quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Chuva - XLIII

Às quinze horas de sábado lá estávamos, eu e o Fernandes, a chegar ao novo Centro Paroquial do padre João Chaves.

“Mas porque é que me arrastaste para aqui?”

“Tu é que abriste a porta ao padre, portanto não te queixes. Se ele não tivesse entrado em casa nós não estaríamos aqui. Quer isto dizer que estás aqui porque queres.”

“Tu e a tua lógica… A verdade é que não vim aqui fazer nada.”

“Vieste fazer companhia, o que já não é nada mau.”

Como sempre, quando não me conseguia contradizer, pôs-se a resmungar qualquer coisa e acabou por se calar.

Quando saímos do carro a reacção das pessoas foi aquela de que eu já estava à espera. A mesma contenção, a mesma humildade nos olhos. Já a minha reacção limitou-se a ser um sorriso, mais ou menos franco. Embora disfarçasse cada vez melhor o desconforto não passava.

O Padre João veio apressadamente ao nosso encontro.

“Sejam bem-vindos. Venham, venham…”

E levou-nos.

Dentro do pavilhão estava tudo preparado, aparentemente para uma cerimonia religiosa, com cadeiras desdobráveis montadas para que as pessoas se sentassem, e na área onde havia um pequeno palco, um altar improvisado. Havia uma azáfama enorme enquanto acabavam de montar o que faltava por parte de muita gente ligada à paróquia. No entanto cada vez que uma das pessoas ocupadas me via, parava por alguns instantes, não sei se apenas pela surpresa de me ver ali ou se por algo mais.

“Peço desculpa pela confusão, …” disse o padre João “… estamos um pouco atrasados. D. Martinho apenas nos conseguiu confirmar a presença cá ontem e claro, alterou-nos os planos todos.”

Não fazia ideia de quem era D. Martinho, mas calei-me. Afinal viria a descobrir dai a pouco, provavelmente, portanto a pergunta seria irrelevante.

“Mas sentem-se, por favor. Eu tenho de ir, mas voltarei aqui assim que for possível, estejam à vontade.”

Sentamo-nos e ficamos a ver a confusão de pessoas que acabavam de montar as coisas necessárias à cerimónia. Acabei por me voltar para o Fernandes e perguntei “Olha lá, sabes quem é o tal D. Martinho?”

“Sei, por acaso sei. É o bispo auxiliar de Lisboa.”

“Ah! Então vai cá estar o chefe. Por isso esta confusão para garantir que tudo estará perfeito.”

“Pois, …” disse o Fernandes “… agora imagina que vinha o chefe do chefe, o cardeal patriarca.”

“Bem, a avaliar por isto, nesse caso, teria de estar tudo mais que perfeito…”

“Olha, acho é que no meio disto tudo vamos apanhar uma seca.”

“Então?”

“Pá, se o bispo cá vem bem podes esperar ter de levar com uma missa de hora e meia…”

“Achas?”

“Tenho a certeza.”

Eis algo que não me apetecia mesmo. Ter de assistir a uma cerimónia religiosa cheia de pompa e circunstância, com todos aqueles rituais…

…naquela altura arrependi-me de ter aceite o convite. Mas agora era tarde demais. Já cá estava.

O padre João voltou para junto de nós uns quinze minutos depois.

“Peço mesmo desculpa por não vos ter recebido melhor, mas já não esperávamos nada disto e, como calculam, toda a gente me vem pedir opiniões acerca de tudo…”

“É normal. Afinal o senhor é o pastor e eles são meras ovelhas.” Disse eu. O meu reparo mereceu uma subtil cotovelada por parte do Fernandes.

O padre João olhou para mim, sorriu e disse “É em parte verdade. Mas digam-me, gostam do novo curral?”

Apreciei a maneira como o padre encaixou o comentário, levando as coisas com humor. Acho que muitos se teriam sentido ofendidos e incomodados.

“É um curral bem jeitoso.”

“Sabem, foi construído apenas com o esforço e os contributos da comunidade. Não é tudo o que desejaríamos, mas é aquilo que foi possível. Mas agora temos um espaço que podemos usar como apoio social e até para alguns espectáculos. É mais uma maneira de tentar juntar a comunidade.”

Entretanto um homem aproximou-se, interrompendo-nos, para avisar que o bispo tinha acabado de chegar.

“Desculpem-me, …” disse o padre “… mas tenho de ir. Falamos depois da cerimónia.”

E afastou-se apressadamente, saindo da sala. Dai a pouco voltou a entrar com um homem que presumi à altura tratar-se do bispo.

Entretanto as pessoas que até então estavam na rua começaram a entrar e a ocupar as cadeiras vagas. Ainda assim acabou por ficar muita gente de pé.

