas conheço o veículo por onde as mensagens são reveladas, mas não identifiquei a origem.”

Percebi neste momento que o papel que era suposto eu desempenhar nesta farsa mascarada de jornalismo sério estava acabado, e que era suposto eu sair de cena.

“já agora, se me permite tecer uma ou outra consideração…” disse eu quando a moderadora se preparava para mudar o foco das atenções.

“Com certeza, Sr. Gabriel.”

“Eu não tenho qualquer duvida de qual é o motivo porque estou aqui. Estou aqui porque previ um terramoto ao minuto e porque sou bom para as audiências deste programa. Claro que prever um terramoto ao minuto é algo excepcional. Mas prever este terramoto não o era. Aliás, este terramoto ia acontecer, ponto final. A única questão era quando. Aquilo que me surpreendeu não foi a reacção das pessoas. Afinal, já houve tantos a gritar ‘LOBO’ que já ninguém liga. Aquilo que me deixa realmente surpreendido é o facto de a maior parte das organizações que estes senhores representam não terem previsto e tomado atitudes em relação a um acontecimento desta natureza, que ao fim ao cabo era quase uma certeza. O facto de haver obras licenciadas sem se pensar no que poderia acontecer. Falaram há pouco de ser uma oportunidade de requalificar a cidade, mas uma das zonas brutalmente afectadas foi requalificada há muito pouco tempo, e grande parte dela é neste momento um monte de ruínas.”

A indignação e o incómodo dos outros começou a fazer-se sentir. Começaram, como era óbvio, a querer falar, numa tentativa apenas aparente de se defenderem, mas tentando cortar-me a palavra. Eu continuei, olhando, não para eles, mas directamente para a moderadora, nos olhos, fixo.

“eu ainda não acabei de falar.”

Ela estagnou a olhar para mim. Vi a inquietação que lhe trespassou o espírito. Acalmou de imediato o resto do painel, a custo, enquanto eu me mantive calado, quieto, à espera. Quando finalmente tudo acalmou virou-se para mim e disse “Continue, por favor.”

“Obrigado. Vocês são todos culpados do que aconteceu. Uns por actos. Os senhores que representam a construção sabem tão bem como eu que os estragos em certas partes da cidade se deveram em exclusivo à ganância e ao lucro fácil que levou a não cumprir normas de construção que até existem. Afinal temos legislação. Os outros, são culpados por omissão. O poder local por falta de fiscalização efectiva das obras que foram sendo feitas. O poder executivo e a assembleia da república por andar meramente a reboque de situações e não as prever com a devida antecedência. Basicamente, este debate não passa de chuva no molhado. Não são apresentados culpados. Não são apresentadas ideias. A verdade é que ninguém aqui sabe quem são os culpados e ninguém aqui tem a mínima ideia do que fazer a seguir. Os partidos da oposição apenas tentam retirar dividendos políticos de uma situação que merecia mais respeito que isso. Os partidos do governo defendem-se dizendo que a culpa está no passado. Claro que no meio de tudo isto estão as pessoas com as vidas devastadas. Mas esses como sempre, só são importantes na altura das sondagens.”

Por esta altura todos se mantinham calados. Por esta altura eu tinha-os na mão e eles sabiam todos disso. Nem a própria moderadora se atrevia a dizer fosse o que fosse. Apenas olhava para mim com um ar de quem não sabia o que fazer a seguir em relação a mim.

“Meus senhores, eu, enquanto cidadão, não filiado em nenhum quadrante politico, não filiado em nenhuma corrente religiosa, pergunto-vos aqui, olhos nos olhos, frente a frente, algum de vocês tem realmente algo de útil a dizer as pessoas que nos vêem? Algum de vocês tem algo que vá para além do que é obvio? Algum de vocês quer admitir a sua própria culpa em tudo o que aconteceu, sendo humilde, pedindo desculpa às pessoas que viram vidas devastadas por causa de más opções politicas e administrativas, por causa de corrupção? Algum de vocês quer admitir que vai tentar mudar o estado das coisas, mas tentando realmente, sem demagogia? Ou esta farsa vai continuar?”

Ninguém disse nada. Absolutamente nada.

“Aparentemente a farsa vai continuar, por isso pode continuar sem mim.”

Levantei-me e sai do estúdio.

No dia a seguir os jornais não falavam de outra coisa, lembras-te? De como o debate continuou morno, de como tudo o que foi dito a seguir não teve qualquer conteúdo e foi praticamente uma assunção de culpa.

E viste o resultado com movimentos de cidadãos a organizarem-se, pondo em causa a classe política e a própria organização partidária. Se alguma coisa de bom resultou disto tudo foi realmente o facto de se ter criado uma nova consciência nas pessoas, de a classe politica ter sido obrigada a reformular-se.

Claro que já muitos tinham afirmado antes o que eu disse. Mas nenhum deles tinha previsto um terramoto ao minuto…


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