A cerimónia começou com um cântico que acompanhou a entrada do padre João e do Bispo devidamente paramentados. Foi uma seca. Mesmo. Sabes aquelas alturas em que o tempo, de repente, começa a andar devagar e não passa? Uma extensa homilia de quase duas horas com o bispo, que a presidia, a estender-se em divagações e considerações acerca da comunidade e da fé em Cristo…

…para te ser franco, quase adormeci. A sério. Parecia um daqueles discursos chatos de políticos que se fartam de usar artifícios de oratória para repetirem a mesma coisa vezes sem conta, mas sempre de maneiras diferentes, e no fim, quando espremes o sumo de todo o discurso não se disse nada que se aproveitasse e podias ter resumido tudo a uma frase…

…não há paciência no mundo que chegue.

E se eu me sentia aborrecido, nem calculas o Fernandes, que por duas vezes quase adormeceu. Aliás, se não fosse eu a dar-lhe umas cotoveladas, ele tinha mesmo adormecido, e por mais que eu achasse que o devia ter deixado dormir, estávamos na fila da frente e tive a certeza de que ele ia ficar chateado de fazer essa figura em frente a um tão destacado membro do clero.

Mas como não há mal que sempre dure, lá acabou a cerimónia religiosa e a festa ganhou contornos mais pagãos. O padre João lá se aproximou novamente de nós, desta vez trazendo o bispo a reboque. Quando chegaram apresentou-nos.

“Sr. Bispo, este é o Dr. Álvaro Fernandes …” cumprimentaram-se os dois “ …e este é o Sr. Gabriel Guerra”

O Bispo estendeu-me de imediato a mão cumprimentando-me.

“Temos ouvido falar muito de si, Sr. Gabriel.” Que admiração… “Diga-me Sr. Gabriel, o que é que faz na vida?”

“Arquivo fichas.”

“Ah! Uma ocupação como outra qualquer…”

“Sim, necessária como outra qualquer. Afinal se as fichas não forem arquivadas há com certeza um caos.”

“Pois, e a ordem é necessária… Diga-me, é frequentador desta paroquia?”

“Não, não sou. Estou aqui apenas por convite do padre João.”

“Mas é católico, com certeza.”

“Não, não sou católico.”

“Não? Então qual a fé que professa?”

“Nenhuma.”

O bispo ficou surpreendido por esta minha afirmação. Tão surpreendido que me parecia quase incomodado.

“Confesso que estou surpreendido. À luz do que tenho conhecimento acerca de si julgava-o um homem de fé…”

Esta afirmação, quase uma interrogação, estava a tornar-se uma constante.

“Depende da definição.”

“Como assim?”

“Para si um homem de fé tem de estar ligado a alguma religião, tal como um politico tem de, pelo menos, ter alguma simpatia por um partido. Ora eu, enquanto cidadão sou automaticamente político, porque tenho no dia-a-dia de tomar opções políticas. Claro que não tenho de simpatizar ou de me identificar com algum partido por causa disso.”

“Quer dizer que acredita em Deus.”

“Depende da definição.”

“Mas só há um Deus…”

“Do seu ponto de vista. Se disser isso a um hindu acredito que ele se ria de si.”

“Não me vai dizer que acredita naqueles panteões de deuses hindus…”

“Não, não acredito. Mas também acho o seu deus pouco plausível.”

Levei outra cotovelada do Fernandes e foi notório o embaraço do padre João. Afinal estava ali um convidado dele a dizer ao chefe hierárquico que o motivo pelo qual ambos tinham emprego era…

…pouco plausível.

O bispo encaixou o comentário de uma maneira serena.

“Pode calcular que à luz do que acredito acabou de cometer uma heresia.”

“Sei que sim. E o facto de o saber deixa-me contente por já não existir o tribunal do santo ofício, pelo menos nos moldes de há uns séculos atrás.”

Este comentário causou mais moça e o bispo acusou o toque.

“Sabe, Sr. Gabriel, tenho de lhe confessar uma outra coisa, a si e ao padre João. Eu não era para ter vindo aqui hoje, mas depois soubemos que estaria presente. O Sr. Cardeal incumbiu-me de vir e de o conhecer, falar consigo. Mas este não é o local apropriado para podermos falar. Seria possível encontrarmo-nos noutra ocasião?”

“Sim, podemos.”

“Quer que o contactemos?”

“Não. Não me liguem, eu ligo-vos.” Disse eu com algum sarcasmo na voz.

“Espero que não o faça nos moldes de um patrão que está a recrutar pessoal…”

“Ora, D. Martinho, e acha que eu faria isso à santa igreja católica apostólica romana?”

Ele cumprimentou-me com um sorriso e seguiu. Já eu fiquei a pensar o que quereriam de mim…


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